Informar de modo a permitir que compreendam por si os princípios metafísicos que estão por trás de todos os eventos bons e ruins que se manifestam em nossa realidade; princípios ocultos que estão enterrados debaixo de muito entulho político-religioso; econômico-social; histórico-cultural.
‘Encontrei escravos até em fazenda de deputados’, diz fiscal
Marinalva Dantas, que atuou como fiscal do Ministério do Trabalho, disse já ter resgatado 1,5 mil pessoas
BBC BRASIL.com
2 jul 201506h50
atualizado às 17h36
Quando perguntam a Marinalva Dantas quantos trabalhadores escravos ela
libertou no Brasil, ela diz: "Pessoalmente, resgatei 1,5 mil pessoas.
Com outros colegas, foram mais de 2 mil".
Os números podem estar subestimados. O recém-publicado livro (Editora
Saraiva), do jornalista Klester Cavalcanti, diz que 2.354 foram
libertadas desde 1995 - ou em operações lideradas por Dantas como fiscal
ou em operações de uma equipe especial do Ministério do Trabalho da
qual ela participava.
Todos estes casos ocorreram em zonas rurais, em fazendas de Estados das
regiões Centro-Oeste e Norte do país, onde há pouco controle sobre as
relações de trabalho e muitos abusos.
Nascida em uma família pobre e criada por tios que tinham uma situação
financeira melhor, Dantas diz que escolheu sua profissão ao ser
confrontada com cenas de miséria.
Ela já dirigiu a Divisão de Articulação de Combate ao Trabalho Infantil
do Ministério do Trabalho e atualmente trabalha como auditora-fiscal do
trabalho em Natal, no Rio Grande do Norte.
Eu seu trabalho, Marinalva Dantas se deparou com miséria, exploração, tortura e assassinatos
Foto: Reprodução / BBCBrasil.com
Aos 61 anos, diz que seu trabalho afetou negativamente a vida de seus
filhos e seu casamento, mas garante que também lhe trouxe muitas
satisfações.
Em entrevista para a BBC Mundo, Dantas avalia que o país fez avanços
importantes no combate à escravidão moderna, mas que ainda há dezenas de
milhares de trabalhadores nesta condição.
BBC Mundo - O que mais te marcou em seu trabalho?
Marinalva Dantas -
As cenas mais chocantes que guardo na memória envolvem crianças.
Imagine um menino trancado em uma propriedade, sem saber como é o resto
do mundo. Ele só conhece aquele pequeno espaço onde seus pais e ele
trabalham. Cresce ali dentro e não sabe que existem casas de tijolos,
com brinquedos, música, pão.
Eles só conhecem casas de plástico preto, amarelo ou azul. Estas são as
cores da miséria do trabalho escravo. Eles não conhecem o branco do
leite, porque até na fazendas de gado só têm direito a farinha, feijão e
arroz.
Uma criança perdeu um olho trabalhando em uma fazenda de médicos. Outro
tinha um único brinquedo: a motosserra. Ele a montava e a desmontava.
Para ele, era uma atividade lúdica e não percebia a atrocidade deste
fato.
BBC Mundo - Qual era a situação dos trabalhadores escravos que encontrou?
Dantas -
Uma das piores desgraças que pode haver na escravidão é o assassinato.
Alguns foram torturados, mas não chegaram a morrer, porque levam surras
com o lado plano do machado, que não corta. Eles ficam com as marcas.
Isso é uma das coisas mais terríveis que podem acontecer para eles,
porque elas ficam à vista de seus colegas, que baixam a cabeça para que a
vítima não tenha tanta vergonha.
A partir daí, o único caminho que encontra na vida é fugir, mesmo se
arriscando a morrer. Isso ainda acontece. A escravidão está cada vez
mais escondida. Mas sempre há alguém que consegue fugir, diz de onde vem
e leva uma equipe a este lugar.
BBC Mundo - Você denunciou o caso de um homem que foi castigado por pedir um copo d'água.
Dantas -
Sim, foi no Pará, em 2011. Ele pediu, porque estava bebendo uma água
imunda. Ele disse que era muito suja e cheia de bichos. Então, ele pediu
uma água limpa porque acreditava que tinha esse direito, que é uma das
primeiras coisas que pensamos em termos de dignidade humana. Mas
percebeu que era uma afronta exigir algum direito, por mínimo que fosse.
Ele levou uma surra diante dos outros para que servisse de exemplo e
ninguém ousasse reivindicar alguma coisa, porque eles não eram nada.
Quando ele me contou isso, não aguentei e chorei.
Alojamento de trabalhadores escravos foi descoberto por Dantas em uma de suas operações
Foto: Reprodução / BBCBrasil.com
BBC Mundo - Estes casos mantêm a forte ligação racial que tinha antes a escravidão no Brasil? São todos negros?
Dantas -
Não. Se fossem todos negros, chamaria mais a atenção, porque a
escravidão antiga era assim. Como foi abolida, começaram a escravizar
homens livres de qualquer cor: encontramos escravos ruivos de olhos
azuis, do sul do país, índios, negros, mulatos...
Hoje, não tem uma conotação de cor nem raça. É de pobreza e miséria.
Pessoas vulneráveis, que cometeram algum delito e estão fugindo da
Justiça. Há pessoas com lepra e que, por sentirem-se rechaçadas pela
sociedade, tentam se esconder. Pessoas endividadas, passando fome por
problemas climáticos ou econômicos. Os vulneráveis são atraídos pelos
que escravizam.
BBC Mundo - E entre os que escravizam há pessoas educadas e poderosas?
Dantas -
Sim. Já encontrei escravos até em fazendas de deputados e de um
presidente de uma Assembleia Legislativa do Estado do Rio. E eles acham
isso absolutamente normal. Não sentem vergonha quando são descobertos.
BBC Mundo - E o que acontece com eles quando são descobertos? Vão presos?
Dantas -
Há algumas pessoas que têm foro privilegiado por seus cargos, então,
não podem ser processados na Justiça comum. Eles usam todos os recursos
legais possíveis. São tantos que, quando a pessoa é condenada de fato,
ela já está morta. Se a pessoa tem dinheiro e bons advogados,
dificilmente será presa.
BBC Mundo - Já recebeu ameaças por causa de seu trabalho?
Dantas -
Pessoalmente, fui ameaçada duas vezes. Uma por telefone, anônima. A
pessoa disse que estava me seguindo e sabia tudo o que eu fazia. Também
recebi uma proposta indecente de um advogado de um fazendeiro para que
eu dissesse o que seria necessário para negar tudo o que estava vendo no
local.
Disse que não podia negar aquilo, porque era real. Depois, soube que eu
constava em uma lista da morte do Pará. Mas, enquanto estava na ativa,
nunca soube.
Dantas em uma operação contra a escravidão moderna no Pará
Foto: Reprodução / BBCBrasil.com
BBC Mundo - Quantas pessoas ainda se encontram em situação de escravidão no Brasil?
Dantas -
O conceito legal (trabalho escravo) foi ampliado no país. Se a lei
fosse como é hoje quando começamos, em só 15 dias teríamos tirado 23 mil
escravos do Estado de Alagoas em 1995. Mas a lei era muito rígida na
caracterização do trabalho escravo. Quando mudou, foram incluídas
condições de trabalho degradantes como uma das formas de considerar um
trabalho escravo. Isso aumentou o número de escravos no Brasil, por isso
são muitos.
Com o conceito legal antigo, diziam haver 25 mil brasileiros
escravizados. Já libertamos 50 mil. E, com a ampliação do conceito, às
vezes em uma única fazenda de cana de açúcar, encontramos 3 mil pessoas
nesta condição. Se você calcula quantas fazendas de açúcar, gado, soja e
algodão existem, dá um número exorbitante. Dizer que são 150 mil não
seria um exagero.
Mas, agora, o Congresso está querendo retirar este avanço da
legislação, dificultar a configuração do trabalho escravo e proteger os
escravizadores de perderem suas terras. A população ainda não se deu
conta disso.
BBC Mundo - Como é possível que isso ainda ocorra no Brasil?
Dantas -
É algo muito escondido e naturalizado. As pessoas não veem como uma
condição de escravidão. Também apostam no lucro. Arriscam, porque,
quando são descobertos, ainda compensa para eles o tempo que passaram
explorando trabalhadores sem pagar nenhum direito. Eles pagam com feijão
e arroz. Intimidam as pessoas, que não podem sair da propriedade. O
objetivo é esse: o lucro desmedido.
BBC Mundo - O que precisa mudar para que isso acabe?
Dantas -
A vontade política é fundamental. Acreditamos que vamos conseguir,
porque a sociedade está cada vez mais consciente. Antes, tínhamos que
provar que existia o trabalho escravo, porque nos ridicularizavam.
Agora, está devidamente provado que a escravidão existe.
Quando me deparei com cenas fortes, disse: "Esta é minha luta e vou
dedicar a minha vida a acabar com isso". Então, os brasileiros precisam
entender que de nada serve um hino nacional que menciona duas vezes a
palavra "liberdade" se há cidadãos que não são livres. Precisam deixar
de comprar roupas fabricadas com trabalho escravo, azeite extraído por
escravos. Tenho confiança. Se não tivesse, não estaria lutando.
BBC Mundo - Como este trabalho afetou sua vida?
Dantas -
Afetou muito minha vida familiar, porque meus filhos foram muito
afetados pela minha ausência. Por causa da sua idade, eles não tinham
condições de entender o que sua mãe estava fazendo. E tinham muito medo
deste mundo onde eu estava, de que não voltasse. Isso afetou muito a
vida de meus filhos e de meu casamento, que terminou, porque uma esposa à
distância não é algo bom para nenhum marido.
BBC Mundo - E que satisfações te trouxe?
Dantas -
Ver a felicidade em cada libertação que fazíamos. Ver um homem
sentindo-se normal. Ver eles se arrumando e se produzindo para voltar à
"vida civilizada". Eu sempre ia até eles arrumada, para que percebessem
que havia um mundo normal esperando por eles.
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