domingo, 11 de novembro de 2018

Leitura para hoje

LEITURA MAIS DO QUE PERFEITA PARA HOJE!

Uma explicação atualizada sobre os piores males da atualidade: consumismo, fascismo, alienação, distanciamento social, individualismo, violência e manipulação.

Fascismo, teu novo nome é Consumismo


Como Pasolini enxergou, desde 1968, que a ameaça já não estava nos Estados totalitários — mas no homem-consumidor individualista, refratário ao coletivo, entregue à mercantilização. O que isso tem a ver com o Brasil de 2018
Por Fran Alavina
Mesmo após sua morte atroz, em novembro de 1975, Pasolini não deixou de incomodar. Uma de suas últimas polêmicas, expressa nos seus textos (Scritti Corsari e Letterre Luterane), bem como no seu último filme Salò, era a afirmação do nascimento de um novo tipo de fascismo. Desta nova forma de totalitarismo disfarçado, o pensador italiano estava bem certo. Exatamente por isso, ocupava uma posição de deslocamento entre os intelectuais de seu tempo. Os contemporâneos viam seu diagnóstico do presente como algo exagerado. Uma visão que, segundo eles, diria muito mais sobre a personalidade de Pasolini, do que sobre seu próprio tempo.
Enquanto todos se contentavam com os avanços do estado de bem-estar social e estavam inebriados com o maio de 68, dificilmente poderiam compreender que Pasolini não se reportava aos riscos da volta do fascismo histórico, como aquele de Mussolini. Tratava-se, na verdade, de uma mutação do fascismo histórico, cuja gênese estava justamente naquilo que o estado de bem-estar social comportava em seu interior e que era um dos motivos de sua expansão: o consumismo. Ao mesmo tempo em que surgia uma nova cidadania, das benesses da social democracia, esta também ensejava um novo modelo de homem e mulher: o consumidor.
Hoje, com a volta da extrema direita e sua chegada ao poder em alguns países, os ambientes intelectuais ora se veem imóveis, incapazes de diagnosticar com precisão um fenômeno que aparece dramaticamente como algo inesperado, ora se movimentam para atestar sua existência — mas buscam compreendê-lo segundo o parâmetro do fascismo histórico. Logo, deixam escapar os novos elementos e as novas determinações.
É claro que o fascismo histórico não pode ser esquecido, pois é o modelo mais acabado do que foi um estado fascista, institucionalmente falando. Ocorre que, como apontava Pasolini, o novo fascismo não é, em primeiro lugar, institucional — mas sim uma nova forma de vida jamais vista, e por isso mais difícil de ser combatida. Ele esconde dentro de si uma nova lógica de poder, está mais arraigo nos indivíduos que em instituições ou oficialidades declaradas. Por isso, Pasolini referia-se a uma nova forma de poder: “anárquico”, sem centro específico e sem uma estética que pretensamente expresse identidade homogênea — ao contrário do que foi o fascismo histórico.
TEXTO-MEIO
A negação da diferença não seria, advertiu o pensador italiano, feita pela força bruta. Decorreria da não aceitação de qualquer forma de vida individual ou social que não pudesse ser transformada em mercadoria — isto é, que não se adaptasse ao consumo. Como era necessário que o consumo acompanhasse o aumento da produção, o novo cidadão do estado de bem-estar social deveria ser levado cada vez mais à mercantilização da vida.
Daí que durante as ocorrências do maio de 68 pela Europa, Pasolini já denunciava seus limites e a acomodação do espírito de rebeldia pelo mercado. A própria rebeldia perdia sua valência política e tornava-se uma marca, um slogan. As novas formas de comportamento, quanto mais possam parecer novas, mais se acomodam ao consumo que já faz de si mesmo a imagem da única novidade possível. Este novo fascismo, que ao que parece só Pasolini conseguia ver, seguia os passos do fascismo histórico, pois instaurava uma nova linguagem: pobremente denotativa, como fora aquela que se materializava nos discursos de Mussolini.
Assim, o novo fascismo trazia consigo um novo gestual que, segundo as palavras de Pasolini, impedia que se pudesse diferenciar, na Europa, um jovem das classes populares de um jovem burguês. Os dois já falavam do mesmo jeito, já gesticulavam do mesmo modo: enfim, todo o campo da expressividade havia se tornado único. Desfazendo, desse modo, qualquer referência às diferenças entre classes sociais. Ora, não era o sonho do fascismo histórico produzir um tipo de sociedade radicalmente homogênea?
Não parece, pois, ser mera coincidência que hoje os gestos e a linguagem da extrema direita tenham se tornando tão aderentes nas redes sociais. Também sendo pobremente denotativa, a linguagem das redes sociais levou o consumo ao seu ponto máximo: já não se consumem coisas, pode-se consumir pessoas. A transformação das subjetividades em algoritmos impõe um novo padrão de homogeneidade. Aqueles que já não falam a língua das redes, mesmo fora delas, tendem a desaparecer, pois só aqueles que falam a língua do consumo imediato permanecem. Não é pura ocasionalidade que os políticos de extrema direita falem como se youtubers fossem. Trump não discursa como se estivesse no twitter? Mas essa nova linguagem pressupõe aderência entre os falantes: portanto, supõe que os falantes já se identifiquem apenas como consumidores.
Também não é mera coincidência que o atual estado de coisas a que chegamos no Brasil tenha sido precedido por uma ascensão e crise das classes populares ao consumo. A classe trabalhadora, falsamente identificada como nova classe média, passou a ver a si mesma como consumidora, mais do que com qualquer outra identidade. O mesmo movimento se deu naqueles países europeus mais afetados com a crise econômica de 2008.
Os antigos consumidores jogados para fora dos padrões de consumo não se voltam mais, como outrora, aos partidos trabalhistas ou de centro esquerda (pois foram estes os principais fiadores da social democracia e seu estado de bem-estar). Não se veem mais como trabalhadores expropriados, mas como consumidores incapazes de consumir. A afirmação da identidade de classe foi perdida. Por isso, no caso brasileiro, por exemplo, não aparece como contradição seguir um discurso que promete a volta dos empregos por meio de uma agenda neoliberal extremada e que ao mesmo tempo retira direitos dos trabalhadores.
Se o fascismo histórico se guiava pela noção de um aparelho estatal grande e forte, o novo fascismo pode aderir ao estado mínimo justamente por não se tratar mais de instituições, mas de formas de vida que consomem a si mesmas. Logo, a aderência do discurso da meritocracia, que cria a imagem da sociedade como um grande aglomerado de indivíduos em eterna concorrência. Incapaz de engendrar qualquer forma de solidariedade social, esta noção consumista e individualista de si mesmo é um prato cheio para discursos do culto da força, pois a violência já internalizada pelos indivíduos concorrentes torna-se completamente naturalizada.
Não por outro motivo, Pasolini apontava que o novo fascismo era muito mais perverso que o fascismo histórico. “Estamos todos em perigo!”, dissera ele, nem tanto aos seus contemporâneos, mas a nós, 40 anos depois de seu assassinato. É porque estamos todos em perigo que precisamos vencê-lo. Não apenas pela resistência e uma nova superação eleitoral das forças políticas que encarnam o novo fascismo, pois trata-se mesmo da criação de uma nova forma de vida. Afinal, nunca se pode esquecer que a democracia não é simplesmente uma forma de governo, porém uma forma de vida: talvez a única que se possa dizer plenamente vida.
TEXTO-FIM
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  1. Os artigos do Fran Alavina sempre são muito competentes. Neste, a sua incursão na relação autoritarismo-individualismo, no contexto da sociedade de hiperconsumo (ou da “cultura do narcisismo”, como já a chamava Christopher Lasch há bastante tempo atrás), foi realmente prometedora. Mas ainda está tímida.
    Os nexos ainda a serem explorados são aqueles entre um universalismo do consumo (estilo “homem unidimensional”, do Marcuse — e nisso ele precede Pasolini) e o particularismo identitarista do “neoliberalismo progressista” (Nancy Fraser) como solução utilitária para a regulação social.
    Ambos são crias da mesma matriz.
    Alavina defende a constatação da “aderência do discurso da meritocracia, que cria a imagem da sociedade como um grande aglomerado de indivíduos em eterna concorrência”. Só que essa constatação é apenas parcial.
    O discurso particularista, a reificação do “lugar de fala” e outros bibelôs “politicamente corretos” partem da mesma matriz utilitarista, possessivista e antissocial.
    Não é por acaso que o moralismo prescritivo sobre a política, manobrado pelo discurso “politicamente correto”, padeça igualmente de tentações totalitárias, com tanta pretensão a se querer como “pensamento único”.
  2. Sem tirar qualquer mérito a Pasolini e ao Fran, há um aspeto ligado ao consumismo que amarra as pessoas ao sistema financeiro – a dívida e a sua vulgarização, a sua naturalização, para comprar apartamento, viagem, automóvel, computador. A dívida que alimenta o consumismo é uma captura do futuro do endividado; e sem a adesão ao consumismo as pessoas sentem-se deslocadas, não podem exibir as suas últimas compras conseguidas a crédito, sentem-se pertencentes a um tempo passado. E como o crédito e o endividamento são facilitados a vida torna-se um ciclo que comporta pagamento da dívida já constituida e a preocupação em surfar a onda, a moda que irá exigir novo endividamento
    O sistema financeiro captura a Humanidade e o seu futuro através da dívida
    A dívida pessoal, a dívida empresarial para aumentar a rendabilidade e incrementar as vendas e a dívida estatal que é imputada aos povos sob a forma de austeridade
    Curiosamente, na chamada esquerda europeia – ou o que assim vulgarmente se designa – entende-se importante reestruturar a dívida pública, olhando esta como uma questão financeira apenas e jamais como uma questão que se prende com as amarras que o capitalismo tece
  3. Parabéns Fran pela clareza e linguagem acessível. Artigo que dá gosto compartilhar!
    É como também vejo: o estilo de vida moderno, onde tudo quase é industrializado e o consumo de alta rotatividade, alimenta o sistema de opressão que não queremos. A mudança está em nossas mãos e corações.

Cadê o nacionalismo do governo bozo-nazi-fascista?

QUE NACIONALISMO É ESTE? POR QUE ESTES TRAÍRAS EXIBEM O TEMPO TODO A BANDEIRA BRASILEIRA, O VERDE-AMARELO,  SE SÃO OS VENDILHÕES DA PÁTRIA?

Se Bolsonaro faz tanta apologia à ditadura, seria bom mandar uma lista para ele  com algumas decisões econômicas e sobre  relações internacionais dos anos 1970 para ele  decorar. Ou será que da Ditadura, ele só quer mesmo copiar a tortura, a censura e os assassinatos de opositores?

Na década de 1970:
* o Brasil restabeleceu relações diplomáticas com vários países do Oriente Médio e também reconheceu a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como legítimo representante desse povo na XXIX Assembleia Geral da ONU;

*o Brasil votou contra Israel, nessa mesma instância, considerando o sionismo como forma de racismo, gerando insatisfação do governo norte - americano;
*o Brasil estabeleceu relações diplomáticas  com a  República Popular da China e  reconheceu o governo instituído pelo marxista Movimento pela Libertação de Angola (MPLA);

*contrariando os Estados Unidos , o Brasil se negou a assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, com a seguinte justificativa do então presidente/ditador Geisel: " (...) representa uma discriminação. O Brasil não pode ter tecnologia nuclear, mas os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Rússia e mais tarde a China podem? ... O Brasil iria se colocar a priori numa posição de inferioridade em relação aos outros? Seria acertado? O sentimento nacional pode aceitar isso? Somos inferiores aos outros? (...) Suponham que o Brasil tenha uma guerra e nos bombardeiem com a bomba atômica. O Brasil vai abrir mão a priori, de poder revidar? Será que isso é lógico?"

*Sobre a "ajuda" militar dos Estados Unidos ao Brasil, o ditador Geisel comentou , em 1978, "(...) "o que eles nos mandam não é o melhor armamento (...). Mandam aquilo que é obsoleto para eles, quando já há coisa muito melhor. Quanto às missões que mantinham aqui, uma do Exército e uma naval, na realidade elas funcionavam como agência de informações..."

*marcante foi o acordo nuclear com a República Federal da Alemanha em 27 de junho de 1975, prevendo-se fornecimento de suprimentos básicos e a transferência de tecnologia nuclear, o que gerou fortes ressalvas por parte de Washington que se negava fornecer o urânio  enriquecido para o Brasil desenvolver seu projeto nuclear.

 *Em 1974, o governo brasileiro reconheceu a República Popular da China, em detrimento de Taiwan. Em 1978 Brasil e China assinaram um tratado comercial, onde se comprometeram a desenvolver o comércio bilateral. Criou-se a Comissão Mista Brasil-China, com a primeira reunião agendada para o mesmo ano em Brasília. O objetivo principal de tal acordo era a abertura de mercado. Sob idêntico prisma, o Brasil assinou em 1975 um acordo comercial com a União Soviética.

Do que são feitos os direitos

Texto exemplar da Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral

"Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens?

Sentem o seu cheiro?

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras!

Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!

Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras! Ouço o grito enlouquecido dos empalados.

Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!

Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!

Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros.

Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas.

Os direitos são feitos de fluido vital!

Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade,
gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!

Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais?

Engana-te! O direito é feito com a carne do povo!

Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas ...

Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!

Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas!

Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!

O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!"


https://www.geledes.org.br/texto-exemplar-da-juiza-federal-raquel-domingues-do-amaral/

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

De Regresso à Caverna


Ilustração da Alegoria da Caverna
alegoria da caverna, também conhecido como parábola da cavernamito da caverna ou prisioneiros da caverna, é uma alegoria de intenção filósofo-pedagógica, escrita pelo filósofo grego Platão. Encontra-se na obra intitulada República (Livro VII), e pretende exemplificar como nós podemos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade, em que Platão discute sobre teoria do conhecimento, linguagem e educação na formação do Estado ideal.[1]

Mito da caverna

No interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali. Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, sem poder ver uns aos outros ou a si próprios. Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da qual passam pessoas carregando objetos que representam "homens e outras coisas viventes". As pessoas caminham por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles, e vêem apenas as sombras que são projetadas na parede em frente a eles. Pelas paredesda caverna também ecoam os sons que vêm de fora, de modo que os prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade.
Imagine que um dos prisioneiros seja libertado e forçado a olhar o fogo, e os objetos que faziam as sombras (uma nova realidade, um conhecimento novo). A luz iria ferir os seus olhos, e ele não poderia ver bem. Se lhe disserem que o presente era real e que as imagens que anteriormente via não o eram, ele não acreditaria. Na sua confusão, o prisioneiro tentaria voltar para a caverna, para aquilo a que estava acostumado e podia ver.
Caso ele decida voltar à caverna para revelar aos seus antigos companheiros a situação extremamente enganosa em que se encontram, os seus olhos, agora acostumados à luz, ficariam cegos devido à escuridão, assim como tinham ficado cegos com a luz. Os outros prisioneiros, ao ver isto, concluiríam que sair da caverna tinha causado graves danos ao companheiro, e por isso não deveriam sair dali nunca. Se o pudessem fazer, matariam quem tentasse tirá-los da caverna.
Platão não buscava as verdadeiras essências na simples Phýsis, como buscavam Demócrito e seus seguidores. Sob a influência de Sócrates, ele buscava a essência das coisas para além do mundo sensível. E o personagem da caverna, que por acaso se liberte, correria como Sócrates o risco de ser morto por expressar seu pensamento e querer mostrar um mundo totalmente diferente. Transpondo para a nossa realidade, é como se você acreditasse, desde que nasceu, que o mundo é de determinado modo, e então vem alguém e diz que quase tudo aquilo é falso, é parcial, e tenta te mostrar novos conceitos, totalmente diferentes. Foi justamente por razões como essa que Sócrates foi morto pelos cidadãos de Atenas, inspirando Platão à escrita da Alegoria da Caverna pela qual Platão nos convida a imaginarque as coisas se passassem, na existência humana, comparavelmente à situação da caverna: ilusoriamente, com os homens acorrentados a falsas crenças, preconceitos, ideias enganosas e, por isso tudo, inertes em suas poucas possibilidades.
A partir da leitura do Mito da Caverna, é possível fazer uma reflexão extremamente proveitosa e resgatar valores de extrema importância para a Filosofia. Além disso, ajuda na formulação do senso crítico e é um ótimo exercício de interpretação de texto.

diálogo de Sócrates e Glauco

Trata-se de um diálogo metafórico em que as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão. No diálogo, é dada ênfase ao processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e do filósofo, na sua eterna busca da verdade.
Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco– Estou vendo.
Sócrates– Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco- Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco — É bem possível.
Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco — Sim, por Zeus!
Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados?
Glauco — Assim terá de ser.
Sócrates — Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais verdadeiras.
Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco - Com toda a certeza.
Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará
de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.
Glauco - Concordo.
Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagemdas sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.:
Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco - Por certo que sim.
Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco - Sem nenhuma dúvida.
Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Zeus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.
(Platão. A República. Livro VII)

Interpretação da alegoria

O mito da caverna é uma metáfora da condição humana perante o mundo, no que diz respeito à importância do conhecimento filosófico e à educação como forma de superação da ignorância,[1] isto é, a passagem gradativa do senso comum enquanto visão de mundo e explicação da realidade para o conhecimento filosófico, que é racional, sistemático e organizado, que busca as respostas não no acaso, mas na causalidade.
Segundo a metáfora de Platão, o processo para a obtenção da consciência, isto é, do conhecimento abrange dois domínios: o domínio das coisas sensíveis (eikasia e pístis) e o domínio das ideias (diánoia e nóesis). Para o filósofo, a realidade está no mundo das ideias - um mundo real e verdadeiro - e a maioria da humanidade vive na condição da ignorância, no mundo das coisas sensíveis - este mundo -, no grau da apreensão de imagens (eikasia), as quais são mutáveis, não são perfeitas como as coisas no mundo das ideias e, por isso, não são objetos suficientemente bons para gerar conhecimento perfeitos. Inclusive em 2016 neurocientistas chegaram a mesma conclusão de Platão relativo a percepção humana.[2]

Exemplos

Este tema - realidade ou aparência - foi retomado ao longo da história da cultura ocidental por muitos filósofos e alguns escritores, embora com perspectivas distintas. Um deles foi Calderón de la Barca na obra A vida é um sonho.
Exemplos mais modernos podem ser a série Persons Unknown, o livro Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932), o filme Matrix (Irmãos Wachowski, 1999) e também o livro A Ilha (Aldous Huxley), dirigido no cinema por Michael Bay de 2005. Outro autor que utilizou, parodicamente, essa parábola platônica foi o autor José Saramago, em seu livro A Caverna.
O filme "O Show de Truman" também utiliza a parábola platônica em seu enredo.

Bibliografia

  • CHAUÍ, MarilenaConvite à FilosofiaSão Paulo, Editora Ática, 2003;
  • SPINELLI, Miguel. Questões Fundamentais da Filosofia Grega. São Paulo. Loyola, 2006, p. 278ss.

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