Filósofo Patrick Viveret analisa as Zonas A Defender (ZADs),
em que ativistas resistem a projetos devastadores criando novas formas
de convívio
21/01/2015
Christian Losson e Sylvain Mouillard,
de Paris (França)
Um
novo elemento passou a marcar, há meses, a paisagem política (e
geográfica…) da França: as Zonas a Defender [Zones à Défendre, ZADs].
Não são uma novidade absoluta – mas uma reelaboração.
Em diversas
partes do país, eclodiram mobilizações contra grandes projetos ou
obras, considerados devastadores ambiental ou socialmente. Mas há ao
menos duas novidades, em relação a protestos semelhantes, presentes nas
lutas sociais em todo o mundo há décadas.
As novas ações têm
caráter territorial. Além de promover campanhas contra os projetos
contestados, ocupa-se os locais em que está planejada sua construção,
para impedi-la.
Na região de Nantes, noroeste francês, centenas
de pessoas vivem, há mais de dois anos, numa área de 1,6 mil hectares,
onde está prevista a construção de um novo aeroporto internacional
(Nantes já possui um e está a apenas duas horas e meia, por trem, de
Paris). No sudoeste do país, outra ocupação contesta a construção de uma
barragem sobre o Rio Tescou. Afirma-se que ela servirá a apenas um
pequeno grupo de agricultores capitalizados, e alagará o habitat de
espécies animais e vegetais importantes. Já no vale do Rio Isère,
sudeste francês, confronta-se a destruição de parte da Floresta de
Chambaran, para que seja erguido em seu lugar um complexo turístico…
Embora tenham surgido em 2012, as ZADs multiplicaram-se recentemente.
Há dezenas delas, a ponto de terem se tornado dor de cabeça para
governantes interessados em lançar novos empreendimentos.
A
segunda novidade são os experimentos pós-capitalistas. Cada ZAD
converte-se num laboratório de novas práticas. Cultiva-se sem
agrotóxicos. Criam-se animais sem confiná-los ou submetê-los a
crueldades (um setor do movimento é ativamente vegano). Vive-se em
construções erguidas segundo métodos de permacultura. Considera-se que a
terra é um bem-comum. Usam-se moedas solidárias. Busca-se substituir as
lógicas de competição pela colaboração e a reciprocidade. Acolhe-se
imigrantes, num continente onde cresce a sombra da xenofobia. Busca-se
ativamente tornar as comunidades inter-generacionais.
Em outro
traço marcante, as ZADs nutrem profunda desconfiança pelo sistema
político institucional, explica Nicholas Haringer, um estudioso do
altermundialismo. Seus participantes, em geral, perderam a esperança num
sistema democrático em crise e corrompido pelo poder econômico. Não
aceitam submeter sua luta a parlamentos em que não enxergam chances
reais de debate aberto ou de influência cidadã. Também por isso,
resistem frequentemente a ações da polícia.
A ZAD de Nantes foi
semi-destruída em outubro, por uma carga brutal da polícia. Na que
resiste à barragem sobre o Rio Toscou, um jovem de 21 anos foi morto em
dezembro, quando um bomba atirada em um ato de repressão explodiu sobre
suas costas. Os incidentes não levaram os “zadistas” a recuar.
O que revela a aparição deste novo fenômeno de luta social? Em entrevista ao jornal
Libération, traduzida por
Outras Palavras
e publicada a seguir, o filósofo Patrick Viveret aponta o surgimento,
no cenário político contemporâneo, de uma “polarização criativa” — ainda
que muito perigosa.
Por um lado, diz ele, o capitalismo
tornou-se, desde a crise de 2008, muito mais desumano e radicalizado: um
“hipercapitalismo brutal”, em que 67 pessoas têm tanta riqueza quando 3
bilhões de outras; e em que a financeirização tornou-se tão intensa que
o tempo médio de posse de uma ação de empresa reduziu-se a… 12
segundos!
Em resposta, prossegue Viveret, também os movimentos
que lutam por novas lógicas sociais teriam derivado sua posição. Já não
bastaria anunciar, nos Fóruns Sociais Mundiais, que “um outro mundo é
possível”. É preciso dizer que “outro mundo possível existe” — ou seja,
colocar em prática desde já, ainda que de forma localizada, ações que
combinem resistência, visão transformadora e o que o filósofo chama de
“experimentação antecipatória”. Este tipo de atitude, imagina Viveret,
irá se mostrar ainda mais importante e inspirador caso a crise do
sistema continue a se aprofundar e a amputar direitos. Nesse caso, diz
ele, “devemos nos preparar para organizar a resiliência nos
territórios”.
Patrick Viveret é filósofo no Instituto de Estudos
Políticos de Paris e um teórico particularmente inovador em temas como
riqueza, moeda, crédito, globalização e democracia. Publicou, entre
diversas obras, "Reconsiderar a Riqueza" (Ed. UnB, 2006) em que disseca a
parcialidade de cálculos como o do PIB e os interesses que há por trás
deles. Participa ativamente, desde 2001, dos Fóruns Sociais Mundiais.
Colabora atualmente com a revista francesa
Territoires. A entrevista vem a seguir. (
Antonio Martins)
O que significa a multiplicação das ZADs nas narrativas sobre a nossa sociedade, hoje?
Patrick Viveret
– As ZADs agem qual um espelho invertido. Elas contestam os modelos de
crescimento, de produção, de consumo. E de descarte: nossa época produz
lixos e desperdício, enormemente. Elas participam de um movimento muito
mais amplo, que coloca a questão do discernimento entre a utilidade e a
inutilidade. Hoje, a economia dominante é, de fato, mais que nunca
caracterizada por sua dissociação da política e da ética. Dissociação
que o teórico do marginalismo, Léon Walras, resumiu da seguinte maneira
em seu tratado de economia política pura: “que uma substância seja
pesquisada por um médico para tratar ou por um assassino para envenenar é
uma questão muito importante de outros pontos de vista, mas
completamente indiferente do nosso. Para nós, a substância é útil nos
dois casos”.
O que significa isso?
Este
partidário da economia social denunciava uma teoria que julgava natural
eximir-se de qualquer consideração sobre a natureza benéfica ou
prejudicial das atividades econômicas, ao não interessar-se senão pelo
fluxo monetário que elas geram. A resistência das ZADs contribui para
questionar o tripé da crença dominante: crescimento, competitividade,
emprego. Um mantra que não se interroga nem sobre a natureza do
crescimento (que comporta vários elementos destrutivos) nem sobre os
vencidos na corrida pela competitividade (por exemplo, o Mali, a África
Central, a Ucrânia), nem sobre a natureza do emprego (a Organização
Internacional do Trabalho fala de “trabalho decente” para melhor
sublinhar a expansão dos empregos indecentes).
As
ZADs opõem cooperação à competição; questionam também o capitalismo, o
papel do Estado, as falhas da democracia representativa?
Não
foi preciso esperar a chegada das ZADs para emergirem a resistência,
ações, experiências. Os Fóruns Sociais Mundiais (FSM), desde a primeira
edição em Porto Alegre em 2001, passando pelo FSM de Belém, igualmente
no Brasil, em 2009, que colocaram a questão do
bien-vivir, ou do
convivere,
da “convivialidade”, ou o próximo em Tunis, em março de 2015, apontam,
de modo global, as mesmas críticas. Existe, para usar a fórmula de
Bénédicte Manier, “um milhão de revoluções tranquilas”; milhares de
alternativas, como as que cristalizam o movimento “Alternatiba”;
coletivos como esse, por uma transição cidadã, em que um mundo em
mudança é experimentado, de modo criativo.
Estamos no “glocal”, a interpenetração e rede de lutas globais e locais?
Sim.
Com uma sobre-representação das ZADs, na França, com relação a outras
formas de luta e de alternativas. Incluindo os protestos, às vezes
violentos, sobre-explorados pela televisão. Podemos certamente opor o
fato de que a própria sociedade é violenta, como o Estado ou as forças
da lei. Mas é importante distinguir conflito de violência. As formas de
conflito não violento foram sempre, historicamente, as mais eficazes e
permitiram evitar que a violência se voltasse contra seus próprios
autores, como pudemos ver nas primaveras árabes. A violência coloca em
questão a erradicação do inimigo. Já o conflito questiona os papeis
sociais do adversário, sem atacar as pessoas. A democracia é a arte de
transformar inimigos em adversários. A resposta à violência econômica,
social, societal, não pode ser outra forma de violência. As posturas do
líder do Medef [sindicato patronal francês], Pierre Gattaz, empenhado
numa luta de classes de ricos, são brutais e violentas e podem conduzir a
respostas igualmente duras.
Assistimos, também,
a articulações inéditas em torno das ZADs, como nos movimentos por
justiça climática, que agregam associações legalistas constituídas,
pequenos produtores ecológicos ou militantes radicais em torno de
diferentes ações que defendem interesses comuns…
É
verdade. Mas a ocupação dos lugares contra os grandes projetos inúteis é
conflito positivo, não é violência. Não se deve dar prioridade ao
desenvolvimento disso que Wilhelm Reich, na
Psicologia de Massa do Fascismo,
evocava ao falar de “praga emocional”. Quando as lógicas do medo e a
tendência ao recuo identitário importam mais que toda racionalidade. O
economista e Prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz fala de duplo
fundamentalismo. O primeiro, comercial, retoma o que Karl Polanyi, em
A Grande Transformação,
chamava de sociedade de mercado, mina os laços sociais, tensiona as
solidariedades, e vem nutrir o segundo: o fundamentalismo de identidade.
Que não é senão religioso, como mostra a Frente Nacional.
As ZADs, como outras experimentações, ilustram também a carência de respostas políticas à altura dos desafios?
É
necessária uma outra abordagem da riqueza, mas também da democracia e
do poder, diante do risco de um sistema oligárquico. Uma democracia não
pode definir-se somente por sua parte quantitativa (a lei do número),
que esquece a parte qualitativa: a cidadania. Aqueles que lançam o
alerta, por exemplo, podem ser muito minoritários e, não obstante,
oxigenar a mutação da democracia. Não há uma representação legítima sem a
forte participação dos cidadãos. Cada grupo de atores, aí incluindo as
ZADs, deve também aceitar que pode haver procedimentos democráticos mais
amplos, consultas reais aos cidadãos, que podem terminar com referendos
em territórios. A tentação da imposição pela força é muito presente na
classe dominante, mas pode estar também entre os dominados.
Em
2001, o altermundialismo falava de um “outro mundo possível”. Mas,
apesar da crise, desde 2007 as lógicas do capitalismo nunca foram tão
ferozes. O que mudou em quinze anos?
Como em todos os
grandes períodos de mutação histórica, assistimos a uma dupla
polarização. A polarização regressiva: o hipercapitalismo, que jamais
foi tão inumano, tão brutal, traduz o fim de um ciclo; ele se
radicalizou porque se sabe ameaçado. Esta é uma característica do fim de
ciclos históricos. Os últimos anos da colonização francesa na Argélia
foram, da mesma forma, os mais violentos. Desde 2008, o sistema torna-se
uma caricatura de si mesmo. Todos os indicadores de antes da crise se
agravam: jamais existiram tantos derivativos financeiros no mundo, da
ordem de 800 trilhões de dólares, segundo o Banco Internacional de
Compensações. Jamais o tempo médio de posse de uma ação foi tão curto:
12 segundos! O hipercapitalismo é incapaz de pensar os grandes desafios
do século 21: ele ignora a “mundialização”, como dizia Edouard Glissant,
por não se concentrar senão em “sua” mundialização, a globalização
financeira. O que diz esse mundo em que 67 pessoas, segundo a Oxfam,
possuem tanto quanto 3 bilhões de outras? Essa é a fratura que está se
abrindo, num mundo que morre. A humanidade se confronta com a obra de
sua própria humanização.
E o que você chama de polarização criativa?
Ela
está precisamente ali, como o mundo novo, o novo modo de viver junto.
Passamos de um “outro mundo é possível” a um “outro mundo possível
existe”. Estamos no tripé do sonho. O “R” da resistência, o “V” da visão
transformadora que desenvolve o imaginário, o “E” da experimentação
antecipatória, tudo iluminado pelo “E” da [
évaluation]
avaliação como discernimento. Devemos nos preparar para uma nova grande
crise e, portanto, para organizar a resistência nos territórios. A
mudança de perspectiva é essencial: uma abordagem diferente para a
economia, a democracia, a civilização, como defendido por Edgar Morin. (
Outras Palavras)
Tradução: Inês Castilho