O escravo da Casa Grande e o desprezo pela esquerda
Por Mauro Iasi. 
Malcom
 X comparou, certa vez, os negros que defendiam a integração na 
sociedade norte americana com escravos da casa. Para defender suas 
pequenas posições de acomodação na ordem escravista, buscavam imitar 
seus senhores, copiar seus maneirismos, usar suas roupas, sua linguagem,
 adotando o nome da família de seus senhores. Daí o “X” no lugar do 
sobrenome do revolucionário norte americano.
| Reprodução | 
Não
 é de se estranhar que os escravos da Casa Grande se incomodassem com as
 revoltas vindas da Senzala, pois poderiam atrapalhar sua instável 
acomodação, sua sobrevivência subserviente.
Dois textos 
recentes me chamam a atenção, não sei se produzidos pela mesma pena, mas
 certamente movidos pelo mesmo ódio e desprezo contra a esquerda em 
nosso país. Um deles é de autoria do sociólogo Emir Sader neste blog (“Não é a Copa, imbecil, são as eleições”), que recentemente comparou os manifestantes a cachorros vira-lata, outro é o editorial do Brasil de Fato de 03/06/2014 (“Eleições presidenciais e o papel do esquerdismo“) que,
 não contente em se aliar ao campo de apoio a Dilma, abriu as baterias 
contra a esquerda – aquela mesma que em muitas situações apoiou esse 
jornal, não apenas nas campanhas para sua sustentação, mas participando 
de seu conselho editorial e apoiando nos momentos mais difíceis.
Tanto
 o sociólogo como o jornal têm o direito de apoiar quem quiserem, de 
emitirem suas opiniões, mas o que nos chama a atenção é a necessidade de
 atacar a esquerda e a forma deste ataque. Como em todo o debate que 
busca fugir do mérito da questão (talvez pela dificuldade em realizar o 
debate neste campo) lança-se mão de estigmas. É preciso caracterizar os 
oponentes como “esquerdistas”, “minorias”, “intelectuais vacilantes da 
academia”, ou mais diretamente de “imbecis”.
O argumento central da posição expressa nos textos citados, mas explícita e de forma mais clara no editorial do Brasil de Fato,
 poderia ser assim resumida: os governistas teriam uma “visão ampla da 
luta de classes”, que articularia três dimensões – a luta social, a 
ideológica e a institucional – atuando com “firmeza ideológica e 
flexibilidade tática”; enquanto os supostos esquerdistas “ignoram a 
correlação de forças” no Brasil e na America Latina e concentram muito 
mais nas criticas do que nas realizações dos governos “populares”. Isso 
porque subordinam suas posições, como “vacilantes intelectuais da 
academia” ou partidos “sem o mínimo peso eleitoral”, não a uma análise 
concreta de uma situação concreta, mas a uma “fidelidade” ao marxismo 
ortodoxo.
O resultado desta premissa, segundo a posição expressa, é o seguinte:
“Por
 isso, para serem condizentes com uma análise concreta de uma situação 
concreta, os partidos de esquerda sem o mínimo de peso eleitoral, que 
não conseguem enraizar sua mensagem programática e nem contribuir para o
 avanço da consciência de classe das massas populares durante as 
eleições deveriam estar fortalecendo a candidatura de Dilma, mesmo sabendo que o neodesenvolvimentismo em curso não é uma alternativa popular.”
Mesmo
 na posição de um “vacilante intelectual do mundo acadêmico, fiel ao 
marxismo e de um partido sem peso eleitoral”, gostaria de iniciar o 
debate afirmando que nossos colegas deveriam seguir, antes de mais nada 
seus conselhos. Se não vejamos. O erro do “esquerdismo”, que o impediria
 de realizar uma análise concreta de uma situação concreta, é que “não 
conseguem identificar frações de classes e seus diversos interesses em 
torno do governo Dilma”.
Então
 vamos lá. Quais são as classes e frações de classe que se somam aos 
governos do PT? O PT produziu-se como experiência histórica da classe 
trabalhadora que acabou por projetar-se numa organização política que, 
sem perder a referencia passiva desta classe, assumiu posturas políticas
 que se distanciam dos objetivos históricos dos trabalhadores. Não se 
trata de uma questão de origem de classe, mas do caráter de classe da 
proposta política apresentada em nome dos trabalhadores.
É
 preciso explicar aos leitores que nós (intelectuais vacilantes fieis ao
 marxismo) não concebemos a classe social como mera posição nas relações
 sociais de produção e formas de propriedade, mas como uma síntese de 
determinações que partindo da posição econômica, devem se somar a ação 
política, a consciência de classe e outros aspectos. Dessa forma, um 
setor da classe trabalhadora, ainda que partindo originalmente deste 
pertencimento, pode em sua ação política e na sua intencionalidade, 
afirmar outro projeto societário que não aquele que nossa experiência 
histórica constitui como meta – o socialismo –, sendo capturado pela 
hegemonia burguesa, naquilo que Gramsci chamou de “transformismo”.
No
 caso do PT acaba por se consolidar um projeto que tem por principal 
característica quebrar as reivindicações sociais do proletariado e dar a
 elas uma feição democrática; despir as formas puramente políticas das 
reivindicações da pequena burguesia e apresentá-las como socialistas, e 
tudo isso para exigir instituições democráticas republicanas “não como 
meio de suprimir dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas 
como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia.” 
(Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, p. 63).
Assim
 o PT em seu projeto (e prática) de governo apresenta em nome da classe 
trabalhadora um projeto pequeno-burguês. Mas o PT não governa sozinho, 
têm razão nossos colegas. É necessário seguir nossa análise para 
responder quais classes e setores de classe compõem o governo Dilma. 
Como o centro do projeto político foi deslocado para chegar ao governo 
federal e lá se manter, são necessárias alianças e até mesmo o programa 
de reformas democrático-populares é por demais amplo (seria o que André 
Singer chama de “reformismo forte”), então, rebaixa-se o programa (um 
“reformismo fraco”) e amplia-se as alianças. Para qual direção?
Não
 podemos confundir a sopa de letrinhas do leque de alternativas 
partidárias com segmentos de classe, mas eles são um indicador das 
personificações desses interesses. As alianças inicialmente pensadas 
como um leque entorno da classe trabalhadora, setores médios e pequenos 
empresários, se amplia bastante agora no quadro de um Pacto Social. 
Vejamos:
“Um
 novo contrato social, em defesa das mudanças estruturais para o país, 
exige o apoio de amplas forças sociais que dêem suporte ao Estado-nação.
 As mudanças estruturais estão todas dirigidas a promover uma ampla 
inclusão social – portanto distribuir renda, riqueza, poder e cultura. 
Os grandes rentistas e especuladores serão atingidos diretamente pelas 
políticas distributivistas e, nestas condições, não se beneficiarão do 
novo contrato social. Já osempresários produtivos de qualquer porte estarão
 contemplados com a ampliação do mercado de consumo de massas e com a 
desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracteriza o 
atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno significa 
dar previsibilidade para o capital produtivo.”
Resoluções do 12.º Encontro Nacional (2001). Diretório Nacional do PT (São Paulo, 2001, p. 38).
Este
 pacto social com “empresários produtivos de qualquer porte” não 
deixaria de fora nem mesmo os “rentistas”, como se comprovou. A chamada 
governabilidade exigiria que as personificações partidárias destes 
interesses estivessem na sustentação do governo, de forma que o governo 
de “centro” (pequeno-burguês) buscou e conseguiu se aliar com siglas da 
direita (PMDB, PTB, PP, PSC e outras). Na composição física do governo 
vemos setores de classes diretamente representados, como o caso dos 
interesses dos grandes monopólios no Ministérios da Indústria, dos 
bancos no Banco Central, do agronegógio no Ministério da Agricultura, 
assim como o controle das agências reguladores e outros espaços formais e
 informais de definição da política governamental.
Evidente
 que haverá participação dos “trabalhadores”, mas há aqui uma diferença 
essencial. Enquanto os setores do grande capital monopolista levam suas 
demandas à política de governo e as efetivam, as demandas dos 
trabalhadores são, por assim dizer, filtradas. Enquanto a CUT defendia 
suas resoluções em defesa da previdência pública, um ex-presidente da 
entidade assume o ministério para implementar a reforma da previdência, 
assim como a luta pela reforma agrária é tolerada, mas filtrada e 
peneirada em espaços intermediários para que os militantes comprometidos
 não cheguem aos espaços de decisão sobre a questão fundiária e agrária,
 estes reservados aos representantes do agronegócio.
Podemos
 ver militantes e personificações de segmentos importantes da classe 
trabalhadora em áreas como a saúde, a assistência social e outras, no 
entanto, o espaço efetivo de implementação de políticas ficaria 
constrangida pelas áreas de planejamento e a lógica da reforma do Estado
 para produzir a subserviência à lei de responsabilidade fiscal e a 
política de superávits primárias que tanto agrada aos banqueiros.
Recentemente
 a presidente Dilma, através da deputada Kátia Abreu (aquela mesmo!!!) 
da bancada ruralista, garimpava apoio entre os diferentes setores do 
agronegócio (gado, soja, milho, etc.), enquanto Paulo Maluf posava 
sorridente ao lado do candidato do PT ao governo de São Paulo em troca 
de alguns minutos no tempo de TV.
O
 governo de pacto social com os setores da grande burguesia monopolista e
 a pequena burguesia que sequestrou a representação da classe 
trabalhadora, implica nos limites da ação de governo, isto é, impedem o 
“reformismo forte” e impõe um “reformismo fraco”. Para atender as 
exigências da acumulação de capital dos diversos segmentos da burguesia 
monopolista, as demandas dos trabalhadores têm que ser contingenciadas, 
focalizadas, gotejadas, compensatórias.
Queria-se
 acabar com a fome e a miséria, mas devemos nos contentar em combater as
 manifestações mais agudas da miséria absoluta. Queríamos uma reforma 
agrária (e mais que isso, não é, uma nova política agrícola e de 
abastecimento, etc.), mas devemos nos contentar com crédito para 
assentamentos competirem com o agronegócio e assistência para os que não
 conseguem. Não se revertem as privatizações realizadas e cresce a 
lógica privatista com as fundações público privadas, as OSs e outras 
formas diretas ou indiretas de privatização.
O
 problema é que, mesmo assim, dando tanto à burguesia monopolista e tão 
pouco aos trabalhadores, a burguesia sempre vai jogar com várias 
alternativas, e, na época das eleições, vai ameaçar, chantagear e 
negociar melhores condições para dar sua sustentação. O leque de 
alianças da governabilidade petista não implica fidelidade dos setores 
do capital monopolista, adeptos do amor livre, entendem o apoio ao 
governo do PT como uma relação aberta. Por isso aparecem na época das 
eleições na forma de suas personificações como partidos de “oposição”.
Tal
 dinâmica produz um movimento interessante. Amor e união com a burguesia
 monopolista durante o governo e pau na classe trabalhadora (combinada 
com apassivamento via políticas focalizadas e inserção como 
consumidores); e briga com a burguesia e promessas de amor com os 
trabalhadores na época de eleição!
A
 abertura da Copa e a hostilização vinda da área VIP contra a presidente
 funciona aqui como uma metáfora perfeita: eles fazem a festa para os 
ricos, enchem o estádio com a elite branca e rica, esperando gratidão, 
mas a elite xinga a presidente.
A
 artimanha governista é circunscrever a propalada análise concreta de 
uma situação concreta à conjuntura da eleição e não do período histórico
 em que esta conjuntura se insere. Graças a esta mágica, desaparece o 
governo real entre no lugar um mito que resiste ao neoliberalismo contra
 as forças do mal igualmente mitificadas e descarnadas de sua 
corporalidade real. É o odioso “neoliberalismo”, que vai retroceder nos 
incríveis ganhos sociais alcançados e desestabilizar os governos 
progressistas na America Latina. Vejam, nos dizem, como são piores que 
nosso governo, precisamos derrotá-los para evitar o retrocesso e as 
privatizações. Mas uma vez derrotados eleitoralmente os adversários de 
direita… quem privatizou o Campo de Libra? Colocando exército para bater
 em manifestantes? Quem aprovou a lei das fundações público-privadas que
 abriu caminho para a privatização da saúde e outras? Quem aprovou a lei
 dos transgênicos, o código florestal e de mineração?
Não
 são iguais, é verdade. São duas versões distintas disputando a direção 
do projeto burguês no Brasil. Um o capitalismo com mais mercado e menos 
Estado, outro o capitalismo com mais Estado para garantir a economia de 
mercado.
Precisamos
 circunscrever a análise da correlação de forças ao momento eleitoral 
para evitar a derrota do governo Dilma, vejam, “mesmo sabendo que o 
neodesenvolvimentismo em curso não é uma alternativa popular”!
Então,
 comecemos por aí: o atual governo NÃO É UM ALTERNATIVA POPULAR! Já é um
 bom começo. Mas tenho uma péssima notícia… também não é 
neodesenvolvimentista, seja lá o que isso queira dizer. É um governo de 
pacto social que, partindo de um programa e uma concepção 
pequeno-burguesa, crê ser possível manter as condições para a acumulação
 de capitais o que leva a uma brutal concentração de renda e riqueza nas
 mãos de um pequeno grupo, ao mesmo tempo em que, pouco a pouco e muito 
lentamente, apresenta a limitada intenção de diminuir a pobreza absoluta
 e incluir os trabalhadores na sociedade via capacidade de consumo 
(bolsas, salários e crédito, etc.).
Ora,
 o que deve fazer a esquerda “sem o mínimo de peso eleitoral, que não 
consegue enraizar sua mensagem programática e nem contribuir para o 
avanço da consciência de classe das massas populares”? Dizem os 
governistas: votar na Dilma. No entanto, desculpe a insistência de quem 
faz análise concreta de situação concreta não só quando chegam as 
eleições e água bate na bunda; mas, e se for exatamente este processo de
 pacto social e de implementação de um social-liberalismo que está 
impedindo o “avanço da consciência de classe”? Depois de 12 anos de 
governos desta natureza a consciência de classe está mais avançada que 
estava nos anos 80 e 90? Nos parece que não.
Se
 somos tão insignificantes, irrelevantes e idiotas… por que é necessário
 bater desta forma na esquerda? Pelo simples fato que nossa existência, a
 existência de uma ESQUERDA (não a pecha de esquerdismo que tenta se 
impor contra nós como estigma), é a denuncia explícita dos limites e 
contradições que o governismo e seus lacaios querem jogar para debaixo 
do tapete.
Para
 manter a “imagem” do governo petista (Sader está preocupado com a 
imagem) é preciso uma operação perversa: atacar quem denuncia os limites
 desta experiência, não importando o quanto desqualificado e hipócrita 
seja o ataque, estigmatizando, despolitizando o debate. Primeiro foi 
necessário destruir a esquerda dentro do PT e sabemos os métodos que 
foram usados nesta guerra suja. Na verdade o que vemos agora contra a 
esquerda fora do PT é uma projeção do ataque vil e brutal que 
companheiros da esquerda petista sofreram e (aqueles que ainda resistem 
lá no PT) ainda sofrem (esquerdistas, isolados das massas, sem expressão
 eleitoral, irresponsáveis, etc.). E depois que conseguirem isolar, 
estigmatizar e satanizar a crítica de esquerda a essa experiência 
centrista e rebaixada de governo? Quando forem atacados pela direita que
 não guarda nada a não ser desprezo para com os escravos da casa grande?
As
 manifestações seriam, segundo os governistas, uma ofensiva da direita 
para sujar a imagem bela e idealizada do governo e o esquerdismo joga 
água neste moinho. Interessante que a necessidade de uma análise 
concreta de uma situação concreta, da correlação de forças e das classes
 não é necessária quando se trata das manifestações. MTST, garis, 
metroviários, professores, são todos imbecis marionetes da direita, 
manipulados por ela e quando pensam lutar por seus direitos e demandas 
estão fazendo o jogo da direita. Somos nós que fazemos o jogo da 
direita… tem certeza?
De
 nossa parte, não nos incomodamos, porque não esperamos nada mais que 
isso como consequência do progressivo, e triste, processo de 
descaracterização e rebaixamento político. Não será a primeira vez que a
 política pequeno-burguesa, que se diz representante de todo o povo, se 
alia ao trabalho sujo da direita para combater a esquerda.
Respondemos
 àqueles que acreditam que estamos isolados com as palavras de Lenin, 
com quem aprendemos a fazer análise concreta de uma situação concreta:
Pequeno grupo 
compacto, seguimos por uma estrada escarpada e difícil, segurando-nos 
fortemente pela mão. De todos os lados, estamos cercados de inimigos, e é
 preciso marchar quase constantemente debaixo de fogo. Estamos unidos 
por uma decisão livremente tomada, precisamente a fim de combater o 
inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o início 
nos culpam de termos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da conciliação.
 Alguns dos nossos gritam: Vamos para o pântano! E quando lhes mostramos
 a vergonha de tal ato, replicam: Como vocês são atrasados! Não se 
envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho 
melhor? Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir 
para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano,
 e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a 
transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão,
 não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também
 nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não
 só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!
(Lenin, Que fazer?, São Paulo: Expressão Popular, 62).
(Lenin, Que fazer?, São Paulo: Expressão Popular, 62).