"Se já não havia uma diversidade aceitável em cada um deles, agora
fica ainda mais patente que os principais meios de comunicação do país
atuam como uma só redação, um só corpo editorial orientado por uma visão
de mundo dominante e conservadora. Essa característica fica escancarada
na forma como os conteúdos de um jornal são complementados e
referendados pelos demais, em sequências nas quais uma declaração, um
boato ou uma anedota percorre todo o campo midiático, acabando por se
afirmar como verdade incontestável."
Trecho do texto
"Os Novos Ídolos da Imprensa", de Luciano Martins Costa, apresentado a seguir, retirado do
Observatório da Imprensa:
‘VOZ DAS RUAS’
Os novos ídolos da imprensa
Por Luciano Martins Costa em 02/04/2015 na edição 844
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 2/4/2015
Uma das tarefas mais difíceis da observação da imprensa é interpretar a
narrativa subjacente ao conjunto de textos e sua organização nas páginas
dos jornais. Como os diários procuram abranger o máximo de temas que
seus editores consideram importantes para compor a agenda pública,
supõe-se que basta entender o contexto de cada caderno especializado
para montar o quebra-cabeças proposto a cada dia.
Nesse modelo clássico de observação, bastaria analisar os editoriais
para identificar a opinião de cada veículo e ler os artigos para
circunscrever a amplitude de interpretações que a imprensa tolera em
suas páginas. O resto estaria explícito ou implícito na hierarquia que
vai das manchetes até as notas curtas, ou até mesmo nos temas que foram
deixados de fora.
O mesmo processo serviria para observar o noticiário da televisão, pois
os dois meios se complementam e os principais diários costumam esperar o
fim do Jornal Nacional, da TV Globo, para concluir suas edições. No
entanto, a homogeneização da mídia tradicional exige que o observador
leia todos os jornais de circulação nacional e acompanhe o noticiário de
maior audiência para entender a lógica do jornalismo praticado no
Brasil.
As grandes empresas de comunicação estabeleceram, nos últimos anos, uma
relação de parcerias que eliminou a concorrência entre elas, enquanto o
propósito político comum unificou os discursos e as narrativas, fazendo
com que os jornais ficassem muito parecidos entre si.
Se já não havia uma diversidade aceitável em cada um deles, agora fica
ainda mais patente que os principais meios de comunicação do país atuam
como uma só redação, um só corpo editorial orientado por uma visão de
mundo dominante e conservadora. Essa característica fica escancarada na
forma como os conteúdos de um jornal são complementados e referendados
pelos demais, em sequências nas quais uma declaração, um boato ou uma
anedota percorre todo o campo midiático, acabando por se afirmar como
verdade incontestável.+
Seguindo esse roteiro, é possível identificar claramente na narrativa
comum e mutuamente referente dos três diários de circulação nacional
uma agenda política que tem como eixo central a manutenção de um quadro
de crise em torno da presidente Dilma Rousseff, ao mesmo tempo em que se
procura minar a reputação do ex-presidente Lula da Silva.
Abominações políticas
Faz sentido: não é conveniente dar guarida aos manifestantes que pedem o
impeachment da atual presidente, se Lula continuar com chances de
voltar ao Planalto em 2018.
Por isso, a imprensa busca dar
consistência ao discurso desses atores recentemente inseridos na cena
pública após os protestos do dia 15 de março passado. Repórteres,
editores e âncoras de programas de entrevistas procuram tornar
compreensíveis e palatáveis as ideias politicamente toscas expressas por
tais protagonistas, apresentando-os como exemplos da razão nacional.
Essa ação tem sido mais intensa na Folha de S.Paulo e na TV Cultura de
São Paulo – e, por extensão desta, na revista Veja –, mas se repete em
entrevistas e artigos nos outros jornais, nos quais se procura
apresentar um engenheiro, um adolescente de traços orientais e um jovem
negro como representantes da “voz das ruas” (sobre a introjeção da voz
do opressor que estes representam,
clique aqui).
Lidos no original, os discursos dos personagens
que a imprensa selecionou
para representar esse movimento exemplificam com clareza o que a
filósofa Marilena Chauí chamou, há três anos, de “abominações” (
ver aqui).
É difícil analisar diretamente as visões de mundo expressadas por esses
novos ídolos da mídia, porque, como verdadeiras aberrações do pensamento
político, escapam aos paradigmas clássicos. Mas pode-se ler a versão
revista e palatável de suas ideias, que a imprensa procura apresentar ao
público.
Na edição de quinta-feira (2/4), o Estado de S.Paulo assume, em
editorial, a crença de tais personagens, de que há uma orientação
“bolivariana” no poder Executivo – o que soa quase como achincalhe à
inteligência do leitor mais exigente. Na Folha de S.Paulo, um
articulista recomenda que os movimentos que organizam os protestos
simplifiquem e unifiquem suas bandeiras, e afirma que eles representam
“o que a rua quer”.
Esses personagens não representam as ruas. São a expressão da pobreza
intelectual que caracteriza a lumpenburguesia, essa extração das
classes médias urbanas composta pelos abastados abestados, analfabetos
políticos que desprezam a democracia e repudiam a mobilidade social, da
qual são beneficiários.
É com essas excrescências que a imprensa produz diariamente seus quitutes.