segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nunca precisamos tanto de revolucionários profissionais.

Sobre a militância
esquerdaonline13 de janeiro de 2020 18:54


Precisamos discutir com maturidade sobre a renovação dos líderes na esquerda. Há duas dimensões diferentes nesta questão. Há uma reorganização das organizações, e há uma substituição de quadros. A reorganização pela esquerda tem sido um processo lento e de vanguarda, pleno de oscilações, que remete à experiência do ativismo mais radicalizado, desde 2013, com a direção do PT.
Dependerá, essencialmente, da dinâmica de uma nova onda de grandes lutas de massas, quando ela chegar. Terá que ser a “quente”. A mudança de referência de massas não se completa a “frio” em uma situação reacionária, portanto, defensiva. Uma nova direção, para poder se afirmar, tem que passar pela prova de grandes combates e vitórias.
A outra dimensão é a renovação de quadros nas organizações existentes. Encontramos com razão muita insatisfação, até frustração acumulada com o excesso de homens de classe média, brancos, envelhecidos e héteros, não poucos paulistas, à frente da maioria das organizações. Há, também, cansaço e desconfiança com lideranças que se perpetuam ao longo de décadas nas posições dirigentes, seja à frente de mandatos, sindicais ou parlamentares, ou de cargos.
Novas lideranças de operários e jovens intelectuais, mulheres e negros, indígenas e LGBT’s, assim como ativistas do nordeste e norte, estão ocupando seu lugar, desde 2013, em uma revolução geracional que só pode ser comparada, talvez, com aquela que ocorreu quarenta anos atrás, nos idos de 1979/1983, quando da onda de fundação do PT e da CUT. Nenhuma revolução é indolor.
O critério de representação é necessário e legítimo, porque é uma inspiração para os explorados e oprimidos. Mas não devemos ser ingênuos. A burocratização dos sindicatos revela que uma origem social proletária não é o bastante. Precisamos de mais e, sobretudo, melhores dirigentes. São dois problemas diferentes, mas indivisíveis, porque é indispensável uma massa crítica importante, quantitativa e qualitativa, para que nela amadureçam grandes talentos.
A classe trabalhadora nunca precisou tanto de revolucionários profissionais. Uma velha brincadeira entre nós era que tinha muito cacique para pouco índio. Mas nunca foi assim. Na verdade, com oscilações, sempre tivemos um déficit na formação de lideranças. A esquerda brasileira organiza, relativamente, uma militância muito menor que sua influência na sociedade permitiria. Isso decorre da debilidade estrutural na formação de quadros. Mais recentemente prevalece a ideia de uma militância como uma doação voluntária ocasional.
Os chefes políticos que representam os interesses do capitalismo são quadros muito especializados. A burguesia brasileira leva a sério a formação de suas lideranças. Deixou de investir somente no improviso e amadorismo das velhas dinastias hereditárias. Surgiram muitas incubadoras financiadas pelos maiores milionários. São quadros formados nas melhores universidades e treinados, desde jovens, para o exercício da carreira política, seguindo modelos de seleção norte-americanos e europeus.
Ser um profissional da revolução não é o mesmo que ser um funcionário político de um aparelho. Claro que a idealização de dirigentes de ferro, os homens de aço, uma caricatura, vulgarização e deformação do bolchevismo com forte inspiração militar, fez estragos terríveis. Longas profissionalizações, que foram necessárias quando a existência de organizações revolucionárias era ilegal, eternizam acomodação e maus hábitos. Há funcionários que não são profissionais da revolução, e profissionais da revolução que trabalham para viver.
Revolucionários profissionais são aqueles que abraçam a defesa da necessidade de uma revolução, mas muito mais do que isso. Significa que a dedicação de suas melhores forças, a concentração de suas energias, o sentido de sua vida está orientado para a luta revolucionária. Isso significa a disposição de assumir responsabilidades. Esse deve ser o primeiro critério na seleção de quadros.
Mas, como julgar a qualidade dos dirigentes? Existe uma régua? Quais são os critérios? Esta discussão é um tema clássico inescapável. Ressurgiu nos últimos meses, mais uma vez, nas comparações entre Trotsky e Stalin.
Devemos considerar quais são os critérios. Existe a tenacidade, inteligência, coragem, enfim, a capacidade é uma variável. Há que considerar, também, a personalidade. Forte ou fraca, agregadora ou conflitiva, doce ou áspera, narcisista ou modesta, estável ou perturbada. Não se pode deixar de avaliar a experiência, e o repertório. A trajetória são as provas dadas, e o nível teórico político, a formação. Não se deve ignorar o desempenho, o balanço ou os resultados alcançados.
Mas é perigoso quando se negligencia o caráter. O caráter remete à índole da pessoa, ao seu modo de ser, à qualidade moral, à integridade, ao domínio de si mesmo, enfim, ao temperamento. A idealização de um mundo em que só há gente boa não é razoável, muito menos uma premissa socialista.
Qualquer organização humana tem o direito e o dever de se proteger, de decidir quem pode ser membro dela. Querer ser membro de uma corrente socialista significa aceitar que qualquer um pode ser criticado, ser julgado e, eventualmente, punido, até com a exclusão. Significa, também, evidentemente, o direito irredutível de poder se defender, porque não é incomum que as diferenças de opinião, os choques de personalidades, transbordem em rivalidades pessoais nocivas para o coletivo. Há uma dialética nestes processos de seleção de quadros. A ausência de autocontrole é o caminho da autodestruição de qualquer organização.
Qualquer um destes critérios é unilateral e destrutivo, se for absolutizado. Quadros com grande aptidão e disposição ficam, muitas vezes, pelo caminho, pelas mais variadas razões, enquanto outros, menos capazes, se impõem, um processo de seleção que pode ser cruel e regressivo, um “antidarwinismo”. Sempre teremos que considerar o peso objetivo das derrotas, que pode ser devastador, e o custo subjetivo dos desgastes pessoais, que pode ser desolador.
Não podemos esquecer que as organizações de esquerda são coletivos em que devem ser construídas equipes de direção. As figuras públicas ocupam um lugar destacado, mas são somente os porta-vozes das correntes, movimentos e partidos. Ser um porta-voz oferece visibilidade e peso político desproporcional. Em uma equipe, há lugar para quadros com as mais diferentes habilidades: parlamentares, sindicalistas, intelectuais, agitadores, propagandistas, teóricos, organizadores.
As posições da organização devem resultar do debate e de votações. Em um regime interno saudável não há lugar para caudilhos. Ninguém é infalível. Ninguém é especialista de tudo. Não pode haver um chefe, porque o sujeito político é uma organização coletiva, sustentada por uma militância voluntária.
Mas, ainda que a direção seja um coletivo surge o problema da liderança da liderança, ou do centro da direção. Ou seja, dos dirigentes que têm a tarefa de preservar a união dos quadros. A solução pode passar por um pequeno coletivo, na forma de triunvirato ou dupla. A pior solução é que esse papel seja assumido por um só, que toma a responsabilidade da condução da equipe de direção. Podemos aprender com as tragédias do século XX.
Em uma de suas últimas participações em reuniões do comitê central bolchevique, já rompido, politicamente, com Stalin, Bukharin tomou a palavra e, em tom de brincadeira, “teorizou” que a história podia se classificada em três grandes eras: o matriarcado, o patriarcado e o secretariado. Pagou com a vida a insolência provocativa.
Nunca precisamos tanto de revolucionários profissionais. Mas podemos ser leninistas do Brasil, portanto, um pouquinho de irreverência deve ser bem vinda. Podemos rir de nós mesmos, sem nos diminuirmos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Igreja Branca

UOL - O melhor conteúdo

A igreja branca tem que acabar

Lemos e ouvimos por aí um discurso arrogante, oportunista e preconceituoso que diz: “A esquerda precisa conversar com os evangélicos, chegar às periferias”. Oportunista porque se vale da ingenuidade dos que não conhecem a natureza diversa da periferia e o universo evangélico e crêem em qualquer um que escreva:: “Eu vim da periferia, vocês não sabem o que se passa lá. Eu sei, e vou contar para vocês.” Arrogante, porque se coloca como voz única do que é necessariamente polifônico. Preconceituoso porque parte do princípio que pobres e evangélicos têm a cabeça vazia, são espécie de teletubies que aderem ao primeiro discurso que a eles chegar, a quem se apresentar mais próximo.
Uma das belezas do projeto Quadro-negro, é a oportunidade convidar as muitas vozes que, juntas, apresentam uma visão mais honesta do que tem se tornado um produto feitichizado para ser consumido por brancos “entusiastas das periferias e dos pobres”. Ronilso Pacheco é teólogo e pastor de São Gonçalo e ativista colaborador de diversas organizações de direitos humanos no Brasil. Atualmente mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA), o organizador do livro  “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018, escreveu recentemente, em uma de suas redes sociais:
“A impressão é que, nas periferias, nos territórios empobrecidos, evangélicas e evangélicos formam um grupo inculto e obtuso, limitado politicamente, incapaz de pensar por si mesmo e criar suas próprias linhas de fuga e sobrevivência.”
E aqui ele escreve sua primeira colaboração para o Quadro-negro, publicado um dia após a censura ao trabalho do Porta dos Fundos, explicando que, para além disso, o que ele chama de  “cristianismo branco” em nada se parece com a igreja original, que surgiu após a passagem de Jesus Cristo pela terra.
***
O Fim da Igreja branca é o fim de uma Igreja que não tolera a diversidade e a solidariedade – Por Rosilso Pacheco
Eu já escrevi que a bíblia é um livro negro de hermenêutica branca. Com “negro”, me refiro a toda diversidade que há na bíblia (de povos, culturas, tradições, religiosidade), e que foram violentamente deturpadas e invisibilizadas para prevalecer a forma europeia-colonial de lê-la e se projetar nela. A negação e a repressão desta diversidade nos afetou profundamente. E esta é uma das razões pelas quais a igreja branca precisa acabar. Ou ela vai nos destruir enquanto sociedade.
Mesmo não achando necessário, faço questão de dizer que quando falo da “igreja branca” não estou me referindo às pessoas “brancas” que estão na igreja (ao menos não de maneira direta). Indivíduos, brancos e brancas, não precisam se acharem tanto. Eu estou falando necessariamente de um modelo de igreja que foi construído com padrões determinados de teologia, de construção de referências de vida cristã, e de formas de conhecer a Bíblia, a Deus e a Fé.
O neocalvinismo, por exemplo, que está cada vez mais assentado no governo Bolsonaro (e cada vez mais o apoia) hoje, tem como seu principal articulador e formulador o teólogo e político Abraham Kuyper, um holandês, no século XIX. Kuyper, por sua vez desenvolveu uma ideia de “cosmovisão cristã” a partir da leitura da obra de James Orr, um escocês, e que foi influenciado por Wihelm Dilthey, um alemão. Uma construção teológica nasce em quintal branco, masculino e europeu, e isto é universalizado como genuína compreensão de Deus, da bíblia e “teologia de verdade”. Isto é a igreja branca.
Isto é um problema? Obviamente que sim. Neocalvinistas em torno do governo Bolsonaro estão comprometidos com uma visão de livre mercado, apoiam políticas hostis à imigrantes, negam o escravidão e os efeitos do racismo na sociedade brasileira, e rezam em uma cartilha neoliberal que moraliza e responsabiliza excessivamente o indivíduo, enquanto poupa e sacraliza a estrutura (por mais desigual, homofóbica, violenta e racista que a estrutura possa ser).
O que une pentecostais e neopentecostais, calvinistas e luteranos, batistas ou metodistas, em maior ou menor grau, em uma frente de conservadorismo que cada vez mais surpreende e assusta, com seu discurso de ódio nas relações, preconceituoso nas interações, violento na política e ganancioso na economia, é uma identidade branca da igreja que herdamos, ou a branquitude da identidade da mesma.
O que está sendo exposto são os limites de uma igreja estruturada no imaginário branco de ser igreja. De cara, este imaginário é racista. Mas ele também hostiliza os pobres, é violento, moralizador e punitivista (ou culpabilizador). Isto é a igreja branca, e ela precisa deixar de existir. Isto é um modelo de igreja que formou e dominou o Brasil na sua organização colonial, escravista, exploradora e que “batizou” a elite e seus privilégios.

Ronilso Pacheco é autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Ed. Novos Diálogos)


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