sábado, 22 de março de 2014

Educação sitiada - por Paulo Kautscher


Educação sitiada: Escolas à serviço da militarização das cidades

Especial produzido em parceria entre o Centro de Referências em Educação Integral e o Portal Aprendiz
Por volta de 700 a.C., na Grécia Antiga, Esparta treinava meninos para se tornarem guerreiros. Marcado por conquistas de territórios e conflitos entre povos, o período histórico demandava da cidade-estado indivíduos fortes, disciplinados, obedientes e prontos para o combate. A agoge – como é conhecida a educação espartana – dividia os aprendizes em ciclos, que variavam de acordo com a idade, e tinham por objetivo desenvolver a excelência física e o domínio emocional e psicológico para lidar com as adversidades da guerra. Os garotos passavam toda a infância e adolescência afastados da família e do convívio social.

O anúncio de que até o final de 2014, sob o pretexto de diminuir a violência e melhorar o desempenho dos alunos, ao menos 19 escolas públicas do estado de Goiás serão repassadas à Polícia Militar, trouxe a educação para o centro do debate sobre a militarização da sociedade.

Criadas a partir de uma parceria técnico-pedagógica entre as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Educação, envolvendo também as subsecretarias regionais de ensino, as escolas atendem estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, em todos os períodos, a partir de uma estrutura pedagógica rígida, baseada na disciplina individual e coletiva.

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Inseridas em cidades com altos índices de violência – Valparaíso, por exemplo, ocupa o segundo lugar entre os municípios de Goiás, com 80,9 mortes a cada 100 mil habitantes – as instituições de ensino militares são uma promessa do estado para controlar episódios de indisciplina e desvios de conduta, além de ocorrências mais graves dentro ou no entorno das escolas.

Para concretizar essa proposta, o projeto pedagógico das escolas prevê que os militares lecionem as disciplinas de “Educação Física” e “Noções de Cidadania”. Esta última aborda temas como a “ordem unida”, orientações de trânsito, Constituição Federal, meio ambiente, etiqueta social, prevenção às drogas e educação religiosa. Além disso, o uso de farda é obrigatório e atrasos às aulas, assim como qualquer desrespeito às regras, geram desconto na chamada “avaliação disciplinar”.

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Formação versus Adestramento

Para o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, a militarização das escolas indica a falência do sistema de ensino brasileiro. “Em um período fundamental de formação, ao invés de educar, você adestra e disciplina. O que o governo de Goiás está fazendo é renunciar à formação dos sujeitos.”

Essa renúncia engloba ainda, segundo o advogado e coordenador do Programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio, a falta de incentivo à reflexão, ao debate de ideias, à criatividade e à tolerância, “saudáveis” na formação de qualquer ser humano e “incompatíveis” com instituições rigidamente hierarquizadas, como é o caso da Polícia Militar.

“Escolas militarizadas podem deixar pouquíssimos espaços de discussão, de divergência e até de tolerância para que seus alunos possam se manifestar como bem entenderem. Acho que devemos nos perguntar se queremos escolas que criem cidadãos de fato, não apenas cumpridores de ordens”, afirma Custódio, que vê na formação baseada em valores bélicos o oposto do que se espera de uma sociedade mais tolerante e que respeita a diversidade.

A diretora do Instituto Sou da Paz, Melina Risso, lembra porém que a rigidez, a hierarquia e o excesso de disciplina presentes no ambiente militar estão presentes em muitas escolas – inclusive aquelas que não são administradas pela polícia. A falta de espaços de diálogo, gestões centralizadas e fechadas para a comunidade, apesar de ferirem determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), são comuns no ensino brasileiro.

“A escola é um universo muito fechado. Em muitos casos, a relação dos alunos com o corpo docente e com a direção é praticamente inexistente. Existem poucos elementos de construção coletiva. Ampliando a visão do que significa esse movimento, podemos dizer que há várias escolas com ambiente militarizado”, aponta Melina.

Militarização para quem?

Um aspecto que chama a atenção é a aplicação do modelo militar estar voltado aos jovens pobres que frequentam a rede pública de ensino, já que são eles as principais vítimas da militarização que acontece fora dela. O coordenador de Educação da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), André Lázaro, vê no sistema das escolas de Goiás mais uma forma de “criminalizar” a juventude pobre.

A educação poderia ser um caminho para a mudança desse paradigma, mas acaba por endossá-lo. É o que acredita Douglas Belchior, que trabalha há anos como educador na rede de cursinhos populares da Uneafro e já conviveu com milhares de estudantes oriundos da rede pública de ensino.

“Vivemos num país racista, desigual, com mais de 500 mil presos. A escola poderia caminhar contra essa lógica punitiva e violenta, dando formação para que os estudantes pensem sobre o mundo em que vivem, tomem decisões. Mas na prática, ela vira um ambiente de reprodução de autoritarismo. Há que se procurar o respeito e o diálogo. Porque os alvos dentro do muro são sempre os mesmos alvos da PM do lado de fora.”

Em consonância com os projetos de militarização encontrados nas cidades – e respondendo à demanda social por soluções rápidas e eficazes para os problemas da educação – o fenômeno parece ter encontrado nas escolas uma oportunidade não apenas de expressar-se, mas também de gerar novos reprodutores dessa lógica.

A professora do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Vera Telles, se diz impressionada com as “escolas-fortalezas”, que parecem defender as crianças de inimigos exteriores. “Isso acaba por não formar cidadãos, mas indivíduos preparados para enfrentar uma guerra.”

Segundo a professora, essa gestão evoca a ideia de guerra urbana, na qual as dificuldades da vida cotidiana são tratadas de forma bélica. “Essa lógica dialoga com tendências contemporâneas de militarização do conflito urbano nas metrópoles. As tecnologias de controle vêm em pacotes globais, com zonas de exclusão, drones, vigilância e gestão de multidão.” Para ela, a Copa do Mundo e as Olimpíadas são exemplos de vetores d...

Cidades militarizadas

Vera identifica nas escolas militares de Goiás uma faceta do que ela chama de “urbanismo militarizado”, fenômeno que transfere a lógica da guerra para o controle do espaço público. Segundo ela, nesse processo, diversos dispositivos de exceção são inseridos na ordem jurídico institucional e aparecem como “normalidade”, mas são “gambiarras de exceção” que suspendem direitos e acionam o poder discricionário do Estado.

“O Estado tem o monopólio da violência legítima; isso é um axioma da formação das sociedades modernas. Mas ele tem que desativar essa lógica, não fomentá-la. O Estado brasileiro costuma se comportar como operador da vingança, do esculacho, do assassinato de ‘suspeitos’, da violência, do terror”, avalia.

No Brasil, a linha que separa o que é civil do que é militar é frequentemente borrada por pegadas de coturnos. A emblemática frase atribuída a Washington Luís, de que a questão social é uma questão de polícia, nunca deixou de carregar sua verdade com o passar dos anos. No entanto, Vera acredita que o militarismo de hoje não é apenas uma atualização do passado.

“O mais aterrador de tudo isso é que as pessoas, ao terem sistematicamente seus direitos negados, perdem a capacidade de imaginar outras possibilidades de vida, como se fosse a única alternativa enxergar o Outro como um inimigo a ser eliminado”, conclui Vera.

Reportagem: Ana Luiza Basílio, Danilo Mekari, Jéssica Moreira, Julia Dietrich, Pedro Ribeiro Nogueira, Raiana Ribeiro e Roberta Tasselli

Arte: Vinícius Savron e Mayara Barbosa


Fonte: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2014/02/26/educacao-sitiada-escol...


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