sábado, 2 de novembro de 2019

DESTRUAMOS-OS ANTES QUE DESTFUAM POR COMPLETO O BRASIL

Nas trilhas do golpe: notas sobre a devastação como tecnologia de governo, por Renata de Oliveira Cardoso e Felipe Brito
GGN2 de novembro de 2019 10:41
Foto: Reuters/Bruno Kelly.

do Blog da Boitempo

por Renata de Oliveira Cardoso e Felipe Brito

“E a razão é rasinha” (Júlia Vargas).
Há um projeto econômico, político e cultural em curso, conectado a um circuito de afetos com abrangência de ódios, ressentimentos e medos marcadamente destrutivos. A destruição em curso não é apenas resultado/efeito do funcionamento do governo Bolsonaro: é seu dispositivo central para implementar uma política de devastação, que provoca consequências apocalípticas. Porém, mais do que programa de governo, trata-se de um projeto de Estado (que incorpora a inviabilização da Constituição Federal de 1988) dentro de uma disputa, ainda mais ampla, de modelo societário.
A devastação vigente promove uma queima de ativos públicos estratégicos, uma dissipação de fundo público nos circuitos rentistas (em detrimento das destinações públicas e sociais), uma demolição das políticas sociais (na esteira de uma inviabilização das bases da Constituição Federal de 1988, especialmente as vinculadas aos direitos sociais). Observa-se um desmanche das políticas ambientais e instituições voltadas à implementação de tais políticas; uma perseguição às universidades e instituições de pesquisa e correlata desresponsabilização público-estatal com o financiamento das mesmas; um desmantelamento dos espaços institucionais abertos à “participação cidadã”1; um policiamento e uma dissolução de políticas culturais voltadas, de alguma maneira, ao exercício da alteridade, no bojo de tentativas de se implementar uma “guerra cultural” contra tudo aquilo e todos aqueles que são estigmatizados como focos de “deterioração” social.
A propósito, vale registrar que em um jantar patético com setores extremistas da direita norte-americana, em solo norte-americano, desfilando toda a subserviência e ressentimento, Bolsonaro apresentou o diagnóstico de que o Brasil “caminhava para o socialismo, para o comunismo”. Junto a isso, enfatizou seu pendor destrutivo:
“Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda […]. O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”.
O inventário da devastação é muito amplo. Não temos aqui o propósito de apresentá-lo detalhadamente. Destacaremos apenas alguns pontos ao longo do artigo, para respaldar o esforço de pesquisa e análise.
Compondo a proposta devastadora, destacam-se, primeiramente, as formas raivosas e/ou debochadas com que declarações são feitas, com deliberado abandono de fundamentações públicas. Sem dúvida, trata-se de uma governança baseada em muitas mentiras, prolongando uma marca da campanha eleitoral, empurrada por uma indústria (capilarizada) de “fake news”. Mas, raramente há o recurso aos velamentos, camuflagens, disfarces. Em geral, é “papo reto”; fala-se “na lata”, de preferência com muita grosseria, elencando-se “fundamentações” aleatórias, tendencialmente estapafúrdias que, a rigor, significam a renúncia de fundamentação pública. Exemplo lapidar, dentre vários, diz respeito ao anúncio da indicação de um dos filhos do Bolsonaro à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos: “fala inglês, espanhol e frita hambúrguer também”. Posteriormente, declarou: “indicado para a embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?” Afirmou, ainda: “ele sempre quis morar lá”.
Essa suposta “naturalidade” comunicativa pode ser avaliada como um esbanjamento autoritário do exercício de poder que serve, ao mesmo tempo, como válvula de ódio destrutivo contra os “inimigos”. Tanto o primeiro quanto o segundo dispositivo compõem a referida tecnologia devastadora de governo. A instauração de válvulas de ódio destrutivo contra os “inimigos” constitui um prolongamento extragovernamental da tecnologia devastadora. Com isso, não apenas se desencadeia um circuito social de afetos deteriorados que sustenta e impulsiona a devastação das políticas sociais, dos ativos públicos estratégicos, da agenda ambiental etc., mas se constitui um dispositivo direto de operar a devastação. Indivíduos insuflados por uma dinâmica de grupo (também deteriorada) servem como correia de transmissão ativa ou passiva, seja replicando automaticamente uma mensagem bolsonarista de whatsapp (sem se atentar para a procedência e a veracidade da mesma), seja compondo, organicamente, esses grupos de extrema-direita que emergiram, sobretudo, da inflexão regressiva dos protestos de rua de 2013.
Assim, Bolsonaro também pratica um presidencialismo estritamente voltado a manter coesionada sua faixa de seguidores, respaldando-se no atendimento de exigências da elite empresarial, e abdica, dessa maneira, da meta política convencional de ampliar a base de apoio na sociedade. Ao contrário, “investe na formação de uma milícia ideológica, um núcleo largamente minoritário na sociedade, mas suficientemente grande para ameaçar as instituições e seus atores”2.
Por isso, explicar tais declarações como meros desatinos ocasionais não é o caminho mais interessante. Decerto, há altas dosagens de desatinos (que não podem ser tratadas como fatores externos à referida tecnologia de governo). Contudo, os desatinos mantêm-se entrelaçados com cálculos políticos, impulsionando a referida tecnologia governamental. E, aí, opera um aspecto de fundo: além de manter coesionados seus seguidores ativos, contando com a condição passiva de correia de transmissão de uma massa de milhões de pessoas, alimenta um estado de “choque social” que favorece os solavancos políticos das medidas ultraneoliberais, como a contrarreforma da Previdência. Em síntese, favorece o recrudescimento do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016.
Esta mesma tecnologia pode ser observada na forma de governar de Donald Trump – o presidente dos EUA, objeto de admiração de Bolsonaro. Consideremos, por exemplo, que os momentos mais “contagiantes” dos comícios atuais de Trump visando à reeleição não são os dedicados ao enaltecimento de propostas ou medidas adotadas durante o mandato, mas sim os dedicados a insultos, cujos alvos preferenciais do momento são quatro mulheres parlamentares: Alexandria Ocasio-Cortez, Ilham Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib3. Ojeriza; ódio destrutivo; ressentimento ao protagonismo feminino na esfera pública, ou seja: misoginia como uma característica relevante dessa forma de condução política.
Essa similitude, porém, recebe demarcações bem distintas, embora se mantenha vinculada a processos (auto)destrutivos radicais (como o do meio-ambiente). Tais demarcações distintas podem ser identificadas, por exemplo, no memorando celebrado entre os governos dos EUA e do Brasil, no dia 1 de agosto de 2019, que, na prática, “entrega de bandeja” obras bilionárias de infraestrutura a empresas norte-americanas, como a Halliburton e suas subsidiárias (participantes de muitos episódios de corrupção corporativa ao redor do mundo, como os vinculados à retomada de obras de infraestrutura do Iraque, depois da destruição ocasionada pelos bombardeios e invasão dos Estados Unidos e aliados). As construtoras norte-americanas, contando com suportes e financiamentos da USAID (United States Agency for Internacional Development) ou, mesmo, do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano), avançam sobre a demolição do setor de construção do país. Amparadas por financiamento estatal, as multinacionais norte-americanas atuam com passos largos, enquanto que, por aqui, criminaliza-se e esvazia-se o financiamento de longo prazo do BNDES.
No período de três anos, entre 2015 e 2018, a queda de receita líquida das maiores construtoras brasileiras foi calculada em 85%, despencando de R$ 71 bilhões para R$ 10,6 bilhões4. Os investimentos em infraestrutura como parcela do Produto Interno Bruto estão na casa de 1,7%. Segundo estudos dos pesquisadores Guilherme Magacho e Igor Rocha (2019), deveriam estar no patamar anual de 4,8% do PIB por, pelo menos, um período de 10 anos, para o país “melhorar a competitividade e a produtividade”5. O setor de moradia, um dos componentes mais importantes do repertório de investimentos em infraestrutura e crucial diante do vasto déficit habitacional brasileiro, está em frangalhos – sobretudo quando se coloca o foco nas famílias mais pobres (onde a incidência desse déficit é muito maior).
Para se dimensionar a situação, vale registrar alguns dados. Em 2013, foram contratadas 912,9 mil unidades habitacionais pelo Programa Minha Casa Minha Vida. Em 2016, o número de contratações caiu para 380,4 mil. A faixa 1 do Programa, voltada para famílias com renda de até 1,8 mil reais, foi a que mais foi atingida: de 537,2 mil unidades contratadas, em 2013, foi para 35 mil unidades, em 20166. Para o ano de 2019 foi destinada a menor dotação orçamentária do Programa desde a sua criação, em 2009, com o sacrifício maior recaindo sobre os mais pobres: R$ 4,4 bilhões7. Para 2020, a previsão orçamentária é ainda menor: R$ 2,7 bilhões8.
Os investimentos públicos previstos no orçamento de 2020 do governo federal receberam mais tesouradas: os R$ 19,3 bilhões representam o menor patamar da série histórica medida pela Secretaria do Tesouro Nacional. Com valores corrigidos segundo o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), essa previsão de investimentos públicos corresponde a menos da metade do investido em 2007 (R$ 42,7 bilhões) e menos de um quinto do investido em 2014 (R$ 103,2 bilhões)9. Vale também registrar a queda de 52,8% dos investimentos públicos dos governos dos estados e das capitais desses estados, tomando como base comparativa os primeiros semestres de 2019 e de 201510. O agregado de investimentos públicos dos estados brasileiros e respectivas capitais caiu de R$ 19,49 bilhões, no primeiro semestre de 2015, para R$ 9,21 bilhões, no primeiro semestre de 201911.
A espoliação do pré-sal e o esquartejamento da Petrobras, correlatos ao desmantelamento do setor de infraestrutura, também constituem patamares de análise indispensáveis a esse respeito. Não é exagerado afirmar que a sociedade capitalista contemporânea é petroleocêntrica: além do petróleo desempenhar o papel de principal fonte de energia e combustível, a utilização de seus derivados é cada vez mais intensa e extensa. Diante disso, a cobiça internacional sobre as reservas petrolíferas do pré-sal é proporcional ao tamanho delas.
Decorrida uma década, a produção brasileira no pré-sal atingiu 1,5 milhões de barris por dia (correspondendo a 55% da produção total no país) e gerou R$ 40 bilhões em participações governamentais12. O exercício dessa cobiça pode ser verificado na venda dos estratégicos campos de Lapa e Iara, através de uma “parceria” com a multinacional Total, envolvendo um valor inferior a 2,75% das reservas dos referidos campos. Junto a reservas de petróleo e gás, outros ativos estratégicos são vendidos a “preço de banana”, como redes de dutos, polos petroquímicos, empresas subsidiárias etc. Além do mais, o projeto de uma Petrobras direcionada à realização e integração das atividades de prospecção, extração, refino, transporte e distribuição foi desmontado, e isso atinge diretamente a cadeia produtiva do petróleo e gás.
Uma das consequências dessa política de desmonte foi a diminuição das atividades de refino, aqui no país, e o aumento de tais atividades fora daqui, especialmente nos EUA. Do montante total de gasolina importada, o percentual comprado dos EUA está na faixa de 70%. No ano de 2015, essa porcentagem foi de 29%. Visualizando essa situação em termos monetários: no primeiro semestre de 2016, a importação de gasolina nos EUA custou U$ 126 milhões. No primeiro semestre deste ano custou U$ 634 milhões13. Sobre o desmonte do ramo do petróleo e gás, atrelado à queima de ativos estratégicos, os EUA também avançam com paços largos.
Conforme já registrado, a devastação como tecnologia de governo percorre as trilhas do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016. Aqui cabe uma observação: consideramos que o golpe também foi militar, visto que setores influentes das Forças Armadas integraram o consórcio golpista e tal integração serviu como impulso decisivo para a retomada da participação política direta, com a inserção de militares em postos estratégicos da estrutura do Estado brasileiro. Nem mesmo na ditadura civil, empresarial e militar de 1964 o quantitativo de militares nos governos foi tão extenso como agora.
Por intermédio do golpe de 2016, alicerces constitucionais são destruídos. É isso o que provoca a conjugação de Emenda Constitucional 95, contrarreforma trabalhista e contrarreforma da Previdência. Na prática, essa conjugação destrói o rol de direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988. Decerto precisamos considerar que esses direitos são vulneráveis a esvaziamentos e pulverizações desde o advento do neoliberalismo no país, logo após a promulgação da Constituição de 88. Mas além disso avaliamos que o golpe implementa um processo de “desconstitucionalização” ou “desconstituinte”.
Nesse registro, é crucial dimensionar o alcance extremado de uma medida como a contida na Emenda Constitucional 95. O “Novo Regime Fiscal”, implementado por tal Emenda, não pode ser tratado como uma ampliação quantitativa de doses da DRU (Desvinculação das Receitas da União), um dispositivo voltado a canalizar fundo público ao rentismo embutido no sistema da dívida pública para, supostamente, obter a tal “confiança” do mercado.
A Emenda Constitucional n° 95 (EC 95), aprovada em 16 de dezembro de 2016, instituiu um novo regime fiscal que impôs um congelamento, por um período de duas décadas, dos recursos públicos destinados à educação, saúde, saneamento básico, habitação, previdência, assistência, segurança alimentar, segurança pública, ciência e tecnologia, cultura, infraestrutura, transporte etc. Assim, fixou um teto de gastos públicos, adotando como marco o ano de 2017 (com o orçamento do ano de 2016, elaborado sob a influência de um severo ajuste fiscal) e o ano de 2018 (com o orçamento do ano de 2017, montado, ainda, em conformidade com a perspectiva do ajuste) especificamente para a educação e saúde. Mas, fixou um teto de gastos públicos da seguinte maneira: a incidência do teto recai, exclusivamente, sobre as chamadas despesas primárias. Isso significa que nenhum tipo de congelamento incidirá sobre as chamadas despesas financeiras, referentes aos gastos com juros do sistema de endividamento público. Logo, o teto de gastos do Novo Regime Fiscal não incluiu as despesas financeiras que, se comparadas com as despesas primárias, comprometem quantidade muito maior de fundo público, impulsionando a lógica rentista/especulativa e a permanência da escandalosa concentração de renda e riqueza do país. Aumento populacional, mudança etária da população e possíveis aumentos de receitas são deliberadamente desprezados pelo Novo Regime Fiscal – ou melhor: possíveis aumentos de receitas poderão ser mais combustíveis para as engrenagens rentistas/especulativas do sistema da dívida pública.
É importante visualizar nesse regime fiscal um ataque frontal às vinculações orçamentárias obrigatórias determinadas pela Constituição. Por meio dessas vinculações constitucionais, os estados devem direcionar, no mínimo, 12% do orçamento para a saúde e os municípios 15%. Na mesma linha, os estados e municípios devem canalizar, no mínimo, a fração de 25% dos respectivos orçamentos para a educação. No tocante ao governo federal, até a aprovação da EC 95, eram 17% para a educação e 15% para a saúde. A complementação desse ataque, visando demolir, por completo, as destinações orçamentárias mínimas para áreas como saúde e educação, está contida em uma Proposta de Emenda Constitucional, chamada pelo Ministro Paulo Guedes de “PEC do Pacto Federativo”, que se mantém à espera do tempo político adequado para o envio ao Congresso.
São, de fato, dispositivos demolidores de políticas públicas sociais, que ecoam um rechaçamento obsessivo da Constituição Federal de 1988, muito difundido entre as elites dominantes do país. Na esteira desse rechaçamento, a Constituição Federal de 1988 (mais especificamente a arquitetura constitucional dos direitos sociais) é tratada como incompatível com a “realidade” orçamentária do Estado brasileiro. Na prática, essa noção de que o orçamento público não comporta a Constituição, autoproclamada constantemente na grande mídia como “realista/racional”, é a exclusão de milhões de brasileiros e brasileiras do Produto Interno Bruto.
Assim, a tecnologia governamental da devastação (que percorre as trilhas do golpe de 2016), mais do que atualiza, oficializa um sentido excludente, de fundo escravocrata, ora posto ora pressuposto, enraizado na formação sociohistórica brasileira, erguida sobre genocídios e orientada para a espoliação.
Analisando a proposta de contrarreforma da Previdência original do governo Bolsonaro, o pesquisador Eduardo Fagnani destacou a produção de uma massa de “idosos não aposentáveis” como política oficial de governo14. Uma massa de idosos não aposentáveis em meio a uma massa de seres humanos extermináveis (concentrados nas periferias urbanas e rurais) gera um quadro social de massacre. A contrarreforma trabalhista (incluindo a generalização das terceirizações) destrói o fio que liga formalização do trabalho, assalariamento e acesso a direitos (como os previdenciários) – fio historicamente já muito tênue, por causa das características estruturantes da formação social brasileira. Com isso, impulsiona e espalha a lógica da “uberização” pelo mercado de trabalho.
Dentro desse agressivo ímpeto desregulamentador, destacamos também os ataques às chamadas NRs – Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho. Os impactos desses ataques incidem na fiscalização e enfrentamento das formas contemporâneas de escravidão que ainda existem no mundo brasileiro do trabalho. Diante de um contexto marcado pelo predomínio financeiro-rentista (com os dispositivos subjacentes de espoliação de fundo público, ativos públicos estratégicos e recursos naturais), em meio aos patamares recordistas de desemprego, subemprego, informalidade e precarização das relações trabalhistas, o desmantelamento da Previdência e de outras políticas sociais gera o que Fagnani chamou de “capitalismo sem consumidor”. O sentido espoliador da colonização (re)surge na enxurrada da financeirização neoliberal pós golpe de 2016, em um quadro de massacre social, e, assim, o passado (nos seus aspectos mais atrozes) insiste em se fazer presente, acorrentando o futuro.
Durante a vigência dos governos federais petistas, foram adotadas medidas de melhoria da vida do pobre, conduzidas, em geral, pela via da ampliação consumo e pela rota de concertação social, e não de confronto15. Mas, pelas características fundantes da modernização conservadora brasileira, de origem colonial e escravocrata, essa rota de concertação não foi capaz de afastar conflitos. Mesmo não pretendendo confrontar diretamente as elites dominantes do país, os governos federais petistas, na medida em que enfrentaram a fome e a miséria, fizeram-no.
O golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 revelou isso, na marra, reeditando a tradição golpista da modernização conservadora brasileira, de pactos elitistas pelo alto. Atenta a essas coordenadas sociohistóricas e ao papel estratégico que as políticas sociais desempenharam na tentativa de retomada e reorientação do desenvolvimento econômico pelos governos federais do Partido dos Trabalhadores, Renata Cardoso vislumbrou a hipótese de que as políticas sociais, incluindo aquelas com baixa dotação orçamentária, como o Bolsa Família (que corresponde a uma fração menor do que 0,5% do PIB), teriam composto o arcabouço das motivações golpistas. Perseguiu essa hipótese, pesquisou a questão e constatou que, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família e o Brasil Carinhoso posicionaram-se no olho do furacão golpista, e, com isso, não desempenharam apenas papel complementar, secundário ou lateral nas maquinações em torno do impeachment fraudulento de 2016 (conforme defendem leituras que tratam tais programas como meramente assistencialistas)16.
Um dos focos do estudo de Cardoso acerca das políticas sociais direcionou-se às ações petistas de enfrentamento (efetivo e inédito) da fome e demais expressões da extrema-pobreza no Brasil. Segundo a autora, esse enfrentamento baseou-se na articulação de ações específicas contidas em programas como o Bolsa Família com outros segmentos das políticas sociais do país, como a Previdência, bem como em uma articulação mais ampla com a totalidade do repertório de medidas que impulsionaram o aquecimento do mercado interno, como o aumento dos investimentos públicos, a geração expressiva de empregos formais, a política de valorização continuada do salário mínimo e a ampliação do acesso ao crédito. O país saiu do mapa da fome e vidas passaram por ressignificações: uma conquista extraordinária. Entretanto, conforme constatação de Cardoso, seguindo na rota da monetarização/financeirização das políticas sociais, saiu sem alterar a concentração de renda e riqueza, sem modificar a drenagem de fundo público para o rentismo do sistema da dívida pública, sem reverter a imensa dependência da exportação de commodities (com altos custos ecológicos e sociais), e pautou-se em um perfil predominante de posto de trabalho gerado: precarizado, rotativo, concentrado na faixa salarial de até 1,5 salário mínimo.
Com as pesquisas de Cardoso, verificamos que, mesmo carregando essas características, as políticas sociais compuseram as motivações do golpe de 2016, que lançou, rapidamente, o país no mapa da fome. Em um ano, 1,7 milhões de pessoas entraram em situação de pobreza extrema, segundo dados do IBGE, que usou critérios de definição de pobreza e extrema-pobreza do Banco Mundial (rendimentos de até U$ 5,5, por dia, e de U$ 1,9, por dia, respectivamente). No final de 2017, o país voltou a níveis de 2005. Com isso, mais de 11 milhões de brasileiros e brasileiras foram empurrados novamente à condição de extrema-pobreza e intensa insegurança alimentar17. No orçamento de 2020, a previsão orçamentária para o Bolsa Família é de R$ 30 bilhões. Isso significa, na prática, que, nem ao menos, reposição inflacionária acontecerá, de maneira a diminuir o escopo do programa em um momento na qual o país volta ao mapa da fome18.
O atual presidente da República, em uma entrevista concedida a jornalistas internacionais, no dia 19 de julho de 2019, afirmou que “passar fome no Brasil é uma grande mentira” e que “falar que se passa fome no Brasil é discurso populista, tentando ganhar simpatia popular, nada além disso”.
Conforme indicado neste artigo, afirmações como esta não se tratam apenas de desatinos. Existe uma disputa de modelo societário subjacente à política de devastação. Além dos cortes orçamentários o governo Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional por meio da Medida Provisória 870/19. Em decorrência de uma ativa oposição parlamentar, a MP foi alterada nesse ponto, e o Conselho, pelo menos, foi formalmente recriado. A atuação desse Conselho foi um dos vetores principais para a formulação de políticas de enfrentamento da fome, que incluiu a produção de alimentos saudáveis, por meio de iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Como podemos perceber, no bojo dessa disputa de modelo societário quaisquer vestígios de política de desenvolvimento nacional e de políticas sociais devem ser destruídos, a partir de pressupostos baseados em um fundamentalismo neoliberal que evoca o comando “absoluto”, “puro” do mercado, na qual a forma político-estatal de intervenção e regulação da sociedade é mero suporte.
Nessa distopia do governo do mercado, o Estado não está completamente ausente, pois, assegurando o ímpeto de desregulamentação econômica, há uma pretensão de regulação vigilante, repressiva e punitiva, de caráter regressivo, do cotidiano subjetivo dos sujeitos sociais. Naquilo que se convencionou chamar de “guerra cultural” coloca-se em foco, por exemplo, a orientação sexual em detrimento da política de educação sexual nas escolas.
Percebemos, com isso, que a distopia envolve uma espécie de simplificação social regressiva, que trata família heteronormativa branca e o mercado como as duas instâncias fundamentais de integração do indivíduo à sociedade, conferindo ao braço opressivo a tarefa de conter os “desviantes” e “degenerados” de quaisquer tipos. Porém, enquanto a família e o mercado não se “reempoderam suficientemente”, cabe ao Estado assumir a regulação de comportamentos, por meio da “guerra cultural”, em concomitância com a marcha da desregulamentação econômica.
Assim, uma fantasiada desregulamentação econômica absoluta se vincularia a uma densa e capilarizada “regulação” regressiva estatal e também paraestatal, convém assinalar, dadas as reiteradas intenções de estabelecer e armar milícias pró-Bolsonaro em meio a medidas armamentistas.
No tocante à busca do “mercado puro”, é importante registrar, ainda, uma observação. De alguma maneira, os EUA costumam ser identificados como parâmetro para esses fundamentalistas. Mas, o papel ativo desempenhado pelo Estado norteamericano na dinâmica econômica é significativo – basta verificar as relações estreitas entre o complexo industrial-militar daquele país e a produção de tecnologia de ponta no Vale do Silício, por intermédio de ações estatais variadas. Nesse caso, mais uma vez, o autoproclamado livre-empreendedorismo no Vale do Silício está perpassado por intervenções do Estado de cima a baixo. Além do mais, o dólar se impõe como a moeda hegemônica mundial não exatamente por critérios econômicos, mercadológicos, empreendedoristas: o fato decorre do poderio bélico dos EUA e da projeção de poder imperial sobre o mundo. Tem a moeda hegemônica quem detém o maior arsenal nuclear mundial, capaz de destruir todo o planeta. Nada mais contrastado e distanciado da ideologia do “Estado mínimo”, por aqui muito difundida.
Por isso, é indispensável assinalar: o alcance e os impactos dessa distopia representam, na prática, um tipo de reivindicação do Estado e o seu atrelamento ao imediatismo devastador dos ganhos rentistas que se expande, inclusive, para os domínios industriais. Levando-se em consideração o atual contexto global de financeirização e crise estrutural do capitalismo, em um país erguido sobre os alicerces de uma colonização escravocrata, que bloqueou, ao longo da história, por meio de golpes e outros artifícios autoritários de elite, tentativas mínimas de reorientação democrática dos modelos desenvolvimentistas no sentido de distribuição de renda e riqueza e construção de uma rede de direitos sociais, as experiências petistas no governo federal revelaram, no mínimo dois aspectos simultâneos: a ressignificação das políticas sociais, priorizando o enfrentamento da fome e outras mazelas decorrentes da extrema-pobreza, constituiu caminho urgente e plausível de transformação. Mesmo com todos os limites dessa transformação, constituiu caminho incendiário e intolerável para poderosos setores sociais que, mais uma vez, impuseram um golpe.
Em mais um episódio histórico impôs-se um golpe de Estado à sociedade brasileira. Em mais um episódio histórico são os setores mais pauperizados da classe trabalhadora que mais padecem sob os seus efeitos. A tecnologia devastadora do governo Bolsonaro segue, com as devidas especificidades, as trilhas do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016.
Notas
1 Colocamos entre aspas “participação cidadã” porque temos ciência de que tais espaços e as participações lá conduzidas apresentaram virtudes e potencialidades, mas também limites, contradições e problemas. Não é objetivo deste artigo elaborar este levantamento e análise.
2 “Seu cálculo é que a coalizão anti-esquerda, formada por militares, banqueiros, Rede Globo, políticos, pastores empresários, a maioria do Judiciário, do Ministério Público e outras corporações, permanecerá unida. Ele não é o candidato preferencial de nenhum de seus integrantes, mas pode obrigá-los a engoli-lo, impedindo que busquem opções melhores, desde já e em 2022”. Marcos Coimbra, “A rotina do anormal”, Carta Capital, 21 ago. 2019, p. 21.
4 Graziella Valenti & Taís Hirata, “Construtoras encolhem 85% em 3 anos“, Valor Econômico, 1 jul. 2019.
5 Guilherme Magacho & Igor Rocha, “Motores desligados“, Adib, 19 ago. 2019.
6 Idem.
7 “Comissão debate cortes no Minha Casa Minha Vida“. Câmara Legislativa – Cidades e Transportes, 25 abr. 2019.
8 Thiago Resende & Fábio Pupo, “Bolsonaro corta orçamento de programas sociais em 2020“, Folha de S.Paulo. 3 set. 2019.
10 “A comparação é feita com 2015 para considerar o mesmo período dentro do ciclo eleitoral para os dois níveis da administração pública. Assim como 2019, o ano de 2015 foi o primeiro de gestão dos governadores. Também foi o terceiro ano do mandato dos prefeitos eleitos em 2012. Os valores de 2015 estão atualizados pelo IPCA”. Marta Watanabe, “Estados e capitais cortam investimentos pela metade no primeiro semestre”. 2 set. 2019.
11 Idem.
14 Eduardo Fagnani, Previdência: o debate desonesto (São Paulo: Contracorrente, 2019).
15 Aqui é importante ressaltar especificidades de um momento do governo Dilma Rousseff, muito bem elencadas e analisadas por André Singer em “Cutucando onças com bases curtas”. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (São Paulo: Companhia das Letras, 2018), pp. 39-76.
16 Os resultados da pesquisa encontram-se na tese de doutorado intitulada No olho do furacão: as políticas sociais nos governos petistas, defendida no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ, em setembro de 2019.
17 Relatório da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE apud Renata Cardoso, No olho do furacão: as políticas sociais nos governos petistas, Tese de doutorado defendida no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ, set. 2019.
18 Thiago Resende & Fábio Pupo, “Bolsonaro corta orçamento de programas sociais em 2020”, 3 set. 2019.
***
Felipe Brito é professor do curso de Serviço Social da UFF de Rio das Ostras. Organizador (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Renata de Oliveira Cardoso é assistente social formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus de Rio das Ostras. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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ÉS ACUSADO!!

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Em outubro de 1980, portanto há 39 anos, Lula foi julgado e condenado pela Lei de Segurança Nacional, por haver liderado as greves de 1979 e 1980 no ABC. A Tânia Garcia me lembrou que, no dia do julgamento, o jornalista Lourenço Diaféria publicou a seguinte coluna na Folha de S. Paulo:

BILHETE PARA UM OPERÁRIO

"Pegaram um dia um operário e disseram-lhe:

Senta-te no banco dos réus.

És acusado de haveres nascido com sonhos na cabeça. És acusado de teres os cabelos encaracolados. És acusado de teres bigodes vastos, negros, provocativos.

És acusado de teres alguns pedaços de dedos a menos que o comum dos mortais, podados pelas engrenagens das máquinas.

És acusado de ficares pelas esquinas conversando em voz baixa com amigos enquanto a luz dos postes te ilumina o suor do rosto. És acusado de terem te visto no bar dando gargalhadas.

És acusado de tua casa ter um pequeno jardim com grama e flores.

És acusado de conheceres a sinfonia das sirenes das fábricas anunciando a aurora do primeiro turno.

És acusado de seres reconhecido na portaria e todos te cumprimentarem, e te baterem levemente nas costas com alegria, e te dizerem: olá, meu chapa.

És acusado de inventares um partido que não é o único, mas não se confunde com siglas e teorias de alfarrábios envelhecidos.

És acusado de fazeres discursos de improviso com vigor e garra que nascem do fundo das vísceras do espírito.

És acusado de não seres magro nem raquítico como teus irmãos deviam ser.

És acusado de jogares baralho e dares dores de cabeça aos homens sérios deste país.

És acusado de usares gravata em vez de macacão, vestindo-te com roupas só permissíveis no enterro do melhor amigo.

És acusado de frequentar reuniões e discutires com sábios e iluminados sem pedir licença nem apresentar diploma.

És acusado de te haverem visto com ministros, criaturas importantes, e não te ocorrer submeter-se a elas.

És acusado de não teres te colocado no lugar cavado para o oprimido.

És acusado de haveres gritado com toda a força de teus pulmões fuliginosos.

És acusado de teres filhos bonitos e uma mulher doce, que devia ser feia e talhada a foice.

És acusado de não seres rapaz comportado, meigo, gentil, acetinado.

És acusado de conheceres a prensa, e não te afugentar o ronco que ela faz na madrugada.

És acusado de quereres a pátria livre, e livre, também, o coração e os sentimentos do homem.

És acusado de rezares e de pôr a boca no trombone quando todos se calam e descreem de Deus e dos homens.

És acusado de teres o desplante de ser líder num país desnaturado onde quem levanta a fronte é triturado.

És acusado de haveres perdido a paciência de esperar pelo futuro que não chega nunca.

És acusado de usares sapatos 42, de couro, quando o normal é sandália havaiana.

És acusado de romperes as cadeias invisíveis que amarram teus braços peludos e tuas mãos penadas.

És acusado de atraíres os operários com tua voz, teu berro, teu silêncio, teu olhar, tua dor, tua ânsia, teu mistério, e saberes contar, sorrindo, tristes histórias recolhidas em barracos e cômodos e cozinhas.

És acusado de estares em pé, quando devias estar de bruços, de borco, exangue e vencido.

És acusado de não seres o que queriam que tu fosses.

Meu caro operário sentado no banco dos réus, por favor, recebe este recado:
Se existir mesmo essa senhora difusa e vaga a que chamam Justiça, confia nela.
Não creio que essa matrona seja cega."

AS FAKE NEWS DO CLÃ BOLSONARO

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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

ESTAMOS A NOS ENGANAR?!

SERÁ QUE ESTAMOS NOS DEIXANDO ENGANAR?!

Bolsonaro pode estar mentindo feio em relação aos seus grandes feitos nesta viagem passeio pela a Ásia e o Oriente Médio.
Os tais “acordos”, “parcerias” e etc. que ele diz ter feito e assinado tão rápido, num piscar de olhos, num passe de mágica com governos e ditadores que detém o poder de determinar quem vive e quem morre e que são tão rígidos, fechados em suas relações comerciais com outros... levaram tão pouco tempo com bolsonaro?!
Diplomática e tradicionalmente as negociações como essas para no fim serem fechados ou não, não acontecem em semanas ou seis meses, principalmente com um governo como o de bolsonaro.
Não é com o seu palavreado de que todos os presidentes antes dele não terem sido sérios, eficientes, responsáveis, confiáveis... e que agora sim, pela primeira vez o Brasil tem um presidente comandante, eficientíssimo, seriíssimo, certíssimo, que acima de todos e de tudo inspira confiança, que as portas difíceis de serem abertas e, principalmente fechadas em negociações entre governos se abram para ele tão facilmente num só estalar de seus dedos.
Muito suspeito isso!!

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Bozo como distração

O país está submetido a uma guerra de ocupação, e o principal comandante do “exército nativo” – Lula – foi sequestrado pelo exército invasor e transformado em prisioneiro de guerra.



Enquanto Bolsonaro distrai com leão e hienas, a caravana passa
luizmuller29 de outubro de 2019 14:47




Por JEFERSON MIOLA em seu Blog
Enquanto os cães ladram, a caravana passa.
[ditado popular]
Enquanto Bolsonaro distrai a população e desloca o debate público do essencial para o acessório com suas escatologias, comportamentos demenciais e torpezas como a do leão e das hienas, a caravana passa.
A caravana, no caso, é a devastação ultraliberal que unifica politicamente, ideologicamente e partidariamente toda a classe dominante em torno do projeto destrutivo que está sendo executado por comando remoto pelos EUA e capitais internacionais.
O Brasil foi inteiramente recolonizado, é preciso reconhecer. O país está submetido a uma guerra de ocupação, e o principal comandante do “exército nativo” – Lula – foi sequestrado pelo exército invasor e transformado em prisioneiro de guerra; trancafiado para que não possa organizar a reação popular contra os ocupantes do território nacional.
O servilismo incondicional de Bolsonaro a Trump não é algo genuíno, porque representa a restauração radicalizada da subserviência que o PSDB mantinha em relação aos EUA nos períodos do FHC e do conspirador Michel Temer.
Dois episódios ilustram essa verdade: [1º] Celso Lafer, o chanceler de FHC, abaixando-se para tirar os calçados para ser aceito nos EUA; e [2º] a viagem apressada aos EUA do tucano Aloysio Nunes, o chanceler do governo golpista, para tranquilizar a chefia do Norte acerca do andamento do golpe para derrubar a presidente Dilma com o impeachment fraudulento.
A oligarquia dominante não tem um projeto de nação soberana e de sociedade nacional, por isso se ajoelha aos pés dos EUA conscientemente, por opção.
No Congresso, esta oligarquia concretiza a maior destruição jamais vista do patrimônio público, dos direitos sociais, trabalhistas e da soberania nacional com a maioria confortável formada pelos seus diferentes partidos – PTB, PP, PSD, Podemos, Patriota, PSC, PRB, Solidariedade, PSL, DEM, MDB, PSDB e outras siglas deste gênero lesa-pátria.
Pouco importa saber se Bolsonaro faz o que faz e diz o que diz porque [1] segue um plano estratégico para desviar a atenção, ou porque [2] é uma figura torpe que tem uma visão de mundo racista, autoritária e deformada, ou porque [3] é um combo disso tudo e um pouco mais.
A realidade concreta é que o comportamento demencial do Bolsonaro desvia a atenção acerca da pilhagem selvagem e do assalto brutal que o governo, os militares, o Congresso, a Lava Jato, setores do judiciário e os capitais promovem às finanças, às riquezas, ao patrimônio, às empresas, ao mundo do trabalho, aos direitos do povo e ao território nacional.
Quem duvidar disso que então justifique a razão para a privatização da cadeia de gás e petróleo, a entrega do pré-sal, da PETROBRÁS e do setor elétrico; a destruição da engenharia nacional, a entrega da Embraer para salvar a Boeing, o redirecionamento do projeto de submarino nuclear; a instalação de base militar dos EUA em Alcântara, a queima criminosa da Amazônia, a privatização da extração de urânio, a demolição das leis trabalhistas, a destruição do sistema previdenciário etc, etc e etc.
Bolsonaro é uma Aberração política, mas ele é, sobretudo, uma aberração humana que nasceu do ventre da burguesia; é filho das escolhas da classe dominante, que sabia desde sempre que Bolsonaro idolatra torturadores, faz apologia do estupro, vem do porão da velha ditadura e é vinculado a milícias. Bolsonaro não caiu das nuvens [aqui].
Bolsonaro coleciona inúmeros crimes de responsabilidade para ser afastado por impeachment. Em agosto passado o doutor em Direito e professor da USP Conrado Hübner Mendes elencou 17 crimes de responsabilidade [aqui], todos muito bem fundamentados, que autorizariam o afastamento do Aberração pelo Congresso. Hoje, 2 meses depois, os motivos para sua deposição legal devem ter duplicado.
Aliás, Bolsonaro sequer deveria ter sido diplomado e empossado no cargo. Na campanha eleitoral, cometeu crimes graves, todos fartamente documentados, que levariam à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão e provocariam nova eleição presidencial.
Mas o TSE, pelas mãos do ministro-relator do processo, Jorge Mussi – por ironia, o cara tem o título de “Corregedor” [sic] do TSE – corrompe as leis e manipula o processo para não levar o caso adiante para, assim, deixar o país dominado pelos saqueadores.
Bolsonaro segue convertendo o Brasil num pária internacional e segue ameaçando o STF, a imprensa, a oposição e as instituições. No máximo, ministros do STF manifestam espanto e escrevem notas protocolares.
Bolsonaro sabe que pode fazer tudo o que faz e dizer tudo o que diz impunemente, que nada lhe acontece.
A razão disso é simples: a distração do Bolsonaro é útil para a pilhagem do país e para a continuidade do assalto total que as elites financeiras nacionais e internacionais perpetram contra as riquezas nacionais, contra a nação e contra o povo brasileiro.
A manutenção do Lula sequestrado no cativeiro de Curitiba – o Guantánamo dos EUA no Brasil – é condição essencial para que esta devastação total, rápida e ilimitada.
A luta pela libertação do Lula é a maior urgência democrática, nacional e popular do Brasil e da América Latina.

Aula 111 - Estado de Natureza - O Livro dos Espíritos - Allan Kardec - ...

Bom dia 247 (29.10.19): Bolsonaro, o leão fascista

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A “JUSTIÇA” COMO MEIO DE PERSEGUIÇÃO

O “DIREITO” COMO MEIO PARA FINS DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA.


ESTAR CLARO, DESDE O INÍCIO, QUE O “JUDICIÁRIO” BRASILEIRO USA O “DIREITO” COMO MEIO PARA FINS DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA, TIROU O FOCO DE FATOS PARA PERSONALIZAR SUAS SENTENÇAS NA PESSOA DO SR. LULA DA SILVA.
Prisão em 2ª instância é rasgar a Constituição Brasileira para justificar e garantir a manutenção da prisão do Lula. Não fosse ele o preso. Fosse o Temer, FHC, Aécio Neves, Zé Serra..., esta palhaçada não existiria.
O problema, o medo não só da direita, mas do centro e de parte da esquerda é a capacidade política e eleitoral do Lula acima de todos e de tudo em uma disputa eleitoral. Com ele preso não correm este risco da perda de uma eleição.
Os que hoje impõem a prisão em 2ª instância ignorando o que determina a Constituição, amanhã, quando estiverem presos, estarão exigindo para si, por meio de advogados, o que determina a Constituição Federal brasileira.



Baltasar Garzón: “O Direito está sendo usado para fins de perseguição política no Brasil e no mundo”

Jurista espanhol, que ficou famoso por deter o ditador Augusto Pinochet em Londres, vê um risco no Judiciário brasileiro por tirar o foco dos fatos para personalizar sentenças, em referência ao ex-presidente Lula

Baltasar Garzón, jurista espanhol
Baltasar Garzón, jurista espanholF.CAVALCANTI
Baltasar Garzón (Torres, Espanha, 1955) ascendeu muito cedo, ganhou holofotes por sua luta contra a corrupção, o narcotráfico e o terrorismo, e por colocar a Justiça num patamar ambicioso de alcançar poderosos e levá-los para a cadeia. Essa descrição pode lembrar um personagem famoso para o Brasil, que atende pelo nome de Sergio Moro. Mas a aparente semelhança entre o atual ministro da Justiça do Brasil e o magistrado espanhol, hoje suspenso de suas atividades, é superficial. Enquanto Moro fez fama internacional com a Operação Lava Jato que destrinchou grandes empresas, Garzón tem nos direitos humanos sua profissão de fé. Ficou mundialmente conhecido quando em 1998 decretou a prisão do ditador Augusto Pinochet enquanto o chileno fazia tratamento de saúde em Londres.
Embora tenha se notabilizado por suas batalhas jurídicas que inspiraram magistrados, como o próprio Moro, Garzón amargou, em 2010, a perda do direito de exercer a magistratura por 11 anos. A Corte Suprema espanhola condenou o notável juiz por prevaricação durante a investigação de uma trama que envolvia dezenas de políticos do conservador Partido Popular (PP). Garzón utilizou-se de escutas para gravar conversas de seus investigados com advogados de defesa na prisão. Reinventou-se como defensor de figuras consideradas malditas nos Estados Unidos, caso de Julian Assange e Edward Snowden, que divulgaram informações secretas da Agência Nacional de Segurança no caso que ficou conhecido como Wikileaks. É também uma das vozes que defendem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no mundo.

MAIS INFORMAÇÕES

Pergunta. O senhor integra uma rede internacional de juristas que busca alertar para o retrocessos que podem ser causados por governos como os de Trump, Bolsonaro, ou o da Polônia. Tem sido eficiente?
Resposta. O mundo não é como quando o fascismo começou a tomar forma, nos anos 1920, 1930 [do século XX], e depois o nazismo. Essa experiência nefasta para a humanidade, que foram Hitler e o nazismo, e tudo o que aconteceu depois foi nos mostrando as presas da fera. Agora começa uma época que se estende pelos últimos cinco, seis, sete anos, em que se ouve de novo o discurso negacionista. Mas transforma-se o que então era fascismo em xenofobia, em ódio ao diferente, ao imigrante, a procurar lá fora a causa dos problemas que temos como sociedade e como sistema. Surge uma série de indivíduos ou de colocações neofascistas, ultraliberais, que procuram essa posição que se apresenta como ameaçadora à democracia. E isso produz uma resposta, que vem da própria sociedade, das próprias vítimas, dos próprios coletivos de direitos humanos, em advertência, como um alarme.
P. Qual papel o Judiciário ocupa nos países hoje?
"Denunciemos a utilização do Direito com finalidade política de luta contra a corrupção"
R. Os coletivos de juristas observam que alguns países, como a Polônia e Hungria, buscam submeter o Poder Judiciário. Outros, como o Brasil e Argentina, também utilizam ou podem utilizar o Poder Judiciário para determinadas propostas. Por outro lado, na Turquia, há ataques diretos aos meios de comunicação e a jornalistas independentes. Ou então no caso dos EUA, a perseguição a Snowden e Assange. [Esses fatores] começam a interagir. E isso é o que agora mesmo estamos vendo no caso Lula. Vemos, do ponto de vista internacional, certos alarmes que nos dizem que o Direito está sendo usado politicamente para fins ou com fins políticos de perseguição. Há ações universais, coordenadas, perante ameaças que estão vindo dessa extrema direita, desse neopopulismo, dessa ação populista neofascista, que tenta reverter a história e reconquistas obtidas por parte da sociedade, essencialmente no âmbito de direitos humanos. Esse é o fato novo. Estruturas jurídicas que já estavam em funcionamento, em casos nacionais e internacionais. A universalização dessas iniciativas já ocorreu, em algum momento histórico, como na época da detenção de Pinochet através da jurisdição universal, que foi uma explosão de ações e utilização de mecanismos que estavam aí para fazer frente à impunidade. Agora se colocam em movimento para prevenir, evitar ou impedir que se consolidem essas novas ações. Protejamos quem denuncia. Mas também é preciso denunciar quem pode abusar. Por exemplo, as delações premiadas. É preciso saber quais são os limites. Denunciemos a utilização do Direito com finalidade política de luta contra a corrupção, que segmenta a ação e esquece outra parte. E, ao final, se torna uma arma política para promover um candidato em detrimento de outro.
P. O senhor está descrevendo o Brasil de 2014 para cá?
R. É que é assim. Não posso senão estar de acordo com a luta contra a corrupção, absolutamente. Mas é que, quando entram em marcha todos os mecanismos de luta, é preciso ter um cuidado absoluto, porque haverá muitos interesses cruzados, que podem apostar em determinados interesses ou finalidades que não são de forma alguma os que a Justiça representa. E podem ser instrumentalizados. De alguma forma é o que aconteceu aqui [no Brasil]. Aqui havia, muito claramente, interesse por parte de grandes estruturas econômicas, corporativas, de que o Governo do PT, fosse de Lula ou Dilma, não continuasse. O impeachment de Dilma, do meu ponto de vista, foi um golpe de Estado brando, como foi o do [presidente paraguaio Fernando] Lugo e como foi em outros casos. Portanto, isso acontece e, quando acontece e são usados os mecanismos da Justiça, é preciso sermos extremamente exigentes com as garantias. Porque, se não formos, é muito fácil que vire uma perseguição ao homem, e não uma investigação do fato. Acredito que seja isso que aconteceu por aqui.
P. Como vê o ex-juiz Sergio Moro?
R. Sou da opinião que, se você está atuando como juiz, não pode ficar opinando sobre o que faz e compartilhando o que faz. Eu não entendo um comentário ou um tuíte, no Facebook ou em outra rede social, de um juiz que está trabalhando. Não entendo isso nem justifico. Os princípios da imparcialidade e independência são centrais.
"Moro está no poder agora com Bolsonaro e a verdade é que eu mal consigo entender isso"
P. Mas ele só começou a usar o Twitter depois de virar ministro da Justiça.
R. Mas o que vimos depois, as revelações do The Intercept, são o cúmulo das mensagens ou comunicações que havia com o Ministério Público, supostamente. [Deveria prevalecer] sempre o princípio de presunção de inocência num sistema como o brasileiro, em que há uma separação absoluta entre o Ministério Público e o juiz. Porque o juiz dita a sentença. Não é como na Espanha. Lá, o juiz de instrução investiga, o promotor investiga. Ao final há um tribunal que decide sobre as garantias e medidas cautelares, e outro tribunal, que não tem conexão nem com o intermediário nem com o juiz,  julga. Garante-se absoluta imparcialidade. Aqui, não. Se pessoas que tiverem que estar em um lugar e em outro estabelecem laços de conexão, surge a dúvida. Não duvido que se cometam crimes ou não. Depois quem tiver que decidir decidirá. Mas a partir do momento em que há essa interconexão, a credibilidade sobre a imparcialidade se perde.
P. O senhor leu a sentença que levou o ex-presidente Lula à prisão? Vê falhas?
R. Eu a acho muito inconsistente, são elementos circunstanciais, e não há uma base juridicamente objetiva e defensável para uma condenação. É uma opinião jurídica. Mas acho que não havia elementos para considerar que Lula fosse partidário de ser sujeito ativo de uma corrupção passiva.
P. Mas há muitíssimos elementos, provas que mostram transações em dinheiro etc...
R. Nenhuma diretamente com Lula.
P. Não dele em particular, mas há demonstrações de que o partido deixou que se construísse ou que fossem aprovados esquemas de corrupção…
R. No que se refere ao conteúdo da sentença e do julgamento, não tenho que opinar além da análise externa de uma resolução para a qual, já naquele momento, estabeleci a posição sobre a investigação, porque via que havia uma direção determinada com relação a um espectro político, concretamente do PT e do presidente Lula, que tinha uma influência política e a teve, sem lugar a dúvida, acelerando prazos, tomando decisões mais que discutíveis, semeando todo um procedimento com dúvidas e irregularidades. Até que se chegou à sentença para evitar que houvesse uma apresentação eleitoral de uma candidatura, e que depois se revelou que de alguma forma havia, não sei se uma conexão ou pelo menos um interesse, ou se este surgiu depois, quando o juiz Moro foi nomeado ministro da Justiça. Mas todos esses elementos influem, embora as provas tivessem sido mais ou menos consistentes, em contaminar todo o cenário. Esse é o problema. Já não é só quantos indícios havia ou quantos elementos podiam ter sido levados em conta, mas sim que quem os usou estava de alguma forma violando os limites, ao manter essa comunicação permanente com o Ministério Público. Se isto é proibido pelo sistema processual brasileiro, então tem que haver consequências. Mesmo que os elementos fossem definitivos.
P. O ministro Gilmar Mendes já disse que havia coisas a serem revistas.
R. Sim, coisas a serem revistas, porque afinal o que temos é que há uma pessoa condenada a oito anos da prisão e que esse procedimento agora está se comprovando que não foi totalmente limpo. Esse é o problema. O problema é: até onde chega a contaminação? Até onde chega a dúvida? Bom, são os tribunais que terão que dizer.
P. Os procuradores da Lava Jato e o ex-juiz argumentam que tudo foi ratificado pelas instâncias superiores.
R. Ratificariam agora depois de conhecer as revelações? Para mim, é incompreensível.
P. Também tivemos, durante um julgamento no Supremo [do pedido do habeas corpus de Lula em abril de 2018], um representante do Exército [General Villas Boas] insinuando um posicionamento da instituição contra a soltura de Lula
R. Isso é uma intimidação muito clara contra a independência do Judiciário. Isso é uma interferência grave. Isso, não sei, no meu país, na Espanha, teria se armado um reboliço se o Exército sugerisse que pode haver ruído de sabres. Os caminhos das instituições têm que ser perfeitamente independentes. E se depois houver um abuso ele deve ser punido. O que não se pode fazer é incidir em um âmbito político utilizando armas judiciais. Não é possível, ao menos para mim, utilizar o Direito para fazer uma interferência política, por mais arriscada que seja, não é evidentemente um mecanismo democrático. Porque, se da investigação judicial ficar demonstrado que houve uma relevância ilícita delitiva, ficará demonstrado em dado momento, e nesse momento é que se deverá produzir o efeito. Mas não utilizar essa investigação para que interfira em um processo político.
P. O senhor acredita que as democracias latino-americanas são mas suscetíveis à pressão social contra instituições? Porque essa acabou sendo uma justificativa do general no ano passado [“o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”], repetido na semana passada, mencionando o risco de “convulsão social”.
R. Conheço os argumentos dos militares, sobretudo quando tomam para si a defesa da democracia através do Twitter. Deixam muito a desejar. Porque o Exército sempre deve estar submetido ao poder político. Constitucionalmente tem sua função e não tem que advertir sobre nada, porque isso soa mal. O que ocorre é que as instituições democráticas precisam ser empoderadas, fortalecidas, e são fortalecidas com a independência, não com o isolamento entre poderes. A separação e a independência de poderes são uma coisa, e a submissão de um a outro é algo bem diferente. Foi o que aconteceu em alguns países da região latino-americana, e que também se viu em outras partes do globo, não? Se há uma mudança política, se a Justiça é utilizada como uma arma imediata contra o sistema ou o regime anterior, seja ele qual for...  Não é possível que os regimes populares que houve, de esquerda, tenham cometido tantíssimos crimes como se lhes imputa. Não tiveram tempo de cometer tantos crimes. Porque um pouco de Governo tiveram que fazer, não? Parece que não existiam, só para delinquir.
P. Essa leitura —de que existiam para delinquir— foi questionada.
R. Então me parece um excesso e, o excesso suscita a dúvida. Porque não é que se selecione ou se priorize. Não. É  necessário investigar o fato. E se o fato deriva de fortes indícios de que uma autoridade política tem uma responsabilidade criminal, que se exija. A questão não é que seja Lula ou Bolsonaro ou qualquer presidente ou chefe de Governo quem esteja supostamente envolvido em uma trama. É que é preciso demonstrar, e acima de tudo no caso dessa autoridade máxima, com uma resolução muito maior, distinguir a responsabilidade política do que é responsabilidade jurídico-penal, porque aqui somos iguais. E se houve uma má prática, se houve determinada condescendência com práticas irregulares, muito bem, que sofra sanções politicamente. Mas, daí a passar para atos criminosos, certamente exige uma investigação digna de crédito, clara, contundente e, sem dúvida, limpa. E é isso que acredito que não aconteceu aqui, como estamos vendo. Para mim, estamos no turbilhão em que estamos porque precisamente essas margens não foram respeitadas. Não posso acreditar que todos os líderes da esquerda sejam corruptos e os da direita ninguém os persiga.
P. O senhor acredita que estamos vivendo uma era de democracias cínicas, em que a mentira?..
R. Sim, bem, já falamos de fake news, falamos já sem rodeios: dizemos que não é que isto seja mentira, mas me serve. É que, se alguém lê a história, percebe como é isso. Volto a dizer: há um poder, não vou dizer absoluto, mas absolutamente prepotente e preponderante, que é o poder político, neste caso, de um presidente republicano. Na outra opção da balança estão elementos absolutamente vulneráveis da sociedade. O que podemos dizer quando há um discurso como o do governador do Rio de Janeiro, que diz que a ação violenta das forças de segurança é a única via para acabar com o crime? E vemos como até se tenta justificar a morte da menina Ágatha, dizendo: "Não, é que se perseguia um grupo criminoso".
P. É uma resposta-padrão da polícia no Brasil.
R. Já ouvi muito sobre isso. Ouvi nos anos 70, na ditadura argentina, ouvi na ditadura franquista, que sempre se justificava, e o que se faz é ocultar a ineficácia absoluta. Por quê? Porque não há mais medidas políticas, porque recorrem a mecanismos de repressão, e são as mesmas receitas, só que com outros nomes. E é isso que contribui para uma subtração de direitos, uma espécie de volta atrás, de perda desses direitos que já pensávamos que estavam consolidados e dormimos. Entramos naquela afirmação do poeta da Idade Média que dizia: "Nunca se conquista um reino para sempre". Ou seja, os direitos humanos, a democracia, não estão conquistados para sempre. Quando caímos na armadilha de dizer que já temos tudo, aí começa outra vez a volta para trás e o perigo. E foi isso que aconteceu conosco agora. Renunciamos à luta contra as fake news, porque é tal o poder das redes sociais e da comunicação que é impossível se contrapor a ele. Eu coordeno a defesa de Julian Assange. Alguém se pergunta: por que não se investiga nada que o WikiLeaks denunciou nos Estados Unidos? Por que, quando você assiste a um vídeo onde se vê, se observa nitidamente o metralhamento de civis no Iraque, esse assunto nunca foi investigado? E, no entanto, investem-se esforços, recursos em perseguir a pessoa que supostamente editava esse veículo.
P. A extrema direita cresce enquanto estamos anestesiados?
R. Eles usam os mecanismos democráticos, usam a linguagem democrática para atacar a própria democracia. E isso até mesmo pode ser democrático. Mas é preciso desvendar isso, é preciso detectar, é preciso denunciar e punir quando for possível, porque uma coisa é que, no quadro democrático, você pode até ter abordagens contra a própria democracia. Outra coisa é deixar que atuem para romper a democracia. Não é controlar, não é evitar ou proibir a liberdade de expressão como Erdogan pode fazer na Turquia. Há liberdade de expressão, vocês podem atacar o próprio sistema, agora, se o que é realmente detectado já é uma transgressão que ocorre ou que rompe esse sistema, tem que ser perseguido, obviamente. Insisto, a democracia não é conquistada para sempre. Não vai resistir se não a defendermos. Devemos até mesmo defendê-la daqueles que, a partir do próprio sistema, tentam destruí-la.
P. O México acaba de passar pela renúncia de um ministro do Supremo e o Peru enfrenta um jogo de forças entre o Congresso e o presidente para modificar a estrutura da sua Corte Suprema. Como o senhor avalia esses casos?
R. São casos diferentes do que está acontecendo em outros países da região. Na renúncia do ministro Eduardo Medina Mora no México, houve uma reação imediata do mesmo da qual poderia se dizer de uma decisão que o honra, porque diante do menor questionamento sobre sua honra, e ainda que discordando da informação publicada, o juiz apresentou sua renúncia, o que facilita a consolidação da crediblidade do máximo organismo judicial mexicano, sem ter afetada a  presunção de inocência. No caso do Peru, a questão é mais complexa. O presidente Vizcarra dissolveu o Parlamento e convocou eleições para que o povo fale e dessa forma egite a instrumentalização que se tenta fazer por alguns grupos políticos para fazer justiça. A atuação da Justiça peruana, em seu mais amplo sentido, com as dificuldades que enfrenta, está respondendo inclusive descobrindo os comportamentos corruptos que podem existir dentro da mesma. Um exemplo foi a detenção na Espanha e a extradição de uma alta autoridade judicial acusada de corrupção. As respostas judiciais precisam ser contundentes, mas proporcioinais e especialmente transparentes para que os cidadão não percam a confiança em quem, no final, são o último reduto da defesa dos direitos.
P. O senhor viveu uma situação muito particular com a suspensão por 11 anos da magistratura na Espanha.
R. Já se passaram nove anos e meio. Parece que foi ontem... Mas hoje me sinto alegre e recompensado com uma espécie de justiça poética. Finalmente, os restos mortais do ditador Francisco Franco precisam ser exumados do Vale dos Caídos, onde houve uma das maiores aberrações que podem ocorrer: os restos mortais do agressor repousam junto com os das vítimas, que foram depositadas ali sem nenhum dano, conhecimento ou autorização dos membros da família. Muito tempo depois do que deveria, deu-se lugar ao triunfo das vítimas. [Garzón defendia a retirada dos restos do ditador daquela região, que acontece nesta quinta-feira]. Portanto, hoje estou feliz por isso.
P. Mas o senhor se frustra?
R. Entrei na carreira judicial porque queria ser juiz e porque acredito que é um serviço público que deve ser prestado à sociedade. E fazer isso como marca a lei, com independência, com a legalidade, pode te levar às vezes a graves consequências. No meu caso, alguém pode me dizer: "Bem, mas o senhor foi condenado por ter aplicado mal uma lei". Bem, eu discordo, mas admito o sistema e, portanto, estou lutando com as regras que ele me permite. Eu sou da opinião de que a interpretação de uma lei, que é algo diferente do que é essa contaminação subjacente, mas à luz do público, acho que não tem nada a ver, ou seja, ninguém pode sofrer sanções por interpretar uma lei, quando também o faz sob o amparo de parâmetros internacionais. Mas são os custos da investigação do crime organizado, corrupção etc. Alguém pode dizer: "Mas, ei, isso também acontece com o juiz Moro?"
P. Isso.
R. Eu poderia dizer: Sim, é muito provável. Mas estamos em uma área em que essa pesquisa precisa ser aberta. E se houve uma transgressão desses espaços e houve uma contaminação de efeitos concatenados que podem levar ao cancelamento de processos e afins, eles devem ser investigados e estabelecer sanções, porque ninguém está acima da lei. E no meu caso, pode-se dizer: bem, você foi condenado. Sim, e o assumo ainda que não compartilhe [com a decisão], porque acredito que a interpretação que fiz não foi apenas justa, mas foi reproduzida, seguida por outros juízes que nunca foram perturbados. No meu caso foi assim. Era uma conjuntura histórica muito específica e, bem, aqui estamos. Continuo lutando pelos meios limpos, continuo dizendo que a corrupção deve ser combatida a partir da legalidade. Mas não ir além, a ponto de prejudicar a própria luta contra a corrupção.
P. Incomoda ser comparado ao Moro?
R. Não. Conheci Sergio Moro em um evento em Lisboa há alguns anos e ele me disse que eu era um exemplo de juiz. Eu agradeci e lhe disse continuasse seu trabalho, mas também lhe disse para sempre lutar com as armas que a lei nos dá.E fazê-lo como o fez Falcone, assim como Borsolino, que lhe custou a vida ou o emprego. A outros lhes custa a privacidade, paz etc. Bem, no caso de Moro, ele está no poder agora e está no poder com quem o nomeou e, a verdade é que eu mal consigo entender isso.
P. Pelo fato de ter sido nomeado por alguém que está do lado oposto de onde o senhor está hoje?
R. Não se trata de ser do lado oposto. Estou em defesa de valores e direitos, da garantia que a humanidade conquistou, que custou muito. Não ouso questioná-los sob nenhuma circunstância. Nem de uma maneira jocosa ou como uma piada..
P. Bolsonaro nomeou Moro, e Bolsonaro é contra o que senhor acredita.
R. Não é contra o que acredito, mais bem contra os princípios básicos de um sistema democrático.

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