terça-feira, 17 de março de 2020

Lucrando com o corona I


A real razão da "histeria" do Coronavirus EXAME 16 de março de 2020 20:31 Seguindo Um mapa mundial dos casos da gripe causada pelo Covid-19 mostra que na China o pior passou. Eu realmente acredito que a saúde pública é importante, realmente acredito que cada vida vale o mesmo, e pouco importa a causa de uma morte, todas as mortes devem ser evitadas sempre que isso for possível. Desta convicção é que vem minha vontade de espalhar ao mundo as consequências mais graves que a histeria propalada e apoiada por indivíduos nos governos que sobrevivem, ou se perpetuam, pela opinião pública que influencia tantos votos das próximas eleições majoritárias. Primeiro vamos a alguns dados públicos e amplamente aceitos: Fonte: indexmundi.com População 0 – 14 anos 15 – 24 anos 25 – 54 anos 55 – 64 anos 65 + China 1.386.000.000 17,1% 13,27% 48,42%, 10,87% 10,35% Europa 741.000.000 15,5% 10,9% 41,8% 12,9% 19,1% Itália 60.480.000 13,69% 9,74% 42,46% 12,73% 21,37% Brasil 209.300.000 22,79% 16,43% 43,84% 8,89% 8,06% Letalidade do coronavírus por faixa etária (em %) 0-9 anos = 0 10-19 anos = 0,2 20-29 anos = 0,2 30-39 anos = 0,2 40-49 anos = 0,4 50-59 anos = 1,3 60-69 anos = 3,6 70-79 anos = 8 80 anos ou mais = 14,8 Fatores de aumento de risco (em vezes) Doença cardiovascular = 11,7 Diabetes = 8,1 Doença respiratória crônica = 7 Hipertensão = 6,7 Ter 80 anos ou mais = 6,4 Câncer = 6,2 Fontes: Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, Organização Mundial da Saúde (OMS) Se pararmos aqui podemos erradamente concluir que morrerão 14,8% das pessoas com 80 anos ou mais , 8% daqueles entre 70 e 79 anos e também quase 4% de quem tem 60 a 69 anos. Pois isso não é correto. Veja que a China com 1.386.000.000 teve 81.000 casos ou 0,0000584% da população, isso é a realidade. E aí você pode argumentar que esse número só é tão baixo pois, lá na China, as autoridades fizeram rapidamente o isolamento de doentes e contiveram a propagação da doença. Isso é correto mas, vamos agora aos números da Itália. Lá, enquanto escrevo este artigo, foram 1.809 casos ou 0,00002991% um número muito menor que o da China. Então por que a Itália parou? Por que países europeus como Alemanha, Espanha, etc, determinam que suas populações fiquem em casa por algo que mata menos que muitas outras causas também contagiosas? Não haveria ninguém com essa visão quantitativa e qualitativa que eu relato aqui? Antes de continuar e mostrar o real motivo disso tudo, volto a salientar que toda vida é importante e toda morte deve ser evitada sempre que isso for possível. Veja que, segundo o atlas de violência do IPEA em 2017, no Brasil 60.559 homens foram mortos no Brasil e isso nunca teve a mesma repercussão que as 80 mil vítimas chinesas. No mesmo ano 4.936 mulheres foram mortas , essas mortes já contam maior cobertura mas, também algo muito longe da ênfase dada aos casos italianos de Covid-19. Mas afinal por que isso acontece? O motivo é o bolso do governo. Sim, isso mesmo. Os governos democráticos no mundo todo tem uma responsabilidade sobre o caixa que administram e a vontade sem fim de performar muito bem na próxima eleição. Por isso farão quase qualquer coisa para manter a saúde financeira do estado e a sua própria imagem como boa, proba, responsável e diligente assim como dos governantes, que são pessoas como eu e você. Então veja agora o gráfico que explica tudo. Se você não entendeu eu explico. Vamos lá, ponto a ponto. 1- Cada país tem seu próprio número limitado de leitos no serviço hospitalar, no Brasil em 2017 era de 1,7 para cada 1.000 habitantes. Veja o gráfico seguinte. 2- Sim, o vírus se espalha rápido e os grupos mais vulneráveis, acima descritos, têm alta probabilidade de internação e, portando demandariam tais leitos escassos. Estaríamos o cenário da curva azul no quadro acima. 3- Ao demandar um leito, recursos orçamentários são usados até o limite previsto e além dele. Isso acontece pois, os todos outros casos previstos não parariam de chegar. 4- Vidas, e dinheiro, se perderiam pela incapacidade do sistema em dar o atendimento correto. 5- Para preservar vidas (isso sim é importante), mas principalmente dinheiro e reputações políticas, é necessário achatar a curva de modo ao sistema conseguir absorver os casos mais graves e termos o cenário da curva vermelha. Bem , se você é político, marketeiro de político, assessor ou qualquer coisa que o valha já deve estar me odiando por mostrar as coisas por esse prisma. Com certeza os políticos de todos partidos, de todas ideologias, pouco importam quem sejam, usarão todos os instrumentos de divulgação, incluindo suas próprias redes sociais e imprensa tradicional sempre para dizer que tudo estão fazendo para preservar vidas humanas. Se isto fosse verdade, teríamos, no Brasil, 100% da população com coleta de esgoto em suas residências, temos somente 52%. Não teríamos cobrança de IPTU sobre imóveis sem habite-se com riscos de desmoronamento e, principalmente, não teríamos tantas mortes como aquelas mostradas pelo Atlas da Violência , esse sim um número epidêmico. Teríamos ainda um número crescente de hospitais e não o contrário como mostra este gráfico Gostaria, imensamente de ser convencido do contrário mas, ao que tudo indica, no mundo todo o quadro é o mesmo. Governos sacrificando suas economias em médio e longo prazo para não se mostrarem nus no curto prazo, prazo onde ocorre o pleito eleitoral. E mais uma vez, repito as vidas são muito importantes e devemos evitar todas as mortes que pudermos, TODAS, inclusive as de sarampo, que voltaram a acontecer, as de dengue, as pneumonia, câncer, leptospirose, de homicídios ou feminicídios, etc, etc, etc. Ibovespa, o principal índice da bolsa de valores brasileira caindo e dólar disparando podem interferir nas vidas das pessoas de forma mais grave e permanente que uma gripe. Uma gripe, com o atendimento correto que como vimos não temos, pode ser curada. Desemprego em família pode durar anos e interferir na vida de mais de uma geração. E sim, os governos devem ficar histéricos, só assim preservarão suas imagens de probos, responsáveis e diligentes. Para isso, neste caso, dispõem do escudo do discurso de salvar vidas, coisa que não fazem em outras situações. Clique aqui para ver página original

quinta-feira, 12 de março de 2020

Traição na Lava Jato


email enviado por Saadi dizia o seguinte: “Fomos informados hoje pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) sobre possível vinda de autoridades americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou realizar investigações no âmbito da Operação Lava Jato. Considerando que, até a presente data, este DRCI não tinha qualquer conhecimento dessa possibilidade, pergunto: 1. O MPF tem conhecimento sobre eventual vinda de autoridades norte-americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou para praticar atos de investigação ? 2. Em caso positivo, qual o período que ficariam em solo nacional ? 3. Foi feito algum contato oficial nesse sentido ? 4. Quais seriam as atividades desenvolvidas pelos norte-americanos em solo nacional ? 5. O MPF teria nome/função das autoridades americanas que viriam ? 6. Outras informações que entender relevantes”. Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e procuradores americanos Publica 12 de março de 2020 04:09 Seguir No dia 5 de outubro de 2015, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da Lava Jato, mal dormiu; chegou de uma viagem e foi direto para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no centro de Curitiba, onde trabalhou até depois da meia-noite. No dia seguinte, acordou às 7 da manhã e correu de volta para o escritório. Ele já havia avisado a diversos interlocutores que aquela seria uma semana cheia e não poderia atender a nenhuma demanda extra. Não era para menos. Naquela terça-feira, uma delegação de pelo menos 17 americanos apareceu na capital paranaense para conversar com membros do MPF e advogados de empresários que estavam sob investigação no Brasil. Entre eles estavam procuradores americanos ligados ao Departamento de Justiça (DOJ, na sigla em inglês) e agentes do FBI, o serviço de investigações subordinado a ele. Todas as tratativas ocorreram na sede do MPF em Curitiba. Em quatro dias intensos de trabalho, receberam explicações detalhadas sobre delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró e mantiveram reuniões com advogados de 16 delatores que haviam assinado acordos entre o final de 2014 e meados de 2015 em troca de prisão domiciliar, incluindo doleiros e ex-diretores da Petrobras. Mas nem tudo foram flores para a equipe de Deltan Dallagnol. No final do dia 6 de outubro, às 23h16, ele foi chamado ao Telegram pelo diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR), Vladimir Aras: “Delta, MSG DO MJ”. A mensagem era grave. O Ministério da Justiça acabara de tomar conhecimento da visita dos americanos pelo Itamaraty – quando eles já estavam em Curitiba. Segundo um acordo bilateral, atos de colaboração em matéria judicial entre Brasil e Estados Unidos – tais como pedir evidências como registros bancários, realizar buscas e apreensões, entrevistar suspeitos ou réus e pedir extradições – normalmente são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT, que estipula que o Ministério da Justiça deve ser o ponto de contato com o Departamento de Justiça americano. O procedimento é estabelecido pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tratado bilateral assinado em 1997. Naquela época, o ministério era chefiado pelo ministro José Eduardo Cardozo, sob a presidência de Dilma Rousseff (PT). A mediação é feita pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, o DRCI, então chefiado pelo delegado da Polícia Federal (PF) Ricardo Saadi. Era dele a interpelação que dizia que o governo não fora informado da visita dos procuradores e agentes americanos. No final, o encontro ocorreu à revelia do Executivo, em tratativas diretas entre os americanos e os procuradores de Curitiba. O email enviado por Saadi dizia o seguinte: “Fomos informados hoje pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) sobre possível vinda de autoridades americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou realizar investigações no âmbito da Operação Lava Jato. Considerando que, até a presente data, este DRCI não tinha qualquer conhecimento dessa possibilidade, pergunto: 1. O MPF tem conhecimento sobre eventual vinda de autoridades norte-americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou para praticar atos de investigação ? 2. Em caso positivo, qual o período que ficariam em solo nacional ? 3. Foi feito algum contato oficial nesse sentido ? 4. Quais seriam as atividades desenvolvidas pelos norte-americanos em solo nacional ? 5. O MPF teria nome/função das autoridades americanas que viriam ? 6. Outras informações que entender relevantes”. O recado foi compartilhado no chat “FTS-MPF”, onde membros da Lava Jato coordenavam ações com outros procuradores. Especialistas ouvidos pela Agência Pública e The Intercept Brasil afirmam que quaisquer diligências – atos de investigação que vão gerar um processo e provas criminais – em solo nacional teriam que ser oficializadas por meio de um MLAT. Procurado pela reportagem, procurador Vladimir Aras respondeu, por nota, que “as reuniões prévias e o intercâmbio de informações no curso da investigação compreendem a etapa chamada ‘pré-MLAT’. O MP e a Polícia não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo”. Mas os diálogos demonstram que, como a cooperação internacional não é regulamentada por lei nacional que estabeleça procedimentos padrões, os membros da Lava Jato exploraram zonas cinzentas que permitiram aos americanos avançar suas investigações, escondendo esse fato do governo federal – em especial, durante a época em que Dilma Rousseff ainda era presidente. Os contatos geraram questionamentos dentro da PGR e são ainda mais sensíveis por terem como alvo a empresa de economia mista Petrobras. Em um chat de 13 de fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol demonstra desconfiança em relação ao DRCI – e ao governo Dilma. Questionado por Vladimir Aras sobre se estaria “tudo tranquilo” com o delegado federal Isalino Antonio Giacomet Junior, que era assessor do DRCI, Dallagnol responde: “Tranquilo, obrigado, embora eu não goste da ideia do executivo olhando nossos pedidos e sabendo o que há. Ainda bem que é o Saadi e não o Tuminha lá”, diz, referindo-se ao ex-delegado Romeu Tuma Júnior. Em setembro de 2019, a força-tarefa da Lava Jato afirmou ao site The Intercept Brasil e ao UOL que “diversas autoridades estrangeiras de variados países vieram ao Brasil para a realização de diligências investigatórias, algumas ostensivas, outras sigilosas, conforme interesse dessas autoridades. Sendo um caso ou outro, todas as missões de autoridades estrangeiras no País são precedidas de pedido formal de cooperação e de sua autorização”. A primeira visita americana a Curitiba, porém, ocorreu sem nem mesmo o conhecimento do MJ. Durante quatro dias, os americanos foram apresentados a advogados de delatores e já começaram negociações de colaboração com a Justiça dos EUA. Depois, a força-tarefa orientou os americanos a convencer os colaboradores a ir aos EUA para depor, a fim de não ficarem sujeitos às limitações da lei brasileira. Se isso não fosse possível, eles ofereceriam sugestões sobre interpretações “mais flexíveis” das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). E a força-tarefa ainda se comprometeu a “pressionar” os investigados a colaborar com os EUA. Além disso, a agenda da visita não foi divulgada para a imprensa brasileira a pedido dos americanos, segundos revelam os diálogos. Procurada pela Pública, a força-tarefa Lava Jato afirmou, por nota, que “a necessidade de formalização da diligência ocorre quando ela tem cunho probatório (“diligências investigatórias”), destinando-se, por exemplo, a colher depoimentos formais que são enviados via canais oficiais. A informação não engloba, certamente, contatos e conversas entre autoridades, que podem se dar informalmente, por telefone ou pessoalmente”. Afirmou também que “Eventuais reuniões com autoridades alienígenas – e foram dezenas, algumas presenciais e outas virtuais com diversos países -, não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados”. O posicionamento completo da força-tarefa está reproduzido no final desta reportagem, a pedido da assessoria de imprensa. Escondendo os americanos Só depois da meia-noite, já no dia 7 de outubro de 2015, Aras recebeu uma resposta de Deltan Dallagnol. Ele não quis dar detalhes ao MJ, sugerindo a Aras que, em vez disso, “eles consultem o DOJ, porque eles pediram que mantenhamos confidencial”. Ou seja: preferiu proteger o relacionamento com os americanos a dar explicações ao governo brasileiro. Dallagnol ainda sugeriu que Aras evitasse entregar o nome dos investigadores americanos: “Caso Vc entenda que deve abrir, posso te mandar a lista, mas sugiro reflexão, porque isso pode gerar ruídos com os americanos”. Em resposta, Aras diz que o ministério sabia da visita porque “algo já tinha saído na imprensa”, mas “o tempo fechou”. E conclui: “Vou desanuviar”. Ao mesmo tempo, do lado americano, o chefe da divisão que cuidava de corrupção internacional no DOJ, Patrick Stokes, também procurou evitar os holofotes sobre a visita. Num diálogo com o então procurador Marcelo Miller sobre a viagem a Curitiba, ele disse: “Nós tornamos a investigação pública nos Estados Unidos, então nossa pessoa de imprensa vai simplesmente confirmar o fato mas não vai comentar sobre a investigação ou a nossa presença no Brasil. Como eu mencionei, o FBI vai confirmar sua presença no Brasil mas não vai comentar sobre a razão ou a investigação”. Em resposta, às 9 da manhã, Aras descreve: “O Executivo está “indignado”. E zomba: “Tem gente com medo de cair na grade americana. Já prevejo viagens internacionais de fim de ano sendo canceladas”. Os diálogos foram reproduzidos com a exata grafia em que foram recebidos pelo The Intercept Brasil, incluindo erros ortográficos. As mensagens sem nome do autor são do celular do ex-procurador Marcelo Miller, segundo apurou a reportagem. A razão da preocupação é a FCPA – Foreign Corrupt Practices Act, ou Práticas de Corrupção no Exterior –, uma lei americana que, desde 1988, permite ao DOJ investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de corrupção que envolvam autoridades estrangeiras praticados por empresas e pessoas estrangeiras, mesmo que não tenham ocorrido em solo americano – basta que tenha havido transferência de dinheiro por algum banco americano, que se vendam ações de empresas envolvidas na bolsa nos EUA, ou até mesmo que a propina tenha sido paga em dólares. Com base nessa lei, a divisão de FCPA do DOJ – a mesma que entre 2014 e 2016 foi chefiada por Stokes – investigou e puniu com multas bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, entre elas a Petrobras e a Odebrecht. Para evitar publicidade da visita do DOJ em outubro de 2015, Dallagnol mandou a assessoria de imprensa do MPF seguir a orientação de sigilo dos americanos, conforme revela o diálogo abaixo. “Eles podem usar essa info contra nos pelo tamanho da delegação”, escreveu Dallagnol No dia 7 de outubro de 2015, o debate sobre como deveriam responder ao Ministério da Justiça continuou às 8 da noite. Lendo um rascunho de email proposto por Aras, Dallagnol pede mais uma vez que se escondam do governo os nomes dos americanos que estavam no Brasil. “Eu tiraria a lista anexa e diria para consultarem os americanos, para evitar ruídos e porque me parece uma ‘cobrança indevida’, mas Vc que sabe. Eles podem também usar essa info contra nos pelo tamanho da delegação. Não é suficiente informar os órgãos de origem? Isso é bom pq não inclui SEC”. Aras argumenta que não vê problema em enviar os nomes, mas acaba cedendo ao procurador. No mesmo email, enviado para o então chefe do DRCI, eles decidem amenizar o conteúdo da visita e dizer que ela se limita a “reuniões de trabalho”, como “apresentação de linhas investigativas adotadas pelo MPF e pela PF e pelos norte-americanos no caso Lava Jato”, e não “diligências de investigação no Brasil, o que seria irregular”. Documentos oficiais do Itamaraty obtidos pelo The Intercept contradizem a versão defendida por Dallagnol na resposta ao Ministério da Justiça. Segundo esses documentos o DOJ pediu vistos para pelo menos dois de seus procuradores – Derek Ettinger e Lorinda Laryea – detalhando que eles planejavam viajar a Curitiba “para reuniões com autoridades brasileiras a respeito da investigação da Petrobras” e com advogados dos delatores da Lava Jato. “O objetivo das reuniões é levantar evidências adicionais sobre o caso e conversar com os advogados sobre a cooperação de seus clientes com a investigação em curso nos EUA”. Então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo afirma que foi surpreendido pela informação da presença americana em Curitiba. “Eu fui avisado pela PF de que havia uma equipe norte-americana em Curitiba estabelecendo um diálogo com autoridades, e a PF me perguntou se isso havia sido autorizado por nós. Eu não tinha a menor ciência disso.” A seguir, o ministro procurou o Itamaraty e o então procurador-geral da República Rodrigo Janot, perguntando se ele tinha ciência disso. “Ele disse que não tinha, ficou de ver do que se tratava… Ele me retornou dizendo que era uma atividade exclusivamente não funcional. Era uma situação de contatos fora de qualquer situação oficial, que tinha alguma finalidade acadêmica”, relembra. “Eu voltei a falar com a PF, a PF falou: ‘Olha, tá parecendo um pouco nebulosa essa atuação’. Nós fizemos uma interpelação para saber o que tava acontecendo, mas eu nunca tive uma resposta conclusiva sobre isso.” “Pela legislação, quem representa a autoridade brasileira para fins de cooperação internacional é o MJ. E nós temos exatamente para isso um departamento, que é o DRCI”, detalha o ex-ministro, que afirma que já havia alertado a PGR sobre documentos que haviam sido trazidos ilegalmente da Suíça por membros da Lava Jato. Apresentando os delatores para o DOJ A delegação, liderada por Stokes, incluía alguns dos procuradores que se tornariam estrelas da luta anticorrupção internacional nos Estados Unidos. O próprio Stokes deixou a chefia da seção de FCPA, no Departamento de Justiça, em 2016, para se tornar advogado de defesa de empresas que são investigadas pela mesma divisão que ele comandava. Hoje, é sócio no rico escritório Gibson, Dunn & Crutcher’s – que atende a Petrobras nos Estados Unidos – uma posição cujo salário chegou a R$ 3,2 milhões em 2017. Além dele, estavam presentes dois procuradores-chave nos casos da Petrobras e Odebrecht, Christopher Cestaro e Lorinda Laryea. Ambos continuam atuando na divisão de FCPA do DOJ. Em 2017, Cestaro foi nomeado chefe-assistente da divisão e, em julho do ano passado, tornou-se o chefe de FCPA, comandando todas as investigações de corrupção internacional contra empresas americanas e estrangeiras. Do lado do FBI, George “Ren” McEachern liderou até dezembro de 2017 a Unidade de Corrupção Internacional do FBI em Washington, com mais de 40 agentes, supervisionando todas as investigações de corrupção ligadas à Lava Jato. A agente Leslie Backschies, que também esteve na comitiva, era supervisora da Divisão de Operações Internacionais do FBI no continente e acompanhou de perto todas as investigações no Brasil. Ela atualmente ocupa o antigo cargo de “Ren” e supervisiona os três esquadrões do FBI dedicados a investigar corrupção pelo mundo afora. Na terça-feira, dia 6, Dallagnol recebeu os agentes americanos com uma apresentação geral sobre as investigações, que durou uma hora. A seguir e ao longo da quarta-feira, cada procurador fez uma exposição sobre cada um de seus investigados. Todos já haviam assinado acordos de delação premiada com a força-tarefa – a maioria após ter passado meses na prisão em Curitiba. O procurador Paulo Galvão detalhou o caso de Alberto Youssef, talvez o mais importante colaborador da Lava Jato, cuja delação premiada fora homologada em dezembro de 2014. Testemunha-chave na operação, o doleiro já era conhecido por esquemas de corrupção desde 2002, quando atuou no caso Banestado. À Lava Jato, admitiu ter participado, por exemplo, da lavagem e distribuição de dinheiro desviado da Refinaria Abreu e Lima a políticos do PP, PMDB e PT. Sua delação levou a diversas operações da PF e sua pena chegou ao total de 122 anos de prisão, sendo reduzida a três anos pela delação premiada. “A colaboração dele [Youssef] foi estruturante. Foi a espinha dorsal”, declarou seu advogado ao UOL, na época. Desde o mês anterior, circulavam reportagens dizendo que Youssef estava negociando uma delação com os americanos. A seguir, Galvão detalhou a situação do primeiro delator da Lava Jato, o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, cujo acordo havia sido homologado em 30 de setembro de 2014, após seis meses de prisão. O procurador explicou também os detalhes da investigação sobre Augusto Mendonça Neto, dono da empresa de construção Toyo Setal e primeiro empresário a se tornar delator. Os procuradores Roberson Pozzobon e Antonio Carlos Welter fizeram apresentações sobre o passado de Pedro Barusco, ex-gerente de serviços na Petrobras que assinara acordo de delação em novembro do ano anterior. Outros delatores que tiveram seus casos detalhados aos americanos foram Hamylton Padilha, lobista da Petrobras que atuava na área de aluguel de sondas para perfuração de poços; Ricardo Pessoa, ex-presidente da Construtora ETC Engenharia; e Dalton Avancini, ex-presidente da Camargo Corrêa. O programa daquele dia previa, ainda, discussões sobre “quaisquer” negociações em andamento com possíveis colaboradores. Depois de ser “brifada” sobre vários alvos da Lava Jato, a delegação americana passou dois dias negociando com advogados de delatores-chave. Cada um deles teve meia hora para apresentar seus casos e conversar sobre os termos da colaboração com as autoridades americanas. Muitos desses contatos foram bem-sucedidos. No ano seguinte, uma nova delegação voltou a Curitiba e ao Rio de Janeiro – dessa vez com um MLAT assinado – para ouvir cinco alvos da Lava Jato. Outros delatores negociariam acordos para depor diretamente nos EUA. “Devemos cumprir pedidos passivos sempre que possível, mas sem cair em armadilhas” Em 9 de outubro, dia em que a missão do DOJ deixou Curitiba, Aras, que estava em férias na Alemanha, mudou o tom da conversa com Dallagnol, mostrando-se muito mais preocupado com as investigações conduzidas em solo brasileiro. Isso porque, segundo Aras, os procuradores do DOJ poderiam usar as informações contra cidadãos ou empresas brasileiras. A preocupação demonstra como o chefe da Lava Jato em Curitiba explorou uma zona cinzenta, fazendo soar alarmes na própria PGR. Em uma longa mensagem às 20h56, ele diz: “Delta, como já conversamos, essa investigação dos americanos realmente me preocupa. Fiquei tranquilo quando vc garantiu que esse grupo de americanos não fez investigações em Curitiba quando esteve aí. Você sabe que eles têm poucas limitações para uso de provas lá. Mesmo as obtendo de maneira menos formal no exterior, eles podem usá-las válida e te em alguns casos. Daí o meu receio inicial, já que o MPF e a SCI não podem permitir isso sob pena de gerar decisões contrárias ao auxílio direto e à autonomia do MPF nas medidas de cooperação internacional passiva e ativa. Como te disse na segunda, o MRE mencionou até a possibilidade de ‘abalo nas relações bilaterais’”, escreveu. “Claro que devemos cumprir pedidos passivos sempre que possível, mas sem cair em armadilhas”, prossegue, pedindo mais uma vez que o assunto seja coordenado com ele para evitar “baixas de guerra”: “Vamos tocando esse assunto de forma coordenada: SCI/FT/GT. Obrigado pelos informes. Manterei vc também ciente. Que todos sejam responsabilizados pelo que fizeram, de preferência sem ‘casualties of war’. Abs.” Força-tarefa sugeriu a americanos meios “mais flexíveis” de questionar brasileiros no Brasil e nos EUA Na semana seguinte à missão em Curitiba, no dia 13 de outubro de 2015, os membros da força-tarefa da Lava Jato seguiam satisfeitos com a visita dos americanos, e o procurador Orlando Martello combinava com Dallagnol um email de agradecimento. Os americanos tinham pressa: queriam tomar depoimentos de delatores brasileiros já em novembro de 2015. O rascunho do email que seria mandado para Stokes foi enviado a Dallagnol às 11:47:36. Martello brinca que pode ameaçar os investigados brasileiros de entregá-los aos americanos. “Foi muito interessante e útil para nós trabalhar com vocês e sua equipe na semana passada. Pudemos entender melhor os procedimentos nos EUA, assim como aprender sobre sua expertise em acordos. Com esse conhecimento, agora nós temos mais uma maneira de convencer empresas e indivíduos a revelar fatos: ameaçar informar ‘as autoridades Americanas’ sobre corrupção e delitos internacionais… (risos)”, escreveu Martello, em inglês. Em tom mais sério, o procurador explica no email que há “dificuldades” e “questões legais” na tomada de depoimentos por uma autoridade estrangeira no Brasil. O maior empecilho seria um entendimento do STF de que todas as diligências no Brasil devem ser presididas por autoridades brasileiras; assim, os americanos poderiam apenas enviar perguntas a serem feitas por procuradores brasileiros. Mas os integrantes da força-tarefa tinham outras sugestões para evitar isso. “Vamos diretamente ao ponto. Para as entrevistas que você e sua equipe planejaram conduzir aqui no Brasil em novembro, elas terão que ser conduzidas por autoridades brasileiras (por procuradores federais ou pela polícia federal). Eu não tinha ciência deste fato, mas Vladimir Aras me lembrou sobre esse entendimento da nossa Corte Suprema. Isso significa que as autoridades brasileiras têm que ‘presidir’, estar a cargo, para conduzir as entrevistas. As autoridades dos EUA podem acompanhar todas as entrevistas e podem fazer perguntas através das autoridades brasileiras. Isso pode ser feito em inglês (se o réus/colaborador e o procurador falarem inglês) ou em português com a ajuda de um tradutor. Nessas entrevistas, as autoridades brasileiras não precisam tomar notas ou registrar o que dizem os réus, mas no final das entrevistas nós anotamos um pequeno resumo do que aconteceu durante as entrevistas (um relatório sobre o ato e não sobre o conteúdo das entrevistas). Em paralelo, os agentes do FBI e quaisquer outras autoridades dos EUA podem tomar notas livremente”. Ele conclui: “Esse procedimento pode tomar muito tempo!”. A seguir, Martello detalha quatro opções para conduzir as entrevistas de maneiras “mais flexíveis”. Primeiro, eles poderiam ouvir os colaboradores da Lava Jato nos Estados Unidos – o que é, para ele (e para Stokes), a melhor ideia, embora parte deles pudesse não aceitar ir voluntariamente para os EUA. E então sugere: “Nós podemos pressioná-los um pouco para ir para os EUA, em especial aqueles que não têm problemas financeiros, dizendo que essa é uma boa oportunidade, porque, embora seja provável que autoridades dos EUA venham para o Brasil para conduzir as entrevistas, as coisas podem mudar no futuro”. Assim seria possível evitar as limitações impostas pela decisão do STF e novas decisões que poderiam se seguir. Ele prossegue: “Então podemos sugerir que é melhor garantir a imunidade deles o mais rápido possível”. A segunda opção seria fazer as entrevistas no Brasil, conduzidas pelos procuradores brasileiros, e “permitir perguntas diretas pelas autoridades americanas”. “Assim, as autoridades brasileiras conduziriam/presidiriam o procedimento, mas nós o tornaríamos mais flexível”, complementou. Martello, porém, anota: “Eu pessoalmente não acho que esta é a melhor opção porque haverá alguns advogados, como os da Odebrecht, que vão ficar sabendo deste procedimento (advogados falam uns com os outros, especialmente neste caso!) e vão reclamar”. A terceira opção seria fazer as oitivas por videoconferência – desse modo, tecnicamente a sessão seria conduzida nos EUA e os americanos poderiam fazer as perguntas e nenhuma lei seria ferida. A opção permitiria que os depoentes permanecessem em solo brasileiro, mas fossem questionados diretamente pelas autoridades estrangeiras. Há, ainda, uma quarta opção, sugerida por Stokes, que Martello não recomenda: realizar as entrevistas na embaixada americana, portanto em solo americano. “Eu tenho medo que a Corte Suprema Brasileira possa entender esse procedimento como uma maneira de contornar sua decisão e decidir contra nós.” O rascunho do email entusiasmou o chefe da Lava Jato: “Ta tão lindo que se eu tivesse ai te dava umas 8 lambidas kkkkk”, escreveu Dallagnol, ao que Martello retrucou: “Da próxima vez faço pior então”. De fato, a recomendação da Lava Jato foi seguida à risca pelos americanos. Pouco depois, os procuradores do DOJ já estavam tratando diretamente com advogados dos empresários brasileiros a sua ida para os EUA. “EUA estão com faca e queijo na mão” A possibilidade de os delatores colaborarem com os americanos a partir do Brasil foi assunto de diversas trocas de mensagem entre Aras e membros da força-tarefa. Nelas, se nota a constante preocupação do ex-diretor da SCI e uma tensão com Dallagnol. Em 30 de novembro de 2015, às 21:09:52, Dallagnol avisa a Aras que os americanos já “estão ouvindo colaboradores”. Aras reage com surpresa e Deltan responde: “Não temos controle sobre as oitivas porque são uns 10 colaboradores que já estão em tratativas de acordos, ou acordos feitos. EUA estão com faca e queijo na mão para ouvirem”. Aras pergunta se os colaboradores estão sendo ouvidos nos Estados Unidos. “Onde estão ouvindo? Informaram ao DRCI?” Dallagnol responde que, por serem nos EUA, as oitivas ocorreriam “à revelia do DRCI”. E prossegue, referindo-se à visita dos americanos no mês anterior: “Nós estamos com pressa, porque o DOJ já veio e teve encontro formal com os advogados dos colaboradores, e a partir daí os advogados vão resolver a situação dos clientes lá… Isso atende o que os americanos precisam e não dependerão mais de nós. A partir daí, perderemos força para negociar divisão do dinheiro que recuperarem. Daí nossa pressa”. “Mas eles só conseguirão isso se colaborarmos, não? Eles não têm provas. Ou têm?”, retruca Vladimir. Em resposta, Dallagnol diz que os americanos “conseguem sim” provas, através dos processos – todos foram publicados online através do sistema eletrônico do TRF4, cujas senhas de acesso eram e ainda são enviadas todas as semanas para centenas de jornalistas do país pelas assessorias do MPF e da Justiça Federal do Paraná. “Eles podem pegar e usar tudo que está na web”, argumenta Dallagnol. Aras pergunta: “Quando eles farão pedido formal de oitivas?”. “Não precisam fazer. Ouvirão nos EUA os que estão soltos e podem viajar.” A resposta surpreende Aras: “Os advogados concordaram? Eles vão viajar sem salvo-conduto????? Loucura”. O assunto causa alarme na PGR, e Aras vai conversar com o então procurador-geral Rodrigo Janot, que recebera uma ligação de Deltan. “Estou refletindo sobre uma posição”, escreve Aras. “Os americanos prometeram salvo conduto”, responde Dallagnol. “Prometer não adianta. Tem de ser no papel”, retruca Aras. Em 17 de dezembro de 2015, Aras reitera seu desgosto com aquele arranjo entre a Justiça americana e colaboradores da Lava Jato, quando discute com Dallagnol um pedido dos EUA para uma oitiva com Hamylton Padilha, que se tornara delator em julho de 2015. Aras explica qual seria o caminho legal a ser seguido pelas autoridades americanas. “O ideal seria eles pedirem isso via DRCI: – execução pelo MPF (mera notificação) – transferência voluntária do colaborador aos EUA para depor – emissão de “safe passage” para o colaborador antes da viagem – tomada do depoimento nos EUA – retorno do colaborador ao Brasil”. “Safe Passage” seria um salvo-conduto, uma garantia que os brasileiros não seriam presos ao irem dar depoimento em solo americano. Dallagnol argumenta que o delator em questão não está preso, e Aras explica que isso não importa: “A pessoa a ser transferida com salvo-conduto não precisa estar presa. Pode ser vítima, perito, testemunha, acusado/suspeito”. Dallagnol admite, então, que a força-tarefa pode ter errado ao não avaliar as consequências da parceria com os americanos durante a visita secreta a Curitiba. “Quando estavam aqui, e não tínhamos ainda restrições, mas estávamos operando no automático, sem conhecimento da dimensão das consequências e pensando em aplicar o tratado diretamente (o que ainda não está fora de cogitação, estamos todos refletindo, creio), dissemos que não haveria problema em os colaboradores, que pudessem, ir aos EUA para prestar as declarações.” Se de fato, porém, a ideia de Deltan não era garantir vantagens aos americanos e driblar o governo brasileiro, já era tarde demais. Um marco no relacionamento entre a Lava Jato e o DOJ foi a primeira visita oficial aos Estados Unidos, em 9 e 10 de fevereiro de 2015, dos procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima, Marcelo Miller e Deltan Dallagnol, que acompanhavam o então procurador-geral da República Rodrigo Janot e o próprio Aras em visita cuja existência chegou a ser noticiada na imprensa brasileira. Eles se reuniram com o DOJ, representantes da Comissão de Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês), da Receita Federal americana (IRS, na sigla em inglês), do FBI e do Departamento de Segurança Interna (DHS). Foi a partir dessa visita que os procuradores passaram a discutir a vinda da comitiva a Curitiba. Aquela missão tinha três objetivos, segundo um relatório feito pelos procuradores de Curitiba e compartilhado nos chats: agilizar o intercâmbio de informações nos casos da Lava Jato, conseguir a prioridade de execução nos pedidos de cooperação internacional já encaminhados e “criar e manter um ambiente favorável à colaboração de investigados, buscando-se o compromisso das autoridades alienígenas na não persecução daqueles que firmaram acordos com o Ministério Público Federal”. A ideia era conseguir um acordo com o DOJ de que nenhum dos delatores da Lava Jato seriam investigados nos EUA. O relatório conclui: “Desses três objetivos, os dois primeiros foram atingidos. O terceiro ainda está sendo objeto de análise pelos Estados Unidos, por necessitar de uma apreciação mais ponderada das evidências, dos acordos e da sua contribuição para as investigações”. No final, todos os sinais indicam que Dallagnol nunca conseguiu essa concessão dos americanos, o que deixou os delatores à mercê das autoridades americanas, negociando caso a caso. De acordo com advogados de defesa que trabalharam nesses casos, os acordos com o DOJ são “casuísticos”, ou seja, decididos caso a caso, em negociações individuais. Advogados relataram casos em que houve a emissão de um salvo-conduto para viagens aos EUA e outros em que se chegou a um non-prosecution agreement, um compromisso formal do governo americano de que os delatores não seriam processados. Porém, em outros casos, nenhuma dessas garantias foi dada pelo governo americano ainda. “Não há nenhum papel nosso concordando, com certeza” Diante da hesitação dos procuradores brasileiros, os americanos foram rápidos e, a partir de dezembro de 2015, já havia delatores viajando para os Estados Unidos a fim de prestar depoimentos ao DOJ. As notícias das viagens de Augusto Mendonça e Júlio Camargo, executivos da Toyo Setal, empresa que mantinha contratos com a Petrobras, que relataram terem pagado propina ao PT, causaram nova consternação na PGR, que voltou a pedir explicações à força-tarefa. Mais uma vez, Dallagnol responde a Aras que não tem nenhum controle sobre as negociações diretas entre a Justiça americana e colaboradores da Lava Jato – mas se esquece de mencionar que as viagens para os EUA foram uma sugestão do seu grupo. “Lembro até que Vc tinha sugerido para preferencialmente as oitivas serem via MLAT, mas preferencialmente, ideia que só veio depois das reuniões deles e, em função disso, não temos mais controle”, escreve.Aras retruca: “Lembro de quase tudo isso, Delta, menos de ter concordado com a prática de colaboradores receberem alguma espécie de aval do MPF para viajarem aos EUA, como andam dizendo por aí. O ok seria dado em pedidos formais de MLA, após pedidos de transferências de pessoas”. “Pelo que entendi não há nenhum papel firmado por vcs concordando com tais viagens, ou há? Esse é o ponto da minha preocupação”, pergunta Aras. Dallagnol responde de madrugada, à 1:04:07 do dia 7 de abril. “nenhum papela nosso concordando, com certeza”. E acrescenta: “O que fizemos foi apresentar e não nos opormos”. “Melhor assim. Joia.” É a resposta de Aras. Em 2016, procuradores do DOJ questionaram Cerveró, Costa e Youssef Em julho de 2016, uma nova comitiva do DOJ veio ao Brasil para tomar depoimentos em Curitiba e no Rio de Janeiro. Dessa vez, a comitiva veio munida de MLAT e aparentemente seguiu as sugestões da equipe de Dallagnol, evitando questionamentos no STF. O documento com a programação da viagem mostra que participaram da comitiva os advogados Lance Jasper e Carlos Costa Rodrigues, da SEC, e os procuradores do DOJ Kevin Gringas, Hector Bladuell, Davis Last, Gustavo Ruiz e, mais uma vez, Christopher Cestaro, atual chefão de FCPA do governo americano. Da parte do FBI, vieram duas intérpretes (Tania Cannon e Elaine Nayob) e dois agentes: Becky Nguyen e Mark Schweers – ele já acompanhara a comitiva de outubro de 2015. Entre 13 e 15 de julho, o grupo utilizou a sede da PGR no centro do Rio de Janeiro para ouvir o ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró e o ex-diretor de abastecimento Paulo Roberto Costa, ao longo de três sessões, totalizando nove horas de questionamentos a cada um. Quatro meses depois, em novembro daquele ano, a Folha de S.Paulo noticiou que Costa havia fechado um acordo para cooperar com o FBI e o DOJ, comprometendo-se a fornecer documentos e prestar depoimentos e entrevistas sempre que convocado. Estavam presentes nas oitivas no Rio de Janeiro o procurador da Lava Jato fluminense Leonardo Freitas e membros da SEC, além dos advogados dos delatores. Refinaria de Pasadena na mira Entre 14 e 21 de julho de 2016, a agenda dos americanos foi na Procuradoria da República em Curitiba – e bastante cheia. Uma novidade – que não constava nas apresentações iniciais listadas na agenda do encontro de outubro de 2015 – foi o contato com o ex-funcionário da Petrobras Agosthilde Mônaco de Carvalho, ex-assessor de Cerveró que atuou na compra da refinaria de Pasadena, no Texas. Os agentes do FBI e do DOJ o questionaram durante seis horas. Ele reconhecera o pagamento de propina na compra, em novembro do ano anterior, e em depoimento ao Tribunal de Contas da União foi chamado de “homem bomba”, ao falar sobre a aprovação do Conselho da Petrobras, presidido à época por Dilma Rousseff. Na semana da visita dos americanos, Dilma já estava afastada do cargo de presidente, no processo de impeachment a que respondia. Os agentes americanos questionaram também o doleiro Alberto Youssef durante seis horas, assim como seu ex-funcionário Rafael Ângulo Lopez. No último dia, a comitiva americana reuniu-se durante todo o dia para discutir o caso Odebrecht com a Lava Jato: Dallagnol, Martello, Galvão, Roberto Pozzobon e Marcelo Miller, então na PGR. A reunião começou às 10 da manhã e seguiu até as 17 horas, com direito a uma hora de almoço, segundo o documento. DOJ vai para cima da Odebrecht Em dezembro de 2016, pouco antes do Natal, a Odebrecht, junto com sua subsidiária Braskem – uma sociedade com a Petrobras –, fez um acordo com o DOJ no qual ambas concordaram em pagar um mínimo de US$ 3,2 bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões – pelas práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA. Na época, foi o maior acordo global de corrupção internacional. O acordo firmado com os EUA pelas empresas garante que elas têm que colaborar com as autoridades americanas em quaisquer investigações, disponibilizando seus funcionários para questionamentos sempre que chamados. Advogados de defesa consultados pela reportagem afirmam que houve pelo menos mais duas delegações do DOJ para ouvir empresários da Odebrecht, na sede do MPF em São Paulo, nos anos 2017 e 2018. As oitivas são precedidas do attorney proffer, uma negociação com advogados que estabelecem quais os pontos que o DOJ quer ouvir. Um depoimento tomado por um attorney proffer não isenta o investigado de futuros questionamentos ou investigações. Geralmente, o que se estabelece é que essas informações não serão usadas criminalmente contra eles – mas podem ser usadas, por exemplo, contra outros cidadãos brasileiros. Houve também um número não divulgado de viagens de delatores aos EUA, além de negociações e oitivas por internet – todas essas modalidades foram sugeridas pela força-tarefa no email vazado. Especialistas ouvidos pela reportagem destacaram problemas em cooperar com autoridades americanas sem passar pelas vias oficiais. Falando em tese, o professor Eduardo Pitrez, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande, afirmou que “a cooperação judiciária internacional sempre esteve vinculada ao topo do Poder Judiciário, ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou à diplomacia profissional, porque há elementos muito sensíveis, como a soberania nacional, interesses e disputas internacionais e questões de relacionamentos entre Estados que órgãos do sistema de justiça de menor hierarquia não estão preparados para avaliar”. “A chamada ‘cooperação direta’ gera uma fragmentação. Com essa fragmentação, qualquer juiz, qualquer procurador ou promotor pode estabelecer relacionamento internacional a partir da agenda anticorrupção. A agenda anticorrupção permite, vamos dizer assim, chegar direto à agenda do governo em questões importantes do país, como, por exemplo, uma empresa petrolífera ou as capacidades competitivas das grandes empresas nacionais”, completa. A professora de direito penal e econômico na Fundação Getulio Vargas, Heloísa Estellita, lembra que falta uma legislação nacional que regulamente a cooperação internacional. “No Brasil, a cooperação internacional não é regulada por lei e, por isso, há muito abuso.” Ela diz que “o estado de direito estabelece regras para as autoridades atuarem, porque elas atuam nos limites em que o povo autoriza sua ação. Fazer cooperação sem base em lei é trair o pacto democrático”. Ela falou em tese e não analisou os diálogos específicos desta reportagem. Procurado pela reportagem, o então chefe do DRCI, Ricardo Saadi afirmou: “O contato informal e direto entre as autoridades de diferentes países é permitido e previsto em convenções internacionais. Para esse tipo de contato, não há a necessidade de elaboração de pedido baseado no MLAT”. Ele afirmou que seu email tinha como objetivo “disponibilizar o DRCI para proceder eventual pedido de cooperação jurídica internacional para obtenção de provas pelas autoridades”. E disse ainda não se recordar se houve uma resposta formal ao email. O procurador da República Vladimir Aras defendeu a legalidade da visita e a não necessidade de autorização do Ministério da Justiça. “O Ministério Público Federal esclarece que os tratados de cooperação internacional em matéria penal, conhecidos por ‘Mutual Legal Assistance Treaties’ (MLAT), não são a única via disponível para a cooperação internacional de cunho criminal”, escreveu em nota, mencionando a : “colaboração voluntária” do investigado, cartas rogatórias e troca de informações policiais. “Ademais, o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes países é uma boa prática internacional, recomendada, por exemplo, desde o ano 2000 pelo Conselho da Europa.” “As reuniões prévias e o intercâmbio de informações no curso da investigação compreendem a etapa chamada ‘pré-MLAT’. O MP e a Polícia não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo”, afirmou. “Pretender que todos os contatos com procuradores estrangeiros sejam intermediados por um só órgão em Brasília seria como submeter o MP a eventuais vicissitudes do Poder Executivo, o que representaria a perda da autonomia que a Constituição Federal conferiu à instituição, inclusive para investigar crimes praticados por altas autoridades republicanas”. Leia a nota completa. Procurado pelo The Intercept, o Departamento de Justiça americano afirmou que não iria comentar a reportagem. O que diz o acordo bilateral O Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal com os Estados Unidos lista situações em que se deve pedir assistência jurídica (MLAT) através de vias oficiais. Entre elas, a tomada de depoimentos de pessoas, o fornecimento de documentos, registros e bens, transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento e execução de pedidos de busca e apreensão, imobilização e confisco de bens. O artigo 10 prevê justamente o tipo de viagem feita por delatores da Lava Jato aos Estados Unidos. O acordo prevê também que a presença de autoridades do outro país para depoimento ou produção de prova em seu país, inclusive permitindo que “essas pessoas apresentem perguntas a serem feitas à pessoa que dará o testemunho ou apresentará prova”. Mas não estabelece de que forma essas perguntas devem ser apresentadas ou como o testemunho deve ser tomado. Prevendo questões problemáticas à soberania nacional, o artigo 3o permite ainda que um dos dois países negue um pedido de assistência jurídica se o atendimento “prejudicar a segurança ou interesses essenciais semelhantes do Estado Requerido”. Ou seja, o Brasil poderia ter se negado a ajudar a investigação dos EUA sobre a Petrobras por ser uma empresa estratégica. Respostas da Lava-Jato Procurada pela Pública, a força-tarefa da Lava Jato respondeu por email pedindo que seu posicionamento fosse publicado na íntegra. Seguem as perguntas e respostas: Segundo os diálogos vazados, o DRCI não aprovou a visita de procuradores americanos e agentes do FBI a Curitiba entre 6 e 9 de outubro de 2015 em reuniões com procuradores de Lava Jato e advogados de delatores. Isso não é ilegal, segundo o acordo bilateral que estabelece que todas as diligências devem ser aprovadas via um MLAT? Para o intercâmbio de informações entre países, antes da formalização de um pedido formal por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável e legal que as autoridades mantenham contatos informais e diretos. A cooperação informal significa que, antes da transmissão de um pedido de cooperação, as autoridades dos países envolvidos devem manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas. Acordos bilaterais não esgotam as modalidades de cooperação entre países, que podem se dar, inclusive, com base em reciprocidade. Em setembro de 2019, a força-tarefa da Lava Jato afirmou que “diversas autoridades estrangeiras de variados países vieram ao Brasil para a realização de diligências investigatórias, algumas ostensivas, outras sigilosas, conforme interesse dessas autoridades. Sendo um caso ou outro, todas as missões de autoridades estrangeiras no País são precedidas de pedido formal de cooperação e de sua autorização”. No entanto, os diálogos revelam que a missão de outubro de 2015 não foi precedida de pedido formal de cooperação ou de autorização. Por quê? Não recebemos os dados sobre as visitas, já bastante antigas, nem a fonte da informação referente à força-tarefa. De todo modo, a necessidade de formalização da diligência ocorre quando ela tem cunho probatório (“diligências investigatórias”), destinando-se, por exemplo, a colher depoimentos formais que são enviados via canais oficiais. A informação não engloba, certamente, contatos e conversas entre autoridades, que podem se dar informalmente, por telefone ou pessoalmente. Se assim interpretada, a informação enviada entre aspas está correta. Foi exatamente esse tipo de contato direto que permitiu de modo exitoso o acesso por autoridades brasileiras a documentos bancários fundamentais para denúncias e bloqueios de milhões de dólares fruto de corrupção, desvios e lavagem de dinheiro. Do mesmo modo, o contato entre autoridades estrangeiras e advogados de colaboradores ou colaboradores é plenamente legal, podendo se dar por diversas vias. Um documento obtido pela reportagem demonstra que os advogados do DOJ vieram a Curitiba para “levantar evidências” sobre o caso da Petrobras. Isso não a qualificaria como uma “diligência”? O que a Lava Jato classificaria como uma viagem “para a realização de diligências investigatórias”? Diligências investigatórias constituem a produção de provas como a colheita de depoimentos, a realização de buscas e apreensões, a obtenção de documentos de natureza sigilosa ou a obtenção de atos oficiais de Estado. Não tivemos acesso ao suposto documento mencionado na pergunta, nem para verificar sua fidedignidade. Tratando-se de supostas tratativas de 2015, na época provavelmente já existiam pedidos de cooperação brasileiros pendentes de cumprimento no exterior, assim como o interesse das autoridades brasileiras de que as autoridades estrangeiras iniciassem investigações sobre empresas estrangeiras que haviam potencialmente praticados crimes no Brasil e que seriam de difícil alcance pela jurisdição brasileira, o que depois veio a se concretizar. A referência a “caso Petrobras” engloba todos os subcasos da Lava Jato e o intercâmbio com as autoridades norte-americanas, ao longo dos anos, tem se concentrado bastante no tipo de caso mencionado. Essa cooperação direta entre autoridades é reconhecida como boa prática internacional pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, pelo GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), pelo Banco Mundial e pela AGU (Advocacia-Geral da União), dentre outros organismos. O DRCI enviou um questionamento no dia 7 de abril, quando os americanos já estavam no Brasil, pedindo mais informações. Por que o DRCI não foi informado da presença da delegação americana? Eventuais reuniões com autoridades alienígenas – e foram dezenas, algumas presenciais e outras virtuais com diversos países -, não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados. Somente é necessário um pedido de cooperação para a produção e transmissão de documentos que serão utilizados no exterior, ou para a realização de outras diligências de cunho investigatório antes mencionadas. Nesses casos, todas as missões foram precedidas de pedido formal de cooperação. O intercâmbio de informações por meio da cooperação informal é, como dito, um procedimento legítimo e pode ser feito antes, durante e após a formalização de um pedido de cooperação internacional, e não o substitui. Segundo documentos vazados, a Lava Jato pretendia obter do DOJ um compromisso de não-persecução penal para seus delatores. Isso foi obtido? Em caso negativo, por que a força-tarefa continuou a cooperar com o governo americano apesar da ausência deste compromisso? Foram feitos todos os ajustes necessários para assegurar a preservação do interesse público, com o objetivo de que os colaboradores brasileiros tivessem seus acordos respeitados, como se verificou de fato até hoje. A Lava Jato orientou os procuradores americanos a entrevistar seus delatores nos Estados Unidos? Por quê? As autoridades estrangeiras não precisam de autorização brasileira para ouvir, entrevistar ou fazer acordo premiado com cidadãos brasileiros, colaboradores ou não, em seu território. Isso é mais verdade ainda no caso de empresas que fizeram acordos simultâneos em vários países, cujos empregados também buscavam um acordo de colaboração no exterior. O MPF, no entanto, como várias vezes já externou a colaboradores e seus advogados, sempre buscou que os acordos brasileiros fossem respeitados pelas autoridades dos outros países. O procurador-chefe da Lava Jato Deltan Dallagnol foi questionado diversas vezes pelo SCI sobre a ida de brasileiros para os Estados Unidos prestar depoimento sem MLAT. O procurador apoiou ou aprovou esse expediente formalmente ou informalmente? Por quê? Vários colaboradores procuraram diretamente autoridades estrangeiras – e não apenas os EUA – para formalizar diretamente acordos de colaboração. Isso foi – e é – incentivado pelo MPF, pois está dentro do escopo do acordo de colaboração firmado no Brasil, com vista a aumentar a proteção do colaborador no estrangeiro. Essa decisão cabe exclusivamente ao colaborador e seu advogado. O MPF não tem o poder legal de impedir que qualquer investigado procure autoridades no exterior para colaborar na investigação de crimes; assim, não tem qualquer ingerência nesses acordos. Em algum momento a Lava Jato ou seu diretor evitaram compartilhar com o governo federal detalhes sobre a cooperação com os procuradores americanos? Por quê? O governo federal é um canal para a cooperação e não a autoridade responsável pelo pedido ou cumprimento da cooperação. Assim, o departamento de cooperação internacional do governo federal foi acionado sempre que foi necessário. Não há, contudo, qualquer tipo de dever ou obrigação no sentido de compartilhar toda a investigação. Aliás, a imprensa divulgou recentemente que a força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro investiga o vazamento de informações de cooperação internacional pelo governo federal pretérito. Riscos desse tipo recomendam que informações sobre investigações, especialmente sigilosas, não sejam compartilhadas com outros órgãos de modo desnecessário. Seja aliada da Pública Faça parte do nosso programa de apoio recorrente e promova jornalismo investigativo de qualidade. Doações a partir de R$ 10,00/mês. Colaborou Raphaela Ribeiro. Clique aqui para ver página original Ler Mais

segunda-feira, 9 de março de 2020

domingo, 8 de março de 2020

Imposição da Cultura BOLSOFAKE


A guerra cultural bolsonarista é um núcleo do governo. Pode sair o Paulo Guedes [Economia], pode sair o Sergio Moro [Justiça e Segurança Pública], mas não pode sair a guerra cultural. Se a guerra cultura sair, acaba o governo Bolsonaro. O governo Bolsonaro não tem projeto. O verbo dominante nos vídeos dos intelectuais bolsonaristas é eliminar. E o substantivo é limpeza Jornal Opção 8 de março de 2020 05:34 Professor doutor da UERJ diz que guerra cultural bolsonarista vem de “tradução inesperada, de consequências funestas”, da doutrina de segurança nacional da Escola Superior Militar Professor João Cezar de Castro Rocha – Foto Reprodução/YouTube Itaú Cultural “As pessoas não levam a sério a guerra cultural bolsonarista.” O tom é de alerta. É essa mesmo a intenção do professor doutor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha, que trabalha na conclusão de um livro sobre o que chama de guerra cultural bolsonarista. “É uma guerra cultural que fala dois idiomas”, explica. De acordo com as hipóteses levantadas pelo professor titular de Literatura Comparada, doutor em Letras pela UERJ e Literatura Comparada pela Stanford University, nos Estados Unidos, a destruição das instituições e a eliminação simbólica do inimigo interno são pontas de lança do projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Castro Rocha afirma: “Há um ressentimento enorme. Há um revanchismo evidente. Há um desejo de destruir todas as instituições que caminharam no sentido do fortalecimento da democracia e da salvaguarda das instituições”. E tudo parte de um livro secreto escrito pelos militares a partir de 1986 sob o comando do então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. De onde parte o que o sr. chama de guerra cultural na estrutura do governo Bolsonaro? Minha ideia surgiu de uma perplexidade. Em um primeiro momento, provavelmente todos nós ficamos muito surpresos com o nível praticamente caricatural de várias áreas no governo. Declarações que pareciam a princípio estapafúrdias da ministra Damares Alves [Mulher, Família e Direitos Humanos], do ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores], do primeiro ministro da Educação [Ricardo Vélez Rodríguez], depois do segundo [Abraham Weintraub] e o ministro Ricardo Salles [Meio Ambiente]. Havia um conjunto de declarações que parecia tão descolado da realidade que pareciam formar de fato uma espécie de Brasil paralelo. Mas essa explicação não me satisfazia. Me parece que é um grave problema, porque nós temos uma tendência a reduzir essa situação gravíssima que vivemos à caricatura. O que proponho é passar da caricatura à caracterização. Isto é, tentar compreender a guerra cultural bolsonarista na sua própria dinâmica. Tentar entender qual é sua fonte, qual é a origem desse pensamento, quais são as dinâmicas que lhe são próprias. Há um equívoco quando reduzimos a guerra cultural a uma caricatura. Estamos, em uma boa medida, imaginando que a guerra cultural bolsonarista é comparável às guerras culturais que ocorrem nos Estados Unidos e na Europa há mais de uma década. A hipótese que proponho é bastante diferente. Proponho deixar de se relacionar com este modelo de guerra cultural, que na Europa e nos Estados Unidos tem de 15 a 20 anos. Já no século XIX na Alemanha houve a “kulturkampf” [a batalha pela cultura]. Nesses casos, em geral, o que ocorre é uma total disputa de valores, de um lado progressistas, de outro conservadores. De um lado uma visão de mundo de esquerda, de outro uma visão de mundo de direita, e assim sempre. No caso da guerra cultural bolsonarista, que não deixa de ter contato com esse tipo de modelo, proponho, a partir de um estudo aprofundado que tenho feito, que o modelo da guerra cultural bolsonarista tem uma característica muito própria, muito relacionada à história recente brasileira e a incapacidade que temos de compreender isso que não nos permite reagir a tempo para o que creio que pode ser um momento inédito no Brasil em termos de ruptura e, sobretudo, em termos de paralisação da administração pública. Em um dos artigos publicados recentemente, o sr. faz comentários sobre o documentário “1964 – Brasil Entre Armas e Livros”, do Brasil Paralelo. O sr. diz que o filme faz uma revisão da história da ditadura militar de 1964 a 1985 sob o aspecto de que os militares teriam combatido a luta armada, mas não teria combatido os livros, a cultura e a educação. Onde nasce essa construção de ameaça constante do comunismo no Brasil e até onde ela vai? Essa é a pergunta chave. Só sou capaz de partir para uma nova hipótese porque acredito que descobri a resposta. Não nego que a guerra cultural bolsonarista se relacione com as guerras culturais que ocorrem hoje no mundo. Mas digo que isso está apenas na superfície. É muito mais na técnica de utilização de trollagem de WhatsApp. Mas o conteúdo da guerra cultural bolsonarista é arraigadamente ligado a uma concepção revisionista da ditadura militar. Essa concepção tem um documento. E eu descobri o documento. A guerra cultural bolsonarista realiza, de um lado, uma tradução inesperada, de consequências potencialmente funestas, da doutrina de segurança nacional que foi desenvolvida durante a ditadura. Mas, mesmo antes, pela Escola Superior de Guerra. A doutrina de segurança nacional adaptou o direito internacional público para o caso brasileiro. Na doutrina de segurança nacional, uma vez identificado o inimigo não há dúvida: é necessário eliminá-lo. A guerra cultural bolsonarista tem muito pouco a ver com cultura como nós entendemos e tem muito a ver com a concepção militar da doutrina de segurança nacional de eliminação do inimigo interno. Se você fizer o trabalho mínimo de assistir a alguns vídeos de intelectuais bolsonaristas, o verbo dominante é eliminar. E o substantivo dominante é limpeza. É um vocabulário retirado diretamente do golpe militar de 1964. Como traduzir em um ambiente democrático a doutrina de segurança nacional se a democracia necessariamente implica o contraditório e estar exposto à diferença? Em 1985, depois de um trabalho de seis anos, foi publicado no Brasil um livro que marcou época chamado “Brasil: Nunca Mais”. Seria um livro negro da ditadura militar. De maneira secreta, um grupo de pesquisadores compilou aproximadamente 5 mil páginas de documentos do Superior Tribunal Militar (STM) com processos de subversivos e guerrilheiros. Portanto, todos os documentos que fazem parte do projeto “Brasil: Nunca Mais” foram produzidos pela ditadura militar. Os pesquisadores compilaram uma seleção dos documentos de modo a denunciar para a sociedade brasileira a tortura, o assassinato e o desaparecimento político. Eu tinha 20 anos quando o “Brasil: Nunca Mais” saiu. Foi uma revolução na sociedade brasileira. Ficaram comprovadas de uma maneira muito clara todas as arbitrariedades e violência da ditadura militar. No ano seguinte, sob a liderança do ministro do Exército do governo José Sarney (MDB), que era o general da linha dura Leônidas Pires Gonçalves, um grupo de militares resolver revidar. Resolveu, a seu modo, escrever outro livro. Já que o “Brasil: Nunca Mais” se tornou o livro negro da ditadura militar, os militares comandados pelo Leônidas Pires Gonçalves decidiram escrever o livro negro da luta armada, isto é, o livro negro da esquerda. Os militares compilaram material e documentos, sobretudo do serviço de informação da Marinha, Exército, Aeronáutica e do Serviço Nacional de Informação (SNI), organizaram dois volumes de aproximadamente mil páginas e queriam publicar o livro. Seria a resposta do Exército ao “Brasil: Nunca Mais”. José Sarney, em 1989, vetou a publicação temendo a radicalização e a polarização que daí poderia surgir. A partir deste momento, algumas cópias produzidas manualmente circularam entre oficiais de alta patente e poucos militantes de direita. Até que um jornalista, Lucas Figueiredo, especialista na comunidade de informação brasileira, autor do talvez mais importante livro sobre o SNI, “Ministério do Silêncio”, descobriu e teve acesso ao livro. O projeto dos militares se chamava “Orvil”. Livro de trás para frente. Realmente é um livro de trás para frente porque é um livro que procura inverter completamente o “Brasil: Nunca Mais”. Porque se o “Brasil: Nunca Mais” era o livro negro da ditadura militar, o “Orvil” era o livro negro da esquerda. Da luta armada em particular. O “Orvil” compila em suas mil páginas documentos que mostram a morte de civis em ações da luta armada, que considera que todos os guerrilheiros eram terroristas, que não lutavam pela democracia. E fazia a compilação sistemática desses documentos. Depois, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra aproveito para publicar o seu livro. Que é o “A Verdade Sufocada”? Isso. Lucas Figueiredo descobriu o “Orvil” e publicou. Hoje, o leitor do Jornal Opção, se colocar no Google “Verdade Sufocada” chega no “Orvil” e pode baixar a versão fac-similar. É uma leitura surpreendente. Primeiro porque mostra, pela visão do Exército, como foi a luta armada. É interessante para quem tem preocupação com o período. Além da compilação de documentos e de fatos, procuram mostrar que a esquerda da luta armada, na concepção do Exército, era terrorista e provocou tantos assassinatos e tantas mortes quanto o próprio Exército. É uma interpretação. Uma narrativa. Tem uma linha narrativa que procura interpretar a história republicana brasileira a partir da década de 1920. O que vou dizer aqui é exatamente o que dizem os ideólogos do presidente, exatamente o que diz o ministro da Educação, exatamente a base do documentário e a estrutura de pensamento do Brasil Paralelo, tudo que está por trás da ação deletéria deste governo para destruir as instituições. Desde o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], que teve a sua estrutura de fiscalização desmontada, até a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], que está sendo destruída passo a passo. A narrativa que o “Orvil” propõe é que o século XX brasileiro assistiu a uma investida constante do movimento comunista internacional para impor ao Brasil uma ditadura do proletariado. É uma narrativa delirante. É uma teoria conspiratória, simplesmente absurda. Segundo o “Orvil”, houve três momentos. O primeiro foi a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que assim se chamava em 1922, e a Intentona Comunista de 1965. Primeiro momento derrotado militarmente pelo Exército brasileiro. O segundo momento começaria após o suicídio de Getúlio Vargas e se prolongaria até o golpe militar de 1964. E, de novo, a tentativa teria sido derrotada militarmente. O terceiro momento seria o da luta armada, entre 1968 e 1974. Sendo que nas cidades a luta armada terminou em 1972. Mas o ano de 1974 é porque em 1974 que os últimos guerrilheiros do Araguaia são assassinados pelo Exército. Não são feitos prisioneiros, são eliminados em fidelidade à doutrina de segurança nacional. Dentro da criação do que o sr. chama de uma narrativa delirante dos ideólogos e membros do governo Bolsonaro de que havia de fato uma ameaça de tomada do poder pelos comunistas… Constrói-se uma narrativa de que haveria no Brasil uma real possibilidade de estabelecimento de uma ditadura do proletariado, que seria uma espécie de China da América Latina dada a dimensão continental e a importância do País no continente. Era o que eles diziam. Diz o “Orvil” que em 1974 começou a quarta fase, o momento “mais perigoso”. Na narrativa dos militares do Exército, em 1974, a esquerda, derrotada militarmente mais uma vez, mudou de rumo e decidiu adotar a técnica gramsciana, que os incultos da guerra cultural bolsonarista, em hostilidade constante com a língua portuguesa, insistem dizer “gramscista”, teria se infiltrado na cultura, acima de tudo nas universidades e nas artes, para a médio prazo tomar o poder. Essa é a explicação do “Orvil”. Se você analisa o discurso do ministro da Educação, do presidente Jair Bolsonaro, do Olavo de Carvalho, de seus seguidores e bolsonaristas, toda estratégia retórica vem do “Orvil”. Vem do “Orvil” a fonte da concepção de mundo do bolsonarismo. A guerra cultural bolsonarista retoma literalmente os termos do projeto secreto do Exército e tenta tornar isso em política pública. O resultado para o País será desastroso. Quando o “Orvil” trata do que seria a quarta fase na narrativa militar a respeito da ditadura, por que Antonio Gramsci e também a Escola de Frankfurt preocupam tanto o bolsonarismo e o novo conservadorismo brasileiro? Se estou certo, esta é a guerra cultural bolsonarista, não a outra. A intenção é eliminar o inimigo interno. E o inimigo interno é qualquer um que não seja bolsonarista. E mais. O bode expiatório é o esquerdista, o movimento comunista internacional globalista. Em um ambiente democrático não se pode fazer o que a ditadura militar fez, que era prender, torturar, assassinar e desaparecer corpos — e o presidente negou recentemente que houve tortura durante a ditadura, o que é um absurdo completo Há até relatório do general Ernesto Geisel que reconhece a existência de tortura. Relatório encomendado por Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar. Isso é um fato histórico. Como não é possível mais eliminar fisicamente os adversários, enquanto conseguirmos defender a democracia, o que o bolsonarismo faz através das milícias digitais é tentar eliminar simbolicamente. Isso tem sido feito desde o início do governo. Fez-se com Hamilton Mourão (PRTB). O vice-presidente foi enquadrado. Foi feito com Gustavo Bebianno [ex-secretário-geral da Presidência da República]. Sem Gustavo Bebianno, Bolsonaro não teria sido sequer candidato. Quem defendeu Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) foi Gustavo Bebianno. Quem conseguiu o partido foi Gustavo Bebianno. Quem montou a estrutura de campanha foi Gustavo Bebianno. Ele foi eliminado simbolicamente. “Como não é possível mais eliminar fisicamente os adversários, o que o bolsonarismo faz através das milícias digitais é tentar eliminar simbolicamente” Quem é o Hamilton Mourão de verdade: o candidato a vice-presidente com discurso muito próximo ao de Bolsonaro ou o vice-presidente o sr. diz que teria sido enquadrado pela militância digital? Mourão não era próximo a Bolsonaro na campanha. Surgiu como última opção quando falhou a possibilidade de o [deputado federal] Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP) ser o vice. Depois que [deputada estadual] Janaína Paschoal (PSL-SP) recusou, que participou da convenção do PSL e, de maneira muito lúcida, disse que era preciso estar ao máximo aberto para críticas e escutar os outros. Por isso Janaína não podia evidentemente manter a vice-presidência de Bolsonaro. Com Philippe de Orleans e Bragança houve controvérsias e ele não foi escolhido vice. No último momento apareceu o Mourão. A milícia bolsonarista tenta eliminar simbolicamente as pessoas. Morão se enquadrou. Bebianno foi eliminado. O general Santos Cruz [ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência], que no início os bolsonaristas consideravam um ícone, foi eliminado simbolicamente com uma crueldade que nunca se viu na história brasileira. Algo muito preocupante. Nunca generais foram tratados da maneira como essas pessoas foram tratadas. Nunca na história política brasileira. Nem mesmo a guerrilha armada tratava os generais como a milícia armada trata. Não há paralelo. Nunca um general da importância do Santos Cruz foi tratado, vilipendiado e humilhado em uma rede social como ocorreu com ele. É uma quebra de hierarquia dentro do Exército cujas consequências ainda são nebulosas. Mas há mágoas. A função das milícias digitais é eliminar simbolicamente os inimigos. Os bodes expiatórios surgem e a violência da milícia bolsonarista digital é algo inédito na história política brasileira. Já que existe uma teoria conspiratória delirante de um movimento comunista internacional, e como não se pode eliminar fisicamente, o que se está fazendo é a eliminação das instituições ligadas a toda pauta progressista ou à cultura. A Ancine [Agência Nacional do Cinema] retirou do seu site cartazes de filmes brasileiros, porque muito seriam de artes esquerdistas. A Fundação Zumbi dos Palmares hoje é presidida por um senhor que nega a existência do racismo no Brasil. Que é hostil ao negro, embora ele também o seja. Que despediu por telefone todos os funcionários de alto escalão negros da Fundação Zumbi dos Palmares. A Capes está cortando sistematicamente todas as bolsas. As verbas do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] estão sendo reduzidas a quase nada. O ministro da Educação não só não consegue realizar uma execução orçamentária minimamente razoável como ainda não apresentou um projeto para o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica]. Se não houver um projeto para substituir o Fundeb que vai expirar este ano, em 2021 a educação nos municípios será muito prejudicada. Na hipótese que levanto, a doutrina da segurança nacional supõe a eliminação do inimigo interno. Como havia uma situação de guerrilha urbana e de luta armada, a eliminação do inimigo interno não foi a sua prisão, seu exílio ou seu banimento. Foi o seu desaparecimento. Foi a eliminação do corpo. Literalmente. Em um ambiente democrático, a guerra cultural bolsonarista coloca em prática o relatório secreto dos militares, o “Orvil”. Está tudo lá. Foi o que descobri. Como não é possível eliminar fisicamente, elimina-se simbolicamente nas redes sociais. É a tarefa das milícias bolsonaristas. E há um projeto em curso de eliminação, destruição, das instituições ligadas ao meio ambiente, cidadania e cultura. As consequências serão absolutamente desastrosas. Duas pesquisadoras da USP sequenciaram o genoma do coronavírus no Brasil em 48 horas. Em nenhum país do mundo isso aconteceu. Isso só ocorreu porque o laboratório havia recebido verbas de pesquisa. Com a política de corte de verbas do CNPq e de corte de bolsas da Capes, o País entrará em colapso. Se houver outra epidemia daqui a dez anos, não haverá cientista, não haverá laboratório, não haverá pesquisa. O panorama é lúgubre, é sombrio. Mas voltemos à questão da interpretação bolsonarista da dominação pela cultura com uma suposta tática gramsciana. Da Escola de Frankfurt, de fato Herbert Marcuse tornou-se uma figura muito importante nas revoltas estudantis de 1968. A obra de Marcuse e de toda a Escola de Frankfurt foi decisiva para o movimento estudantil. É absolutamente correto dizer que nas agitações estudantis de 1968 o pensamento de Herbert Marcuse desempenhou papel muito importante. Marcuse tinha algumas análises muito penetrantes de como as sociedades capitalistas haviam criado na aparência de um regime democrático formas muito sutis de controle e repressão. Theodor Adorno tinha uma tese muito importante que era, diante de um capitalismo de uma sociedade automatizada, de uma vida danificada pela planificação de uma sociedade cada vez mais produzida em massa e em série, uma grande recusa diante dessa sociedade cada vez mais padronizada. Essas duas vertentes da Escola de Frankfurt eram francamente críticas de um mundo que hoje chamamos de capitalismo financeiro globalizado, isto é, de formas de consumo, de formas de padrões, que Adorno recusaria, mas nós chamaríamos de arte, de formas de entretenimento. Por exemplo, se você for a qualquer lugar do mundo existe um programa The Voice. Se você fora a qualquer lugar do mundo existe um Big Brother. A primeira vez que fui a Moscou (Rússia), como faço em toda viagem, ligo a televisão para escutar o idioma. Quando não entendo nada, pelo menos escuto o idioma. Tinha acabado de chegar ao hotel, liguei a televisão e vejo o quarto. Não estava olhando para a televisão. Por algum motivo, tenho a impressão que começo a entender o que estou escutando. O que é impossível, é em russo. Mas o tom de voz, a frequência, o volume, o tipo de discussão. E digo “espere aí, mas estou entendendo isso”. E olhei para a televisão. Você sabe por que eu tinha a impressão de que estava entendendo? Era Big Brother Rússia. É tudo igual. Contra essa padronização dos costumes, contra a padronização da “arte”, o Marcuse tinha uma análise muito sutil de formas de repressão de uma sociedade teoricamente livre. A Escola de Frankfurt foi muito importante para o movimento estudantil e para os anos 1960. Mas as análises que são feitas por Olavo de Carvalho e por seus seguidores sobre Marcuse e Adorno são absolutamente indigentes. É óbvio que eles não sabem ler alemão. E não têm ideia do que estão falando. Não leram nem Adorno nem Marcuse. Isso é muito claro. Como, por exemplo, houve um momento em que Olavo de Carvalho sugeriu que as composições dos Beatles foram feitas pelo Adorno. Ao ouvir algo como isso, é difícil resistir à caricatura. Mas precisamos resistir. Precisamos passar para a caracterização. O que está em jogo por trás disso é a narrativa do “Orvil”. Porque o nome Marcuse aparece no “Orvil”. O que se diz hoje da guerra cultural gramsciana marcusiana está no “Orvil”. Está é a origem. A guerra cultural bolsonarista é inteiramente baseada no relatório secreto do Exército brasileiro chamado “Orvil”. Gramsci está lá. Marcuse está lá. Vou além. O Brasil Paralelo representa, no plano do audiovisual, a difusão da teoria conspiratória do “Orvil”. Porque toda a base da compreensão profundamente equivocada da história política brasileira recente exposta pela produtora de audiovisual Brasil Paralelo é o “Orvil”. O documentário “1964 – Brasil Entre Armas e Livros” é uma transposição literal para a tela, portanto para o grande público, do “Orvil”. Porque o argumento é tão singelo quanto este: os militares venceram pelas armas, a batalha militar, no subtítulo, mas perderam a guerra dos livros. É exatamente a narrativa do “Orvil”. O Brasil Paralelo representa no audiovisual a popularização da narrativa do “Orvil”. E as consequências para a cultura brasileira serão desastrosas, porque levarão a uma ruptura como nunca houve e a uma paralisia administrativa. E não é possível administrar um país com a complexidade do Brasil se não tiver um mínimo de objetividade. Por exemplo, o diretor do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] adverte que há indícios alarmantes do aumento das queimadas. A resposta de Jair Bolsonaro é movida pela guerra cultural: diretor do Inpe é de esquerda e as ONGs vão promover queimadas porque perderam dinheiro fácil do comunismo internacional. Houve, inclusive, uma tentativa de criminalizar ativistas. O diretor do Inpe foi demitido porque é de esquerda e as ONGs são a representação do mal na Terra. O que ocorreu 30 dias depois? As queimadas foram confirmadas em um número muito maior do que o alerta do Inpe. O ministro da Educação deu uma entrevista na segunda-feira, 2, na qual disse que Paulo Freire era feio, fraco e sem resultados positivos. Se se trata disso, você não se sentará diante da sua mesa de maneira serena e irá trabalhar. Consequência: a execução orçamentária do Ministério da Educação é a menor da última década. No serviço público existe o orçamento. Ao contrário do que pensa o grande público, orçamento não quer dizer dinheiro. Quer dizer a previsão de gasto para determinada área. Você não consegue fazer nenhum gasto no serviço público a partir de um certo valor se não tiver licitação, que exige no mínimo três orçamentos, análise de técnicos e outras etapas. Isso quer dizer que não é fácil gastar dinheiro no serviço público. É preciso cumprir uma série de requisitos. As pessoas pensam que o dinheiro está disponível em um banco. Não é assim. O orçamento de um ministério significa que o Congresso aprovou um gasto até aquele teto. Mas para o ministério gastar é preciso gerar projetos e situações. É preciso empenhar, uma técnica administrativa que torna aquele valor em dinheiro, que não é pago de imediato. O fato de o ministro ter tido a menor execução orçamentária da última década quer dizer que há uma paralisia administrativa. O Ministério Público Federal (MPF) cobra do Ministério da Educação explicações para entender o motivo de mais de R$ 1 bilhão do fundo da Lava Jato ter ficado parado no órgão em 2019. Quando o ministro esteve no Senado e foi perguntado sobre o recurso da Lava Jato, creio que o titular do MEC improvisou. Porque não se pode dizer que vai usar R$ 1 bilhão para vouchers, porque não é assim que funciona. É preciso saber quanto custa cada voucher para creche por um mês ou um ano, quantos alunos serão beneficiados, quais são as creches. No serviço público não se pode contratar uma creche distantemente aparentada com qualquer funcionário. Não é dizer que irá pegar R$ 1 bilhão e transformar em voucher. Isso não existe. Não é assim que funciona. A guerra cultural bolsonarista é um núcleo do governo. Pode sair o Paulo Guedes [Economia], pode sair o Sergio Moro [Justiça e Segurança Pública], mas não pode sair a guerra cultural. Se a guerra cultura sair, acaba o governo Bolsonaro. O governo Bolsonaro não tem projeto. O único projeto do governo Bolsonaro é levar adiante a narrativa conspiratória do “Orvil”, o que implica a destruição de todo um aparato estatal construído desde a Constituição de 1988. As consequências para a sociedade brasileira serão terríveis. Segundo a lei, quando se apresenta uma solicitação ao INSS a resposta tem de ser dada em até 45 dias. Até o governo de Jair Bolsonaro, era dada a resposta em 45 dias. Agora o tempo médio para a primeira resposta é de oito meses. O Bolsa Família tem hoje a maior fila da história de pessoas que se qualificam plenamente para o benefício, mas estão sem receber. Até fevereiro, o ministro responsável pelo Bolsa Família, Osmar Terra, era o mesmo que comemorou o fim da fila de beneficiários do programa no governo Temer. O então ministro da Cidadania, Osmar Terra, no início do governo vem ao Rio de Janeiro, caminha em Copacabana, dá uma entrevista e diz que é evidente que há uma epidemia de drogas no Brasil porque as ruas estavam vazias enquanto caminhava. Qual é a relação minimamente racional de causa e efeito entre uma coisa e outra? Na verdade é o contrário. Para comprar droga, a pessoa não pode ficar em casa. Além disso, o ministro proibiu a divulgação de uma pesquisa realizada pela Fiocruz. E a guerra cultural é a transposição da doutrina de segurança nacional para o século XXI. A doutrina de segurança nacional implica a eliminação do inimigo interno. “O único projeto do governo Bolsonaro é levar adiante a narrativa conspiratória do ‘Orvil'” Qual é a diferença da guerra cultural bolsonarista que o sr. trabalha na sua pesquisa com a censura nas artes durante a ditadura militar? É hora de ter coragem de pensar. A situação é mais grave do que parece. As pessoas não entenderam que a guerra cultural é o núcleo do governo. Não é um acaso, uma caricatura ou algo feito por pessoas simplesmente atrapalhadas. Não é. É o núcleo do governo. A guerra cultural bolsonarista é uma ameaça maior à arte, à ciência e à educação do que a ditadura militar. Porque a ditadura militar concentrou os esforços na eliminação do inimigo interno, que era a esquerda comunista da luta armada. A ditadura militar, ao contrário deste governo, tinha um projeto nacionalista. A ditadura militar, ao contrário deste governo, não vende nem sucateia a coisa pública. A ditadura militar, como tinha um projeto de uma pátria grande, investiu em infraestrutura, criou estatais. Essa é uma contradição muito importante. a guerra cultural bolsonarista é mais séria porque está destruindo as instituições associadas ao meio ambiente, à cidadania e à cultura. Quando se coloca na presidência da Fundação Zumbi dos Palmares uma pessoa que nega a existência de racismo no Brasil, alguém que considera que a política de cotas é mimimi, uma pessoa que demite funcionários pelo telefone, você está destruindo a Fundação Zumbi dos Palmares. Quando você realiza uma política que retira da Capes em aproximadamente dois anos algo em torno de 10 mil a 11 mil bolsas, você está destruindo a pesquisa no Brasil. Quando se reduz drasticamente a verba do CNPq a tal ponto que a verba é inferior às benesses de coisas absolutamente desnecessárias do Poder Judiciário, você está destruindo o CNPq. Você não está eliminando as pessoas fisicamente. Você as elimina simbolicamente nas redes sociais pelas milícias bolsonaristas. Mas o que está ocorrendo no País é mais sério do que houve na ditadura militar. Porque você está destruindo todas as instituições que levamos décadas para construir. Quando o presidente envia vídeos com convocação para as manifestações do dia 15 de março contra o Congresso e o STF, há um incentivo a uma ideia de fechamento dos Poderes Judiciário e Legislativo? Até que ponto o autoritarismo está instalado no governo e até onde as instituições consegue frear esse ímpeto? A destruição das instituições foi a ponta de lança do projeto autoritário do Jair Messias Bolsonaro. E a ponta de lança deste projeto, aquilo que torna este projeto inaceitável palatável para uma parte da população é a guerra cultural. O que torna palatável para pessoas que, de outra forma, jamais pensariam em abolir Congresso, destruir o Supremo Tribunal Federal, é porque elas estão absolutamente dominadas pela guerra cultural nos termos aqui definidos. Não são termos europeus e norte-americanos. São termos profundamente brasileiros arraigados na interpretação militar revisionista, revanchista, da ditadura militar em resposta ao “Brasil: Nunca Mais”. Há um ressentimento enorme. Há um revanchismo evidente. Há um desejo de destruir todas as instituições que caminharam no sentido do fortalecimento da democracia e da salvaguarda das instituições. Esse é o grande trunfo da Constituição de 1988. O trunfo real da Constituição Cidadão, como é chamada, foi procurar ter salvaguardas para assegurar que nunca mais um projeto autoritário fosse possível no Brasil. A guerra cultural bolsonarista não é uma caricatura. É preciso caracterizá-la. A caracterização da guerra cultural bolsonarista é a ponta de lança de um projeto autoritário cuja finalidade é destruir as instituições para estabelecer um governo de ação direta entre massas e presidente. Na live do dia 27 de fevereiro, o presidente Bolsonaro tenta dizer que os vídeos na verdade são das manifestações de 2015, mas acaba por citar a facada, tentativa de homicídio que só vem a ocorrer 3 anos e 6 meses depois. Há um foco no ataque à imprensa, mas não houve citação do presidente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nem aos ministros Celso de Mello e Dias Toffoli, presidente do STF, que criticaram a ação de Bolsonaro… Os ministros do Supremo Tribunal Federal são profundamente atacados pela milícia digital bolsonarista. O presidente faz esse ataque direto e estimula. Bolsonaro difundiu o famoso vídeo das hienas. Eram colocados como hienas o Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre [presidente do Senado] e os ministros do Supremo Tribunal Federal. Temos de parar de imaginar que se trata de alguém descontrolado que não sabe o que faz. É o oposto. A guerra cultural bolsonarista é um projeto autoritário que tem como ponta de lança a recuperação da narrativa conspiratória do “Orvil” para justificar que é isso ou a esquerda, assim como na ditadura militar foi possível tornar a tortura política de Estado, tornar o assassinato de adversários políticos aceitável e tornar o desaparecimento de corpos tolerável. Bolsonaro está jogando o mesmo jogo. É isto ou o PT. A guerra cultural bolsonarista é um retrocesso a este passado cuja base é a teoria do “Orvil”. Se não reagirmos a tempo, as consequências para a sociedade brasileira serão terríveis. Um professor universitário intelectual como eu tem de dar a cara a tapa e dizer o que está acontecendo. Estou disposto a dialogar com qualquer bolsonarista. Não tenho problema em dialogar com ninguém. Dialogo com as pessoas. Sou professor universitário e já orientei no mestrado e doutorado alunos de Olavo de Carvalho. Mantenho diálogo com ideólogos bolsonaristas. Se qualquer bolsonarista quiser discutir comigo, basta marcar o lugar. Irie com as mil páginas do “Orvil” minuciosamente lidas e apresentarei minha hipótese. Se provarem que estou errado, aceitarei. Isso tem de ser feito agora. Se não fizermos isso agora, daqui a um ano você pode não fazer essa entrevista comigo. A responsabilidade que tenho ao me expor é porque estou pensando no Brasil. A situação é muito grave. A destruição das instituições pode tornar o Brasil um país atrasado por décadas. Leio o que a direita escreve sem problema algum. Leio e anoto para estar por dentro do que se trata. Assisto aos vídeos dos youtubers de direita. No meu livro vou colocar à disposição do público que se interessar links que considero vídeos-chave para análise. Há um vídeo do Instituto Borborema de um colunista da Gazeta do Povo, Francisco Escorsim, um intelectual bolsonarista, que trata sobre a guerra cultural. Escorsim define que alguém sabe que está em guerra quando você se recusa a escutar o outro. Independente do que o outro fala, você se recusa a escutar, porque você está em guerra cultural. Isso é absolutamente espantoso. Inclusive espantoso que isto possa ser chamado de guerra cultural. Mas é isto a guerra cultural bolsonarista. É um desejo radical de eliminar o outro. Se não compreendermos isso agora, se não fortalecermos as instituições, não sei o que irá acontecer. Não estou questionando a legitimidade da presidência de Jair Messias Bolsonaro. O presidente foi eleito em um pleito democrático com mais de 57 milhões de votos. Bolsonaro é o presidente legítimo do Brasil. Não questiono isso. Mas parto do princípio de que 57 milhões de eleitores e eleitoras que deram voto a Jair Messias Bolsonaro não votaram para que o presidente destruísse as instituições associadas à cultura, à cidadania, ao meio ambiente, à educação, à saúde. Isso é bem importante porque todo meu desejo é dialogar. Quero muito dialogar com as pessoas. Compreendo porque votaram. Vocês têm todo direito de imaginar que a melhor opção para o Brasil é esta. É um direito que o eleitor tem. E tem de ser respeitado. É a alternância de poder. Mas não foi eleito democraticamente para impor um projeto autoritário. Isto tem de ser denunciado. Não questiono a legitimidade, questiono o projeto. O livro já tem data de lançamento ou acerto com alguma editora? Ainda não. Mas deve estar pronto em até 40 dias. O material está pontuado, muita coisa escrita. Espero um pouco porque minha intenção não é escrever um panfleto. Minha intenção é escrever um convite ao diálogo nacional. No livro, deixarei claro logo no início que não questiono a legitimidade do governo. É absurdo questionar a legitimidade de um governo eleito com 57 milhões de votos em 14 meses. Eu não farei o mesmo que fizeram com Dilma Rousseff (PT). É absurdo. Estou denunciando a função autoritária do projeto e estou sugerindo que a guerra cultural é a ponta de lança e a essência deste governo. Precisamos discutir e reverter esta guerra cultural. Caso contrário, daqui até 2022 não sobrará muita coisa. “É isto a guerra cultural bolsonarista. É um desejo radical de eliminar o outro. Se não compreendermos isso agora, se não fortalecermos as instituições, não sei o que irá acontecer” O ex-secretário especial da Cultura Roberto Alvim ficou dois meses no cargo. Depois daquele vídeo publicado nas redes sociais da pasta com trechos de discurso do ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, acabou por cair. Mas horas antes chegou a ser elogiado pelo presidente Bolsonaro pelo mesmo direcionamento apresentado no vídeo em uma das lives presidenciais. Alguns analistas disseram que aquela era uma visão do Alvim, que não se tratava de uma ideia de Jair Bolsonaro. Era do próprio Bolsonaro. Tanto que o presidente não desejava demiti-lo. Bolsonaro tentou resistir. Até que a comunidade israelense em peso demonstrou toda sua indignação e não foi possível mantê-lo. Houve, inclusive, uma pressão do presidente do Senado, que é judeu, para tentar convencer Bolsonaro de que era necessário derrubar o Alvim do governo. O projeto representado pelo ex-secretário da Cultura permanece ou caiu junto com o antigo ocupante do cargo, o da criação do Prêmio Nacional das Artes? Esse projeto acabou. Acredito que não tenha como voltar. No sentido dado pelo Alvim, que era tão autoritário que não era possível de nenhuma forma de ocultar o caráter autoritário de um governo que pretende criar uma arte nacional e pura. Estamos em 2020. É um delírio completamente absurdo. Maior do que os outros delírios do governo. Não há a menor possibilidade. Acredito que seja muito difícil levar esse projeto adiante. O episódio Roberto Alvim o enterra de vez. Mas Roberto Alvim era uma das pontas de lança do projeto autoritário. Qual é a importância de compreender o Roberto Alvim? Ele não é um caso isolado. Alvim não deve ser compreendido como uma caricatura, como descontrole. Ele é apenas uma explicitação indesejável do caráter autoritário do projeto. Neste sentido, o que proponho com meu livro é explicitar da maneira mais clara possível a natureza autoritária do projeto. Roberto Alvim conta porque, na tentativa de criar uma arte nacional pura, que é um conceito em si mesmo absurdo, explicitou o que se procura ocultar: a natureza autoritária do projeto da guerra cultural bolsonarista como ponta de lança. Não é um acidente. É uma ponta de lança. É o motor do governo. O motor do governo é guerra cultural, não o contrário. Sempre que o governo anuncia uma medida, ou o próprio vídeo do Alvim, ao tentar voltar atrás joga a culpa em alguém, como a justificativa da “ação satânica” declarada pelo ex-secretário da Cultura. Chega a ser de fato um recuo? Não é um recuo. É um reforço da guerra cultural. A primeira análise feita por Olavo de Carvalho e seus seguidores é de que o que ocorreu com Roberto Alvim foi a demonstração concreta de que existe um aparelhamento de esquerda e de o ex-secretário de Cultura teria sido sabotado. Como assim? É uma atitude absurda do Alvim. E tenta transformar-se a atitude absurda em uma confirmação do próprio absurdo. Isto é, Alvim teria sido boicotado porque as instituições culturais estão aparelhadas pela esquerda e há sabotadores de todos os lados. Em consequência, é preciso não abrir mão da estratégia de Roberto Alvim, mas intensificá-la de modo discreto. É de uma perversão absoluta. A explicação do Alvim, de que haveria uma força demoníaco, é importante de ser entendida não como uma caricatura. Todo meu discurso é de levar a sério essa questão. Qual é o segmento da população brasileira que aceita com enorme facilidade o argumento de que um equívoco de uma pessoa boa foi causado por forças demoníacas? Qual é a porção da sociedade que aceita esse argumento? Qual é a porção imensa da sociedade brasileira que tem uma imagem do cotidiano como uma batalha constante contra espíritos malignos e obsessores? A explicação do Roberto Alvim, que para mim é completamente inadequada e tola, é uma explicação que explicita outra característica da guerra cultural bolsonarista. É uma guerra cultural que fala dois idiomas. A guerra cultural bolsonarista fala um idioma que afeta diretamente a professores universitários, artistas, escritores e intelectuais. Mas fala uma outra linguagem. Essa outra linguagem quem a domina é a Damares Alves. É também o ministro da Educação. A guerra cultural também procura calar fundo com o público evangélico. São aproximadamente 45 milhões de brasileiros que têm a imagem do dia a dia como de uma luta constante e permanente contra o mal. Essa é a visão do mundo. Isso explica por que a imagem da ministra Damares Alves é tão bem avaliada como integrante do governo junto aos apoiadores fiéis do presidente Jair Bolsonaro? Não há dúvida nenhuma. Qual é a importância de Damares Alves no governo? Damares é um dos esteios da guerra cultural nessa batalha bifronte de falar dois idiomas. Para o comando geral, “vamos acabar com a balbúrdia nas universidades” e “vamos acabar com a Lei Rouanet”. Da maneira como apresentam é propriamente absurdo, mas cala fundo em boa parte da população. E tem outro tipo de batalha cultural, que lança mão da ideia de guerra e de batalha do cotidiano, que é a visão de mundo dos indivíduos neopentecostais. Há uma batalha constante contra o maligno. Li o último livro do Edir Macedo, “Como Vencer Suas Guerras Pela Fé: descubra como enfrentar suas batalhas do dia a dia” (Editora Unipro, 2019). Quando vi o livro e comprei, tudo para mim ficou claro. A guerra cultural trabalha em vários níveis. Um nível que a guerra cultural trabalha e que, em geral, os intelectuais de esquerda não se deram conta é para atingir ao público neopentecostal. Para os neopentecostais, sobretudo para a Igreja Universal do Reino de Deus, o mundo, o cotidiano e o dia a dia são batalhas constantes. O dia a dia é uma guerra. Assisto com seriedade todos os programas evangélicos para entender o que está acontecendo. Faça uma coisa. Se você puder, ao chegar em casa, assista a um programa evangélico. Você verá o tempo todo que nas pregações, sermos e cultos sempre há um inimigo a ser vencido. O inimigo, claro, é Satanás. As pessoas vão para o púlpito e relatam as suas batalhas cotidianas com o mal. Esta é uma das faces da guerra cultural. É isso que está no livro do Edir Macedo e é o que trabalharei no meu livro. Tentarei mostrar que a guerra cala fundo na percepção neopentecostal, sobretudo da Igreja Universal do Reino de Deus. Não apenas, mas sobretudo. É por isso que o sr. fala tanto em deixar a caricatura de lado e tentar caracterizar o fenômeno da guerra cultural bolsonarista? Uma ministra como Damares Alves está constantemente em batalha contra a esquerda. É exatamente o que eles querem. Há quem diga que o governo sempre tenta tensionar a relação com a democracia no aguardo de uma resposta violenta da esquerda para justificar um ato mais duro. O sr. acredita que essa seja uma análise possível? Não. Isso é uma incompreensão da guerra cultural bolsonarista. Em geral, alguém na minha posição não considera possível supor guerra cultural em um governo de incultos, que vive em uma hostilidade permanente com a língua portuguesa. As pessoas não levam a sério a guerra cultural bolsonarista. Acreditam que se trata de simples pretexto e de atitudes atrapalhadas de um conjunto de aloprados. Digo que não. É o eixo do governo. Precisamos passar da caricatura para a caracterização. Esqueçamos as caricaturas que envolvam essas figuras, pensemos na caracterização dos seus projetos e dos seus atos. Ao analisar o 15 de março convocado pelo presidente com envios de vídeos pelo WhatsApp e como o eleitorado bolsonarista reagiu a pautas como o fechamento do Congresso e do STF, há uma possibilidade de um golpe militar ou a batalha é a da guerra cultural dentro das instituições? Precisamos caracterizar a guerra cultural, expô-la, discutir com a sociedade para que não se chegue a este extremo. Mas o projeto é esse. Mas este extremo é possível? Este é o projeto. Espero que não seja possível. Uma forma de torná-lo intrinsecamente mais difícil do que seria de outra forma é tentar expor, tentar caracterizar, a guerra cultural, compreendendo que é o eixo do governo e a ponta de lança de um projeto autoritário. Estou interessado em dialogar, escapar da bolha. Dialogar com a direita, com os bolsonaristas, compreender seus pontos de vista. Não partir do princípio de que tenho alguma espécie de superioridade intelectual ao partir do princípio que sou um professor universitário. Quero dialogar. Quero mostrar minha enorme preocupação. Porque nunca houve na história do País uma polarização tão danosa, de consequências tão desastrosas, que podem genuinamente implicar na destruição de instituições constituídas ao longo de três décadas. A situação é grave. E somente se tornará mais grave se não formos capazes de começar a dialogar. Se não houver um esforço sério de fazer uma análise da situação presente, não há diálogo possível. Parece risível que se caracterize o governo Bolsonaro como nazista ou fascista. É risível. Porque é uma situação histórica completamente diferente. Não há nenhum rigor nessa rotulação. É muito mais uma espécie de desabafo de quem acha que a situação nunca lhe vai atingir. Se nós não começarmos agora uma discussão séria e cuidadosas sobre as consequências da guerra cultural do governo como ponta de lança de um projeto autoritário, esse projeto autoritário alcançará a todos nós. A hora é agora para propor análises e, sobretudo, recuperar a capacidade da sociedade brasileira de dialogar. A sociedade brasileira como um todo se encontra em um sintoma extremamente preocupante, que é totalmente descrito na palestra do Francisco Escorsim no Instituto Borborema quando diz que estar em guerra é fechar os ouvidos para o outro. Fechar os ouvidos para o outro não é estar em guerra. É estar morto vivo. Quando as pessoas perderam a capacidade de dialogar com o outro? Teria de pensar com mais cuidado. Mas acredito que o primeiro momento em que isso começa a ocorrer é a partir das manifestações de junho de 2013. Esse é um momento crucial na história, mas ainda não compreendemos de todo. É em 2013 que um sentimento antissistêmico se torna dominante. Bolsonaro é mais sistêmico do que a maioria dos deputados, porque Bolsonaro é o único político que tem três filhos que vivem de recursos públicos como políticos, que tem uma ex-mulher que se elegeu, que tem esta prática no mínimo curiosa de funcionários nos gabinetes, O político mais sistêmico é o Bolsonaro, que ficou 28 anos na Câmara e colocou a família inteira para receber salário público. O grande movimento inteligente do Bolsonaro foi captar o movimento antissistêmico sendo ele o deputado mais sistêmico. Por que isso foi possível? Porque no lugar de caracterizar o fenômeno Bolsonaro, passamos anos fazendo dele uma caricatura. Se tivéssemos tido o cuidado de caracterizar o fenômeno mostrando que toda a família ganha salário público. Toda família do Bolsonaro vive do imposto que nós pagamos. Como se pode ser antissistema dessa forma? Mas como perdemos anos fazendo caricatura do Bolsonaro, não caracterizamos o fenômeno. Chegou a hora de abandonar a caricatura e caracterizar o fenômeno. Bolsonaro era tratado como piada no CQC, na Luciana Gimenez… Enquanto isso todos os filhos eram políticos. E quem pagava o salário dos filhos? Eu e você. Nós erramos o alvo. Trocamos a caracterização pela caricatura. Em consequência perdemos. O correto agora seria, com seriedade, caracterizar. Seria um mal da sociedade do meme, que se acostumou com uma comunicação rasa, fácil e engraçada? Exatamente. No lugar de parar para pensar e refletir. Não estou afirmando que o que digo é verdade. Não tenho a verdade. Proponho hipóteses em decorrência da gravidade da situação que vejo. Até a eleição do Bolsonaro, tudo que fizeram foi caricatura. O que estou dizendo é que chegou o momento de abandonar a caricatura e passar à caracterização. Antes que seja tarde. Clique aqui para ver página original Ler Mais