sábado, 2 de novembro de 2019

DESTRUAMOS-OS ANTES QUE DESTFUAM POR COMPLETO O BRASIL

Nas trilhas do golpe: notas sobre a devastação como tecnologia de governo, por Renata de Oliveira Cardoso e Felipe Brito
GGN2 de novembro de 2019 10:41
Foto: Reuters/Bruno Kelly.

do Blog da Boitempo

por Renata de Oliveira Cardoso e Felipe Brito

“E a razão é rasinha” (Júlia Vargas).
Há um projeto econômico, político e cultural em curso, conectado a um circuito de afetos com abrangência de ódios, ressentimentos e medos marcadamente destrutivos. A destruição em curso não é apenas resultado/efeito do funcionamento do governo Bolsonaro: é seu dispositivo central para implementar uma política de devastação, que provoca consequências apocalípticas. Porém, mais do que programa de governo, trata-se de um projeto de Estado (que incorpora a inviabilização da Constituição Federal de 1988) dentro de uma disputa, ainda mais ampla, de modelo societário.
A devastação vigente promove uma queima de ativos públicos estratégicos, uma dissipação de fundo público nos circuitos rentistas (em detrimento das destinações públicas e sociais), uma demolição das políticas sociais (na esteira de uma inviabilização das bases da Constituição Federal de 1988, especialmente as vinculadas aos direitos sociais). Observa-se um desmanche das políticas ambientais e instituições voltadas à implementação de tais políticas; uma perseguição às universidades e instituições de pesquisa e correlata desresponsabilização público-estatal com o financiamento das mesmas; um desmantelamento dos espaços institucionais abertos à “participação cidadã”1; um policiamento e uma dissolução de políticas culturais voltadas, de alguma maneira, ao exercício da alteridade, no bojo de tentativas de se implementar uma “guerra cultural” contra tudo aquilo e todos aqueles que são estigmatizados como focos de “deterioração” social.
A propósito, vale registrar que em um jantar patético com setores extremistas da direita norte-americana, em solo norte-americano, desfilando toda a subserviência e ressentimento, Bolsonaro apresentou o diagnóstico de que o Brasil “caminhava para o socialismo, para o comunismo”. Junto a isso, enfatizou seu pendor destrutivo:
“Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda […]. O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”.
O inventário da devastação é muito amplo. Não temos aqui o propósito de apresentá-lo detalhadamente. Destacaremos apenas alguns pontos ao longo do artigo, para respaldar o esforço de pesquisa e análise.
Compondo a proposta devastadora, destacam-se, primeiramente, as formas raivosas e/ou debochadas com que declarações são feitas, com deliberado abandono de fundamentações públicas. Sem dúvida, trata-se de uma governança baseada em muitas mentiras, prolongando uma marca da campanha eleitoral, empurrada por uma indústria (capilarizada) de “fake news”. Mas, raramente há o recurso aos velamentos, camuflagens, disfarces. Em geral, é “papo reto”; fala-se “na lata”, de preferência com muita grosseria, elencando-se “fundamentações” aleatórias, tendencialmente estapafúrdias que, a rigor, significam a renúncia de fundamentação pública. Exemplo lapidar, dentre vários, diz respeito ao anúncio da indicação de um dos filhos do Bolsonaro à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos: “fala inglês, espanhol e frita hambúrguer também”. Posteriormente, declarou: “indicado para a embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?” Afirmou, ainda: “ele sempre quis morar lá”.
Essa suposta “naturalidade” comunicativa pode ser avaliada como um esbanjamento autoritário do exercício de poder que serve, ao mesmo tempo, como válvula de ódio destrutivo contra os “inimigos”. Tanto o primeiro quanto o segundo dispositivo compõem a referida tecnologia devastadora de governo. A instauração de válvulas de ódio destrutivo contra os “inimigos” constitui um prolongamento extragovernamental da tecnologia devastadora. Com isso, não apenas se desencadeia um circuito social de afetos deteriorados que sustenta e impulsiona a devastação das políticas sociais, dos ativos públicos estratégicos, da agenda ambiental etc., mas se constitui um dispositivo direto de operar a devastação. Indivíduos insuflados por uma dinâmica de grupo (também deteriorada) servem como correia de transmissão ativa ou passiva, seja replicando automaticamente uma mensagem bolsonarista de whatsapp (sem se atentar para a procedência e a veracidade da mesma), seja compondo, organicamente, esses grupos de extrema-direita que emergiram, sobretudo, da inflexão regressiva dos protestos de rua de 2013.
Assim, Bolsonaro também pratica um presidencialismo estritamente voltado a manter coesionada sua faixa de seguidores, respaldando-se no atendimento de exigências da elite empresarial, e abdica, dessa maneira, da meta política convencional de ampliar a base de apoio na sociedade. Ao contrário, “investe na formação de uma milícia ideológica, um núcleo largamente minoritário na sociedade, mas suficientemente grande para ameaçar as instituições e seus atores”2.
Por isso, explicar tais declarações como meros desatinos ocasionais não é o caminho mais interessante. Decerto, há altas dosagens de desatinos (que não podem ser tratadas como fatores externos à referida tecnologia de governo). Contudo, os desatinos mantêm-se entrelaçados com cálculos políticos, impulsionando a referida tecnologia governamental. E, aí, opera um aspecto de fundo: além de manter coesionados seus seguidores ativos, contando com a condição passiva de correia de transmissão de uma massa de milhões de pessoas, alimenta um estado de “choque social” que favorece os solavancos políticos das medidas ultraneoliberais, como a contrarreforma da Previdência. Em síntese, favorece o recrudescimento do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016.
Esta mesma tecnologia pode ser observada na forma de governar de Donald Trump – o presidente dos EUA, objeto de admiração de Bolsonaro. Consideremos, por exemplo, que os momentos mais “contagiantes” dos comícios atuais de Trump visando à reeleição não são os dedicados ao enaltecimento de propostas ou medidas adotadas durante o mandato, mas sim os dedicados a insultos, cujos alvos preferenciais do momento são quatro mulheres parlamentares: Alexandria Ocasio-Cortez, Ilham Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib3. Ojeriza; ódio destrutivo; ressentimento ao protagonismo feminino na esfera pública, ou seja: misoginia como uma característica relevante dessa forma de condução política.
Essa similitude, porém, recebe demarcações bem distintas, embora se mantenha vinculada a processos (auto)destrutivos radicais (como o do meio-ambiente). Tais demarcações distintas podem ser identificadas, por exemplo, no memorando celebrado entre os governos dos EUA e do Brasil, no dia 1 de agosto de 2019, que, na prática, “entrega de bandeja” obras bilionárias de infraestrutura a empresas norte-americanas, como a Halliburton e suas subsidiárias (participantes de muitos episódios de corrupção corporativa ao redor do mundo, como os vinculados à retomada de obras de infraestrutura do Iraque, depois da destruição ocasionada pelos bombardeios e invasão dos Estados Unidos e aliados). As construtoras norte-americanas, contando com suportes e financiamentos da USAID (United States Agency for Internacional Development) ou, mesmo, do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano), avançam sobre a demolição do setor de construção do país. Amparadas por financiamento estatal, as multinacionais norte-americanas atuam com passos largos, enquanto que, por aqui, criminaliza-se e esvazia-se o financiamento de longo prazo do BNDES.
No período de três anos, entre 2015 e 2018, a queda de receita líquida das maiores construtoras brasileiras foi calculada em 85%, despencando de R$ 71 bilhões para R$ 10,6 bilhões4. Os investimentos em infraestrutura como parcela do Produto Interno Bruto estão na casa de 1,7%. Segundo estudos dos pesquisadores Guilherme Magacho e Igor Rocha (2019), deveriam estar no patamar anual de 4,8% do PIB por, pelo menos, um período de 10 anos, para o país “melhorar a competitividade e a produtividade”5. O setor de moradia, um dos componentes mais importantes do repertório de investimentos em infraestrutura e crucial diante do vasto déficit habitacional brasileiro, está em frangalhos – sobretudo quando se coloca o foco nas famílias mais pobres (onde a incidência desse déficit é muito maior).
Para se dimensionar a situação, vale registrar alguns dados. Em 2013, foram contratadas 912,9 mil unidades habitacionais pelo Programa Minha Casa Minha Vida. Em 2016, o número de contratações caiu para 380,4 mil. A faixa 1 do Programa, voltada para famílias com renda de até 1,8 mil reais, foi a que mais foi atingida: de 537,2 mil unidades contratadas, em 2013, foi para 35 mil unidades, em 20166. Para o ano de 2019 foi destinada a menor dotação orçamentária do Programa desde a sua criação, em 2009, com o sacrifício maior recaindo sobre os mais pobres: R$ 4,4 bilhões7. Para 2020, a previsão orçamentária é ainda menor: R$ 2,7 bilhões8.
Os investimentos públicos previstos no orçamento de 2020 do governo federal receberam mais tesouradas: os R$ 19,3 bilhões representam o menor patamar da série histórica medida pela Secretaria do Tesouro Nacional. Com valores corrigidos segundo o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), essa previsão de investimentos públicos corresponde a menos da metade do investido em 2007 (R$ 42,7 bilhões) e menos de um quinto do investido em 2014 (R$ 103,2 bilhões)9. Vale também registrar a queda de 52,8% dos investimentos públicos dos governos dos estados e das capitais desses estados, tomando como base comparativa os primeiros semestres de 2019 e de 201510. O agregado de investimentos públicos dos estados brasileiros e respectivas capitais caiu de R$ 19,49 bilhões, no primeiro semestre de 2015, para R$ 9,21 bilhões, no primeiro semestre de 201911.
A espoliação do pré-sal e o esquartejamento da Petrobras, correlatos ao desmantelamento do setor de infraestrutura, também constituem patamares de análise indispensáveis a esse respeito. Não é exagerado afirmar que a sociedade capitalista contemporânea é petroleocêntrica: além do petróleo desempenhar o papel de principal fonte de energia e combustível, a utilização de seus derivados é cada vez mais intensa e extensa. Diante disso, a cobiça internacional sobre as reservas petrolíferas do pré-sal é proporcional ao tamanho delas.
Decorrida uma década, a produção brasileira no pré-sal atingiu 1,5 milhões de barris por dia (correspondendo a 55% da produção total no país) e gerou R$ 40 bilhões em participações governamentais12. O exercício dessa cobiça pode ser verificado na venda dos estratégicos campos de Lapa e Iara, através de uma “parceria” com a multinacional Total, envolvendo um valor inferior a 2,75% das reservas dos referidos campos. Junto a reservas de petróleo e gás, outros ativos estratégicos são vendidos a “preço de banana”, como redes de dutos, polos petroquímicos, empresas subsidiárias etc. Além do mais, o projeto de uma Petrobras direcionada à realização e integração das atividades de prospecção, extração, refino, transporte e distribuição foi desmontado, e isso atinge diretamente a cadeia produtiva do petróleo e gás.
Uma das consequências dessa política de desmonte foi a diminuição das atividades de refino, aqui no país, e o aumento de tais atividades fora daqui, especialmente nos EUA. Do montante total de gasolina importada, o percentual comprado dos EUA está na faixa de 70%. No ano de 2015, essa porcentagem foi de 29%. Visualizando essa situação em termos monetários: no primeiro semestre de 2016, a importação de gasolina nos EUA custou U$ 126 milhões. No primeiro semestre deste ano custou U$ 634 milhões13. Sobre o desmonte do ramo do petróleo e gás, atrelado à queima de ativos estratégicos, os EUA também avançam com paços largos.
Conforme já registrado, a devastação como tecnologia de governo percorre as trilhas do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016. Aqui cabe uma observação: consideramos que o golpe também foi militar, visto que setores influentes das Forças Armadas integraram o consórcio golpista e tal integração serviu como impulso decisivo para a retomada da participação política direta, com a inserção de militares em postos estratégicos da estrutura do Estado brasileiro. Nem mesmo na ditadura civil, empresarial e militar de 1964 o quantitativo de militares nos governos foi tão extenso como agora.
Por intermédio do golpe de 2016, alicerces constitucionais são destruídos. É isso o que provoca a conjugação de Emenda Constitucional 95, contrarreforma trabalhista e contrarreforma da Previdência. Na prática, essa conjugação destrói o rol de direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988. Decerto precisamos considerar que esses direitos são vulneráveis a esvaziamentos e pulverizações desde o advento do neoliberalismo no país, logo após a promulgação da Constituição de 88. Mas além disso avaliamos que o golpe implementa um processo de “desconstitucionalização” ou “desconstituinte”.
Nesse registro, é crucial dimensionar o alcance extremado de uma medida como a contida na Emenda Constitucional 95. O “Novo Regime Fiscal”, implementado por tal Emenda, não pode ser tratado como uma ampliação quantitativa de doses da DRU (Desvinculação das Receitas da União), um dispositivo voltado a canalizar fundo público ao rentismo embutido no sistema da dívida pública para, supostamente, obter a tal “confiança” do mercado.
A Emenda Constitucional n° 95 (EC 95), aprovada em 16 de dezembro de 2016, instituiu um novo regime fiscal que impôs um congelamento, por um período de duas décadas, dos recursos públicos destinados à educação, saúde, saneamento básico, habitação, previdência, assistência, segurança alimentar, segurança pública, ciência e tecnologia, cultura, infraestrutura, transporte etc. Assim, fixou um teto de gastos públicos, adotando como marco o ano de 2017 (com o orçamento do ano de 2016, elaborado sob a influência de um severo ajuste fiscal) e o ano de 2018 (com o orçamento do ano de 2017, montado, ainda, em conformidade com a perspectiva do ajuste) especificamente para a educação e saúde. Mas, fixou um teto de gastos públicos da seguinte maneira: a incidência do teto recai, exclusivamente, sobre as chamadas despesas primárias. Isso significa que nenhum tipo de congelamento incidirá sobre as chamadas despesas financeiras, referentes aos gastos com juros do sistema de endividamento público. Logo, o teto de gastos do Novo Regime Fiscal não incluiu as despesas financeiras que, se comparadas com as despesas primárias, comprometem quantidade muito maior de fundo público, impulsionando a lógica rentista/especulativa e a permanência da escandalosa concentração de renda e riqueza do país. Aumento populacional, mudança etária da população e possíveis aumentos de receitas são deliberadamente desprezados pelo Novo Regime Fiscal – ou melhor: possíveis aumentos de receitas poderão ser mais combustíveis para as engrenagens rentistas/especulativas do sistema da dívida pública.
É importante visualizar nesse regime fiscal um ataque frontal às vinculações orçamentárias obrigatórias determinadas pela Constituição. Por meio dessas vinculações constitucionais, os estados devem direcionar, no mínimo, 12% do orçamento para a saúde e os municípios 15%. Na mesma linha, os estados e municípios devem canalizar, no mínimo, a fração de 25% dos respectivos orçamentos para a educação. No tocante ao governo federal, até a aprovação da EC 95, eram 17% para a educação e 15% para a saúde. A complementação desse ataque, visando demolir, por completo, as destinações orçamentárias mínimas para áreas como saúde e educação, está contida em uma Proposta de Emenda Constitucional, chamada pelo Ministro Paulo Guedes de “PEC do Pacto Federativo”, que se mantém à espera do tempo político adequado para o envio ao Congresso.
São, de fato, dispositivos demolidores de políticas públicas sociais, que ecoam um rechaçamento obsessivo da Constituição Federal de 1988, muito difundido entre as elites dominantes do país. Na esteira desse rechaçamento, a Constituição Federal de 1988 (mais especificamente a arquitetura constitucional dos direitos sociais) é tratada como incompatível com a “realidade” orçamentária do Estado brasileiro. Na prática, essa noção de que o orçamento público não comporta a Constituição, autoproclamada constantemente na grande mídia como “realista/racional”, é a exclusão de milhões de brasileiros e brasileiras do Produto Interno Bruto.
Assim, a tecnologia governamental da devastação (que percorre as trilhas do golpe de 2016), mais do que atualiza, oficializa um sentido excludente, de fundo escravocrata, ora posto ora pressuposto, enraizado na formação sociohistórica brasileira, erguida sobre genocídios e orientada para a espoliação.
Analisando a proposta de contrarreforma da Previdência original do governo Bolsonaro, o pesquisador Eduardo Fagnani destacou a produção de uma massa de “idosos não aposentáveis” como política oficial de governo14. Uma massa de idosos não aposentáveis em meio a uma massa de seres humanos extermináveis (concentrados nas periferias urbanas e rurais) gera um quadro social de massacre. A contrarreforma trabalhista (incluindo a generalização das terceirizações) destrói o fio que liga formalização do trabalho, assalariamento e acesso a direitos (como os previdenciários) – fio historicamente já muito tênue, por causa das características estruturantes da formação social brasileira. Com isso, impulsiona e espalha a lógica da “uberização” pelo mercado de trabalho.
Dentro desse agressivo ímpeto desregulamentador, destacamos também os ataques às chamadas NRs – Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho. Os impactos desses ataques incidem na fiscalização e enfrentamento das formas contemporâneas de escravidão que ainda existem no mundo brasileiro do trabalho. Diante de um contexto marcado pelo predomínio financeiro-rentista (com os dispositivos subjacentes de espoliação de fundo público, ativos públicos estratégicos e recursos naturais), em meio aos patamares recordistas de desemprego, subemprego, informalidade e precarização das relações trabalhistas, o desmantelamento da Previdência e de outras políticas sociais gera o que Fagnani chamou de “capitalismo sem consumidor”. O sentido espoliador da colonização (re)surge na enxurrada da financeirização neoliberal pós golpe de 2016, em um quadro de massacre social, e, assim, o passado (nos seus aspectos mais atrozes) insiste em se fazer presente, acorrentando o futuro.
Durante a vigência dos governos federais petistas, foram adotadas medidas de melhoria da vida do pobre, conduzidas, em geral, pela via da ampliação consumo e pela rota de concertação social, e não de confronto15. Mas, pelas características fundantes da modernização conservadora brasileira, de origem colonial e escravocrata, essa rota de concertação não foi capaz de afastar conflitos. Mesmo não pretendendo confrontar diretamente as elites dominantes do país, os governos federais petistas, na medida em que enfrentaram a fome e a miséria, fizeram-no.
O golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 revelou isso, na marra, reeditando a tradição golpista da modernização conservadora brasileira, de pactos elitistas pelo alto. Atenta a essas coordenadas sociohistóricas e ao papel estratégico que as políticas sociais desempenharam na tentativa de retomada e reorientação do desenvolvimento econômico pelos governos federais do Partido dos Trabalhadores, Renata Cardoso vislumbrou a hipótese de que as políticas sociais, incluindo aquelas com baixa dotação orçamentária, como o Bolsa Família (que corresponde a uma fração menor do que 0,5% do PIB), teriam composto o arcabouço das motivações golpistas. Perseguiu essa hipótese, pesquisou a questão e constatou que, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família e o Brasil Carinhoso posicionaram-se no olho do furacão golpista, e, com isso, não desempenharam apenas papel complementar, secundário ou lateral nas maquinações em torno do impeachment fraudulento de 2016 (conforme defendem leituras que tratam tais programas como meramente assistencialistas)16.
Um dos focos do estudo de Cardoso acerca das políticas sociais direcionou-se às ações petistas de enfrentamento (efetivo e inédito) da fome e demais expressões da extrema-pobreza no Brasil. Segundo a autora, esse enfrentamento baseou-se na articulação de ações específicas contidas em programas como o Bolsa Família com outros segmentos das políticas sociais do país, como a Previdência, bem como em uma articulação mais ampla com a totalidade do repertório de medidas que impulsionaram o aquecimento do mercado interno, como o aumento dos investimentos públicos, a geração expressiva de empregos formais, a política de valorização continuada do salário mínimo e a ampliação do acesso ao crédito. O país saiu do mapa da fome e vidas passaram por ressignificações: uma conquista extraordinária. Entretanto, conforme constatação de Cardoso, seguindo na rota da monetarização/financeirização das políticas sociais, saiu sem alterar a concentração de renda e riqueza, sem modificar a drenagem de fundo público para o rentismo do sistema da dívida pública, sem reverter a imensa dependência da exportação de commodities (com altos custos ecológicos e sociais), e pautou-se em um perfil predominante de posto de trabalho gerado: precarizado, rotativo, concentrado na faixa salarial de até 1,5 salário mínimo.
Com as pesquisas de Cardoso, verificamos que, mesmo carregando essas características, as políticas sociais compuseram as motivações do golpe de 2016, que lançou, rapidamente, o país no mapa da fome. Em um ano, 1,7 milhões de pessoas entraram em situação de pobreza extrema, segundo dados do IBGE, que usou critérios de definição de pobreza e extrema-pobreza do Banco Mundial (rendimentos de até U$ 5,5, por dia, e de U$ 1,9, por dia, respectivamente). No final de 2017, o país voltou a níveis de 2005. Com isso, mais de 11 milhões de brasileiros e brasileiras foram empurrados novamente à condição de extrema-pobreza e intensa insegurança alimentar17. No orçamento de 2020, a previsão orçamentária para o Bolsa Família é de R$ 30 bilhões. Isso significa, na prática, que, nem ao menos, reposição inflacionária acontecerá, de maneira a diminuir o escopo do programa em um momento na qual o país volta ao mapa da fome18.
O atual presidente da República, em uma entrevista concedida a jornalistas internacionais, no dia 19 de julho de 2019, afirmou que “passar fome no Brasil é uma grande mentira” e que “falar que se passa fome no Brasil é discurso populista, tentando ganhar simpatia popular, nada além disso”.
Conforme indicado neste artigo, afirmações como esta não se tratam apenas de desatinos. Existe uma disputa de modelo societário subjacente à política de devastação. Além dos cortes orçamentários o governo Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional por meio da Medida Provisória 870/19. Em decorrência de uma ativa oposição parlamentar, a MP foi alterada nesse ponto, e o Conselho, pelo menos, foi formalmente recriado. A atuação desse Conselho foi um dos vetores principais para a formulação de políticas de enfrentamento da fome, que incluiu a produção de alimentos saudáveis, por meio de iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Como podemos perceber, no bojo dessa disputa de modelo societário quaisquer vestígios de política de desenvolvimento nacional e de políticas sociais devem ser destruídos, a partir de pressupostos baseados em um fundamentalismo neoliberal que evoca o comando “absoluto”, “puro” do mercado, na qual a forma político-estatal de intervenção e regulação da sociedade é mero suporte.
Nessa distopia do governo do mercado, o Estado não está completamente ausente, pois, assegurando o ímpeto de desregulamentação econômica, há uma pretensão de regulação vigilante, repressiva e punitiva, de caráter regressivo, do cotidiano subjetivo dos sujeitos sociais. Naquilo que se convencionou chamar de “guerra cultural” coloca-se em foco, por exemplo, a orientação sexual em detrimento da política de educação sexual nas escolas.
Percebemos, com isso, que a distopia envolve uma espécie de simplificação social regressiva, que trata família heteronormativa branca e o mercado como as duas instâncias fundamentais de integração do indivíduo à sociedade, conferindo ao braço opressivo a tarefa de conter os “desviantes” e “degenerados” de quaisquer tipos. Porém, enquanto a família e o mercado não se “reempoderam suficientemente”, cabe ao Estado assumir a regulação de comportamentos, por meio da “guerra cultural”, em concomitância com a marcha da desregulamentação econômica.
Assim, uma fantasiada desregulamentação econômica absoluta se vincularia a uma densa e capilarizada “regulação” regressiva estatal e também paraestatal, convém assinalar, dadas as reiteradas intenções de estabelecer e armar milícias pró-Bolsonaro em meio a medidas armamentistas.
No tocante à busca do “mercado puro”, é importante registrar, ainda, uma observação. De alguma maneira, os EUA costumam ser identificados como parâmetro para esses fundamentalistas. Mas, o papel ativo desempenhado pelo Estado norteamericano na dinâmica econômica é significativo – basta verificar as relações estreitas entre o complexo industrial-militar daquele país e a produção de tecnologia de ponta no Vale do Silício, por intermédio de ações estatais variadas. Nesse caso, mais uma vez, o autoproclamado livre-empreendedorismo no Vale do Silício está perpassado por intervenções do Estado de cima a baixo. Além do mais, o dólar se impõe como a moeda hegemônica mundial não exatamente por critérios econômicos, mercadológicos, empreendedoristas: o fato decorre do poderio bélico dos EUA e da projeção de poder imperial sobre o mundo. Tem a moeda hegemônica quem detém o maior arsenal nuclear mundial, capaz de destruir todo o planeta. Nada mais contrastado e distanciado da ideologia do “Estado mínimo”, por aqui muito difundida.
Por isso, é indispensável assinalar: o alcance e os impactos dessa distopia representam, na prática, um tipo de reivindicação do Estado e o seu atrelamento ao imediatismo devastador dos ganhos rentistas que se expande, inclusive, para os domínios industriais. Levando-se em consideração o atual contexto global de financeirização e crise estrutural do capitalismo, em um país erguido sobre os alicerces de uma colonização escravocrata, que bloqueou, ao longo da história, por meio de golpes e outros artifícios autoritários de elite, tentativas mínimas de reorientação democrática dos modelos desenvolvimentistas no sentido de distribuição de renda e riqueza e construção de uma rede de direitos sociais, as experiências petistas no governo federal revelaram, no mínimo dois aspectos simultâneos: a ressignificação das políticas sociais, priorizando o enfrentamento da fome e outras mazelas decorrentes da extrema-pobreza, constituiu caminho urgente e plausível de transformação. Mesmo com todos os limites dessa transformação, constituiu caminho incendiário e intolerável para poderosos setores sociais que, mais uma vez, impuseram um golpe.
Em mais um episódio histórico impôs-se um golpe de Estado à sociedade brasileira. Em mais um episódio histórico são os setores mais pauperizados da classe trabalhadora que mais padecem sob os seus efeitos. A tecnologia devastadora do governo Bolsonaro segue, com as devidas especificidades, as trilhas do golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016.
Notas
1 Colocamos entre aspas “participação cidadã” porque temos ciência de que tais espaços e as participações lá conduzidas apresentaram virtudes e potencialidades, mas também limites, contradições e problemas. Não é objetivo deste artigo elaborar este levantamento e análise.
2 “Seu cálculo é que a coalizão anti-esquerda, formada por militares, banqueiros, Rede Globo, políticos, pastores empresários, a maioria do Judiciário, do Ministério Público e outras corporações, permanecerá unida. Ele não é o candidato preferencial de nenhum de seus integrantes, mas pode obrigá-los a engoli-lo, impedindo que busquem opções melhores, desde já e em 2022”. Marcos Coimbra, “A rotina do anormal”, Carta Capital, 21 ago. 2019, p. 21.
4 Graziella Valenti & Taís Hirata, “Construtoras encolhem 85% em 3 anos“, Valor Econômico, 1 jul. 2019.
5 Guilherme Magacho & Igor Rocha, “Motores desligados“, Adib, 19 ago. 2019.
6 Idem.
7 “Comissão debate cortes no Minha Casa Minha Vida“. Câmara Legislativa – Cidades e Transportes, 25 abr. 2019.
8 Thiago Resende & Fábio Pupo, “Bolsonaro corta orçamento de programas sociais em 2020“, Folha de S.Paulo. 3 set. 2019.
10 “A comparação é feita com 2015 para considerar o mesmo período dentro do ciclo eleitoral para os dois níveis da administração pública. Assim como 2019, o ano de 2015 foi o primeiro de gestão dos governadores. Também foi o terceiro ano do mandato dos prefeitos eleitos em 2012. Os valores de 2015 estão atualizados pelo IPCA”. Marta Watanabe, “Estados e capitais cortam investimentos pela metade no primeiro semestre”. 2 set. 2019.
11 Idem.
14 Eduardo Fagnani, Previdência: o debate desonesto (São Paulo: Contracorrente, 2019).
15 Aqui é importante ressaltar especificidades de um momento do governo Dilma Rousseff, muito bem elencadas e analisadas por André Singer em “Cutucando onças com bases curtas”. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (São Paulo: Companhia das Letras, 2018), pp. 39-76.
16 Os resultados da pesquisa encontram-se na tese de doutorado intitulada No olho do furacão: as políticas sociais nos governos petistas, defendida no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ, em setembro de 2019.
17 Relatório da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE apud Renata Cardoso, No olho do furacão: as políticas sociais nos governos petistas, Tese de doutorado defendida no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFRJ, set. 2019.
18 Thiago Resende & Fábio Pupo, “Bolsonaro corta orçamento de programas sociais em 2020”, 3 set. 2019.
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Felipe Brito é professor do curso de Serviço Social da UFF de Rio das Ostras. Organizador (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Renata de Oliveira Cardoso é assistente social formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus de Rio das Ostras. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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