quarta-feira, 15 de julho de 2020

O mundo precisa saber disso o mais RÁPIDO possível...

HÁ 50 ANOS MATANDO ÍNDIOS NA AMAZÔNIA


Faltam 15 dias Na segunda-feira publicamos uma matéria que estava em produção desde o ano passado e que nos encheu de orgulho. Trata-se da história de Paulo César Quartiero, arrozeiro e pecuarista, que pratica, há quase 50 anos na Amazônia brasileira, a ideologia de Bolsonaro. Quartiero posa para fotos como "matador de índios" (em suas palavras) e fala abertamente em "enforcamento para ambientalistas". O latifundiário possui uma dívida em multas que ultrapassa R$ 56 milhões por desmatamento e atividade produtiva sem licença e mesmo assim continua atuando sem ser incomodado. Esse tipo de história demanda tempo por muitas questões. Primeiro, pelo risco óbvio que é tratar de uma dessas figuras perigosas que tomaram conta do país. Mas também porque o acesso a informação nesses casos é difícil. É preciso fuçar arquivos públicos, cultivar fontes e virar a vida dessas pessoas de cabeça pra baixo para coletar o máximo de dados possível. Depois, há um longuíssimo trabalho de checar e editar o material. Por isso, levamos meses trabalhando nesse caso. Ele nos orgulha porque é possível afirmar com tranquilidade: essa história, com esse tratamento e cuidado, você só vai ler no Intercept. A força que nos é dada pelos nossos leitores nos permite funcionar de uma maneira totalmente diferente de outras redações brasileiras. Não temos rabo preso com anunciantes ou patrocinadores. Mas o mais importante é que conseguimos garantir que os jornalistas disponham dos recursos necessários para seu trabalho: apoio jurídico, tempo de apuração e tudo que for necessário para sua segurança. É por isso que em uma semana demos com exclusividade informações sobre as milícias no Rio de Janeiro, na outra investigamos escândalos de superfaturamento e nessa fizemos o perfil de uma figura assustadora como PC Quartiero. O apoio de milhares de brasileiros nos permite enfrentar o poder e os perigos para contar essas histórias. Você sabe, nenhum outro canal tem o poder de fogo jornalístico e a coragem de fazer o jornalismo investigativo que fazemos aqui. Estou te escrevendo hoje porque queremos continuar atuando assim, mas enquanto redijo essa mensagem, ainda faltam cerca de R$ 20 mil para batermos a meta mensal que estabelecemos em abril. É fundamental que alcancemos essa meta até o final de julho porque nossos repórteres e editores precisam saber quais recursos ficarão disponíveis para planejarmos os próximos meses. Estamos desde abril correndo atrás dela com o objetivo de que a redação foque em contar grandes histórias, sem contar centavos. E você sabe o tanto que temos pela frente: eleições, desgoverno Bolsonaro, mortes acumuladas por conta da pandemia, devastação da Amazônia, desmonte da educação pública, violenta retirada de direitos, enfrentamento do Gabinete do Ódio e mais. Em circunstâncias normais, eu diria que, se todo o mundo que vai ler essa mensagem doar R$ 5, a meta estaria batida. Mas nem todos podem. Se você está entre aqueles que têm condições fazer algo hoje, considere doar o que puder e nos ajude a garantir que o Intercept permaneça acelerado, realmente independente e sustentável nesse momento crítico. Temos apenas 15 dias e dependemos de você. FAÇA PARTE DO TIB → Um abraço, Marianna Araujo Diretora de Comunicação

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Entendendo as milícias digitais do bolsonarismo

Pra entender as milícias digitais do bolsonarismo Antropóloga analisa: extrema-direita manipulou características do WhatsApp — fechado, difícil de rastrear e mais acessado que outras redes — para transformar população insatisfeita em reprodutores da palavra do “capitão” OUTRASPALAVRAS TECNOLOGIA EM DISPUTA por Maria Clara F. Guimarães e Matheus A. Vaz Publicado 30/09/2019 às 18:10 - Atualizado 09/07/2020 às 08:27 Letícia Cesarino, entrevistada por Maria Clara Ferreira Guimarães e Matheus Antonino Vaz, do ComCiência| Imagem: João Montanaro Letícia Cesarino é professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2004), mestra em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) (2006), e doutora em antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (2013). Tem trabalhado e publicado nos campos da antropologia da ciência e tecnologia, antropologia digital, antropologia econômica e do desenvolvimento, globalização e estudos pós-coloniais. Você tem realizado pesquisa de campo nos grupos de WhatsApp. Como funciona essa pesquisa? Por que resolveu se dedicar a este campo? Trabalho há muitos anos no campo da antropologia da ciência e cibernética, e mais recentemente tenho focado no estudo da internet e mídias digitais. A surpreendente eleição brasileira de 2018 despertou interesse de pesquisadores no mundo inteiro, mas minha aproximação se deu por motivos pessoais, quando uma pessoa muito próxima, que eu acreditava ter um perfil destoante do de Jair Bolsonaro, declarou seu voto a ele. Como estava claro que a imagem do então candidato havia sido construída digitalmente, principalmente através da quantidade maciça de conteúdo pelo WhatsApp, comecei aí minha pesquisa, exatamente um ano atrás. O foco desde então tem sido grandes grupos públicos pró-Bolsonaro no WhatsApp, complementado por outras plataformas que se ligam a ele num ecossistema comum, especialmente Twitter, YouTube e Facebook. Eu por enquanto venho apenas coletando conteúdo e observando interações nessas mídias, mas numa segunda etapa o plano é passar para etnografia offline com alguns desses usuários. + Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>> O que é o populismo digital? Quais as diferenças principais em relação ao populismo tradicional? As continuidades entre os dois são muitas, mas há diferenças importantes. A teoria do populismo do argentino Ernesto Laclau, na qual eu me baseio, foi desenvolvida para entender populismos pré-digitais clássicos, como o de Juan Perón ou Getúlio Vargas. Hoje, ainda considero válido o núcleo da teoria, segundo a qual populismo é a construção da identidade de “povo” num contexto de crise, por uma liderança carismática que se diz antissistema, através de dois eixos discursivos articulados: uma fronteira antagonística opondo amigo a inimigo, e uma cadeia de equivalência unindo líder e povo. Em todos os casos, o populismo opera com um tipo de linguagem essencialmente performativa, na qual o emissário (líder) e receptores (povo) da mensagem não preexistem enquanto tais ao ato comunicativo que os une, mas são constituídos por ele. Vimos claramente como isso ocorreu no caso brasileiro, onde, num contexto de crise aguda, a multidão difusa que foi às ruas em junho de 2013 foi sendo gradualmente construída enquanto “povo”, primeiro através do eixo antagonístico do antipetismo e do movimento anticorrupção, e depois através da cadeia de equivalência mobilizada por Jair Bolsonaro em 2018, que operou com o tipo de simbologia mais elementar e previsível possível: em torno da ideia da nação. A base para a irrupção populista já estava posta: tudo o que Jair Bolsonaro precisou fazer foi aproveitá-la para proveito próprio, valendo-se do seu carisma como alguém espontâneo e antipoliticamente correto (o “mito”) através de uma estratégia de campanha digital bastante sofisticada e bem planejada. A diferença do populismo digital está, creio, no seu tipo especial de eficácia: as mediações digitais permitem fractalizar o mecanismo descrito por Laclau para a rede de seguidores do líder, que passam a reproduzi-lo de modo espontâneo. Na era pré-digital, a eficácia da liderança populista dependia muito das suas capacidades pessoais – oratória, por exemplo. Hoje, boa parte desse carisma e capacidade mobilizadora passa não pela pessoa do líder, mas por atributos das próprias mídias digitais, dos memes aos algoritmos. Todo populista bem-sucedido hoje precisa ser também um bom influenciador digital. Mas no caso brasileiro, diferente de outros, interveio uma contingência que se mostrou crucial: o atentado à faca sofrido pelo candidato. A partir desse momento, formou-se o que eu chamei do “corpo digital do rei”, onde o corpo de apoiadores de Bolsonaro (os autointitulados “marqueteiros do Jair”) substituiu seu corpo físico debilitado na campanha eleitoral, o que foi determinante para sua vitória. Nesse ponto, a campanha Bolsonaro surfou num elemento de eficácia que é próprio do modelo de negócios das redes sociais atualmente, que se baseiam no user-generated content, ou conteúdos gerados pelos usuários. De que forma o WhatsApp e suas particularidades funcionais contribuem para a disseminação do discurso populista, se comparado a outras redes sociais? O principal diferencial do WhatsApp, como outros pesquisadores também têm apontado, é a sua extraordinária capilaridade. Isso ocorre por vários fatores. O mais evidente é o padrão de uso do aplicativo, pois, por ser uma ferramenta que em larga medida substituiu a função de comunicação pessoal do telefone, é checado com assiduidade maior que outros. Isso é um fator central para o sucesso do mecanismo populista, pois, para que ele continue gerando o efeito de unificação do “povo”, é preciso que a mobilização seja constante. Um dos tipos de conteúdo digital mais comuns, tanto antes quanto depois da eleição, são justamente mensagens alarmistas e conspiratórias – às vezes falsas, às vezes apenas exageradas – que visam essa função mobilizadora, normalmente indicada em avisos como “urgente!” ou “cuidado!”. Muitos algoritmos, como o do YouTube, premiam esse tipo de conteúdo. Além disso, o WhatsApp possibilitou que conteúdo de campanha (tanto a oficial como a não-oficial, supostamente feita pelos próprios apoiadores do então candidato) que circulava em outras plataformas como Twitter ou Facebook chegasse a usuários que não estavam registrados ou ativos nelas. E melhor ainda: chegavam já filtrados. É possível que o WhatsApp tenda a ser visto como uma plataforma mais confiável, pois não é aberta à interação pública como outras, e normalmente opera fundamentalmente através de redes pessoais. E há ainda, no caso do Brasil, um fator infraestrutural que é determinante: os pacotes de dados com WhatsApp grátis, oferecido por todas as operadoras. Muitos pesquisadores vêm apontando como, para boa parte da população, o acesso à internet se limita ao WhatsApp, o que basicamente impossibilita a checagem de fatos e o acesso ao contraditório. As pessoas passam a ver o mundo através de uma bolha digital fechada, que se torna a única representação “verdadeira” (pois a única disponível) do mundo político. Isso foi, inclusive, bastante estimulado pelo atual presidente durante a campanha, ao deslegitimar desde o início a imprensa e a esfera pública de modo mais amplo, e pedir aos seus eleitores que acessassem informação exclusivamente através das suas lives e redes sociais. Como se diz por aí: o Twitter virou o novo diário oficial. Esse elemento de construir um canal de acesso exclusivo do líder ao “povo” é uma característica também dos populismos pré-digitais. O melhor exemplo que temos no nosso caso talvez seja a Voz do Brasil, criada justamente por Getúlio Vargas. O problema de hoje é que esse canal exclusivo, quando construído por meio das mídias digitais, é visto como espontâneo, horizontal e movido pela liberdade de expressão. Mas essa dicotomia é enganadora: aqui, liberdade e controle, espontaneidade e manipulação andam juntos. Por isso, inclusive, a perspectiva cibernética é interessante, uma vez que opera com noções de “comando e controle” que são transversais a essas dicotomias. Como venho insistindo, as mídias digitais são um tipo paradoxal de mediação, pois geram no usuário uma falsa experiência de ausência de mediação. Os apoiadores de Jair Bolsonaro acham que podem prescindir do sistema político-representativo pois acreditam poder acessá-lo diretamente através do seu smartphone. Essa expectativa é, aliás, regularmente alimentada pelo presidente nas suas redes sociais, ao dizer que tal ou qual medida foi tomada depois de ouvir tal ou qual eleitor no seu Facebook ou Twitter. Você afirma que o WhatsApp apresenta certas características que o diferenciam das outras redes sociais nos últimos anos. O que e como exatamente essas possibilidades dos usuários nessa rede permitem a interação política? Há um pressuposto que precisa ser problematizado: o WhatsApp é uma rede social? O aplicativo não parece ter sido originalmente criado por seus desenvolvedores com esse propósito, mas para ser um meio de comunicação privado. Por isso ele é peer-to-peer, encriptado etc. Porém, devido a ferramentas como a de encaminhamento, os grandes grupos e os links para grupos públicos, o aplicativo tem sido utilizado, na prática, como uma rede social. As interações que ocorrem ali, são de difícil, senão impossível, rastreio, e têm incidido em questões públicas cruciais como o processo eleitoral – mas não apenas. As ferramentas de monitoramento de WhatsApp disponíveis (na UFMG e UFBA, por exemplo), indicam a incidência do aplicativo em outros setores como o de saúde pública. Isso coloca dilemas regulatórios bastante particulares, e ainda mais complicados do que no caso do Facebook e outras redes, que já eram eles mesmos difíceis de lidar. Pois o WhatsApp é, hoje, uma espécie de terra de ninguém: a quantidade de conteúdos explícitos de violência (espancamentos, estupros, assassinatos, torturas), pornografia e fraudes como oferta de cartões de crédito ou documentos falsos que circula é impressionante. Apesar de os grupos que eu acompanho serem exclusivos para política e proibirem expressamente esse tipo de conteúdo, é comum que eles “vazem” para os grupos, especialmente naqueles em que os moderadores não são muito ativos. Já vi até grupos acabarem depois de terem sido “inundados” por esse tipo de conteúdo. Por isso, o WhatsApp tem sido às vezes chamado da nova deep web. Ao passo em que muitas pessoas se dizem insatisfeitas com a política tradicional, grande parte continua integrando grupos de WhatsApp com discussões sobre o assunto. Existe, nesses grupos, de alguma forma, esfera de controle social sobre o debate público? Acho que há uma questão crucial que poucos estão notando. É bastante comum ouvir nas redes bolsonaristas como o atual presidente fez com que as pessoas se interessassem por política como nunca antes no Brasil – o que é alardeado como um dos feitos milagrosos do “mito”. Mas, para mim, a questão que se coloca é outra: como o bolsonarismo e as mídias digitais têm transformado o que se entende por política no Brasil. Havia um elemento de entretenimento bastante evidente na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, que foi avançada por meios quase que exclusivamente digitais e se pretendia antissistema. No lugar dos antigos debates enfadonhos na TV, longos planos de governo em linguagem burocrática, especialistas que ninguém entende, foi oferecido aos eleitores o carisma dos memes, da lacração, dos roteiros quase hollywoodianos das narrativas conspiracionistas, a excitação de um campeonato de futebol que precisa ser vencido a qualquer custo, a diversão das dancinhas coreografadas e hits do MC Reaça, a catarse coletiva de projetar todas as frustrações individuais em um inimigo público comum (no caso, o PT). E não apenas entretenimento: a campanha grassroots de Bolsonaro foi inclusive uma oportunidade de geração de renda no contexto de precariedade trabalhista no qual se encontra boa parte da população brasileira – desde as ubíquas camisetas do mito vendidas nas ruas, até canais do YouTube que conseguiam seguidores o suficiente para se monetizar, passando por meios mais obscuros como os sites de fake news que geram renda através de ferramentas de propaganda personalizada como o Google AdSense (muitos dos quais, inclusive, eram difundidos através do WhatsApp). Não é difícil qualquer um, mesmo crianças e adolescentes, se interessarem por política hoje em dia, porque a política na nossa época neoliberal já virou outra coisa. Nos termos de Laclau, podemos dizer que, no contexto populista atual, a política passa principalmente não pela racionalidade, impessoalidade e debate público, mas pelo plano dos “afetos”, e por um nível muito elementar de formação de grupo que prescinde de qualquer educação política no sentido específico do termo. Em minhas análises, utilizo vários conceitos desenvolvidos por antropólogos a partir de pesquisas com sociedades tribais, na África ou na Melanésia. Eles fazem muito sentido para pensar elementos centrais da política hoje. Em minhas análises tenho sugerido, inclusive, que a prevalência das mediações digitais no mundo de hoje tem desestruturado pilares centrais do que chamamos de modernidade, como a ciência e a democracia representativa. Neste sentido, não seria à toa que nosso comportamento político tem se afastado do que seria a norma para a teoria política liberal, e se aproximado de formas políticas de sociedades não modernas ou do passado do ocidente, como as políticas das multidões na Europa do século XIX. O que se tem observado no Brasil e em outros lugares do mundo hoje é que as pessoas têm feito suas escolhas eleitorais com base nos mesmos critérios que utilizam para outros tipos de interação social. Isso é democracia? Mais ou menos. Pois o que temos visto nas redes bolsonaristas, de modo bastante claro, é uma redução do significado de democracia a apenas um de seus componentes, o da soberania popular. A viúva de Laclau, a belga Chantal Mouffe, aponta que a democracia moderna possui, ainda, um outro polo além desse, que é o liberal-institucional, representado em estruturas de pesos e contrapesos como o equilíbrio dos três poderes. É esse polo que tende a ser esvaziado em contextos de irrupção populista, e é exatamente o que vemos hoje, em pautas bolsonaristas como os ataques ao STF, ao legislativo, e a evocação das Forças Armadas. O que as pessoas no Brasil parecem não estar se lembrando é que igualar democracia apenas à vontade da maioria, à suposta vontade do “povo” incorporada na figura do líder acima de tudo e de todos, não é democracia. A história europeia do século XX deu a isso um outro nome. Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS TAGS ANTROPOLOGIA, DIREITA NA POLÍTICA, GETÚLIO VARGAS, JAIR BOLSONARO, MARQUETEIROS DO CAPITÃO, MILÍCIAS BOLSONARISTA, POPULISMO DIGITAL, REDES SOCIAIS, WHATSAPP MARIA CLARA F. GUIMARÃES E MATHEUS A. VAZ Maria Clara Ferreira Guimarães é graduada em linguística pela Unicamp. Atualmente é aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor/ Unicamp. Matheus Antonino Vaz é formado em jornalismo pelo Mackenzie. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no LabJor/Unicamp. LEIA TAMBÉM: OUTRASMÍDIAS Por dinheiro, Bolsonaro leiloa nossos dados Dataprev e Serpro, estratégicas no armazenamento de informações sobre os brasileiros, estão na mira das privatizações. Pressão por lucro enfraquecerá mecanismos de controle e facilitará mercantilização da nossa privacidade TECNOLOGIA EM DISPUTA | por Lavits OUTRASMÍDIAS Um encontro com Julian Assange na prisão Jornalista consegue encontrar-se com o criador do Wikileaks. Em cárcere segurança máxima, ele só recebe duas visitas mensais, permanece isolado 22 horas por dia e mostra sinais de sofrer tortura psicológica. Se for enviado aos EUA, terá castigo ainda pior TECNOLOGIA EM DISPUTA | por aPública OUTRASMÍDIAS Cresce movimento antimonopólio na internet Europa e EUA debatem medidas legais contra o domínio da rede pelas big techs. Medidas incluem divisão da gigantes, fim de conglomerados como Facebook-Instagram-Whatsapp, impostos específicos para o setor e defesa da privacidade TECNOLOGIA EM DISPUTA | por El País Brasil OUTRASPALAVRAS Internet: Liberdade é Controle Como a crença numa noção iluminista de ordenação da esfera pública, junto a neoliberalismo avesso à regulação, produziram caos dominado pelo lucro, e transformaram a rede em instrumento de manipulação e vigilância TECNOLOGIA EM DISPUTA | por Rafael Evangelista OUTRASPALAVRAS Dois caminhos para as Novas Ciências Plano de Weintraub é subordinar universidade à lógica do mercado e do “inovacionismo”. Mas uma comunidade científica militante e cidadã, diversa e abrangente, pode assumir seu caráter público no rumo do desenvolvimento sustentável TECNOLOGIA EM DISPUTA | por Ricardo Neder OUTRASMÍDIAS A educação dos ciberproletários Após anos de magistério, professor relata impasse do ensino contemporâneo. Formação submete-se à tecnologia, e não o contrário. Surge um exército de precarizados incapazes de lidar com a vida adulta e ir além de slogans políticos vazios TECNOLOGIA EM DISPUTA | por El País Brasil 5 comentários para "Pra entender as milícias digitais do bolsonarismo" Ricardo Cavalcanti-Schiel disse: 1 de outubro de 2019 às 01:04 Toda essa análise falha num ponto essencial: Por que um contingente militante se mobilizou por Bolsonaro? Só por alguém ter-se mobilizado, o resultado se chama “populismo”? Ora, por que os bolsonaristas conquistaram espaço de legitimidade? Essa não é só uma questão de “como”. Já advertia o velho Bourdieu: não existe mágica ilocucionária. Na década de 80 era a militância do PT (na época em que o PT ainda era um partido de massas) que se mobilizava. A pergunta pelo avesso da primeira acima é: Por que a esquerda não se mobilizou como aprendeu há 30 anos a se mobilizar? Ou ela já não existe mais? E não existe por que? Quando os analistas resolverem se indagar sobre isso, quem sabe não começam a entender por que alguém com um discurso universalista meramente primário em torno da “nação” consegue criar um espírito de communitas que dá uma surra exemplar numa esquerda que virou pura fragmentação, remendo, falta de projeto, hipocrisia e, principalmente, arrogância e pretensão de onipotência (simbólica sobretudo). Claro que há um grau não desprezível de simplificação truculenta (uma truculência sedutora, sobretudo para os depauperados de poder, direito e cidadania) no discurso whattsapiano do bolsonarismo. E é aí que está a coisa. Mas essa “coisa” só funciona porque um certo ambiente político chegou a um grau de exasperação que, isso sim, deveria ser objeto de perscrutamento. Por que as pessoas foram buscar sua cidadania numa vontade-de-potência bolsonarista? A resposta até meio que óbvia é que essa cidadania não existe mais em nenhum espaço da política, ela foi sequestrada pelo liberalismo predatório lulista. Isso é crise (ou colapso, como prefere o Luiz Eduardo Soares) da representação. Não é emergência do populismo. Tem algo que vem antes. Reiterar esse discurso fácil e de moda sobre o “populismo” é apenas mais uma manifestação da mesma arrogância liberal de não querer sair do quadrado das suas verdades domésticas. Os antropólogos que apostamos mais alto sabemos, como Geertz, que se quiséssemos viver com elas, não deveríamos ter saído de casa. É. É isso mesmo: apostar todas as fichas interpretativas no “populismo” pode ser apenas uma manifestação de etnocentrismo liberal. O mundo não é necessariamente o espelho da Califórnia. RESPONDER Stefania disse: 1 de outubro de 2019 às 12:42 Essa semana, em conversa com amigos, um deles me disse que a sociedade, em sua acepção mais ampla, havia mudado e que, nesse sentido, eu haveria de ter que me adaptar “ao que esta aí”. A princípio, concordei com ele e, embora um pouco relutante, fiquei a pensar sobre o sentido dessa mudança. Então, o que me ocorreu, e talvez aqueles que tenham mais de trinta possam entender o meu ponto de vista, é que a atualidade não nos trouxe mais compreensão, discernimento e participação social, principalmente no que concerne à política. Fato esse que continuamos polarizados entre esquerda e direita, mesmo que disfarçados sob o manto do neoliberalismo dito inovador. Os acordos, nos três poderes, continuam sendo feitos como dantes, a compra de votos nessas casas é alardeada e, diria eu, até mais banalizada pela imprensa do que nos tempos da Casa da Dinda. Nesse sentido, o populismo também alcançou patamares diferentes do que, até então, era de praxe. Deixou de ter característica mais apelativa, ou de campanha de palanque, e incorporou o modelo de gestão populacional, uma espécie de “coaching” aos desavisados, aos, até então, avessos à política, aqueles que nunca se interessaram por ela. Resume-se, ao meu ver, a um ramo, no mundo dos negócios seria um “branch”, uma terminação nervosa, e bem nervosa, diga-se de passagem, para satisfazer aos anseios de um povo que não acompanha a política de seu país, que não tem memória de seu passado, mas que está insatisfeita com seu presente, embora não saiba bem como chegamos até aqui. RESPONDER Thyago disse: 1 de outubro de 2019 às 16:43 Ok. RESPONDER Rafael Jorge disse: 5 de novembro de 2019 às 19:20 Senti falta da menção ou consideração do fato de que o whatsapp é apenas o meio de propagação do populismo que tem uma nova roupagem no meio digital. Como disse Macluhan “o meio é a mensagem”. Mas o grande ponto é que esse meio foi usado e não só como propagação do populismo, ele foi usado ilegalmente em vários aspectos, primeiro por promover fake news contra os adversários e principalmente, um investimento exorbitante, fora do estabelecido pelas regras eleitorais, que garantiu uma manada de robôs propagando mentiras e não só as mensagens do capitão. Em que pese que a pesquisadora trata do populismo na era digital, mas ao meu ver a estratégia de bolsonaro está para além disso. Não sei se a pesquisa considera o grande “cérebro” disso tudo que é a Cambridge Analitycs. que tem uma estratégia de “emburrecer” a população e desmoronar a democracia e o pacto social local para implantar uma nova ordem em terra arrasada. Um ponto bem colocado é que o whatsapp não é bem uma rede social, ele é um meio que propicia a troca de mensagens, e dentro da estratégia da Cambridge, ela manipula e conquista a tal milicia digital a partir da polarização politica que binariza as discussões para evocar o fascismo, ou seja, destruir o racionalismo, polarizar o debate e implantar uma semente fascista, como fizeram onde participaram, aí menciono Brexit e Trump. Coloco esses elementos para dialogar com a pesquisadora caso ela tenha acesso a esse comentário… Até mais RESPONDER Celia disse: 1 de junho de 2020 às 13:43 O ano de 2020 chegou com articulações politicas para combater, aqui no Brasil, no momento mais propício, aos olhos das autoridades, um Vírus pela ótica pandêmica, porque até antes do carnaval brasileiro, um evento que arrecada milhões com o turismo e afins, não se falava em Pandemia, justamente por que? Por interesses políticos e econômicos, é obvio. E hoje em pesquisa sobre milícias digitais me deparo com uma pesquisa, que parece ainda estar em andamento, pelas falas dos autores, com foco na campanha para presidente 2018 e as redes sociais tendo o whats app como norteador. Uma pesquisa que usa a antropologia e os rebuscados científicos, pensadores de esquerda, influenciadores de autores como os deste estudo, e ainda assim vejo os autores criticando o populismo de um povo influenciado por um candidato, intitulando um povo sedento de mudanças de “bolsonaristas” esquecendo o passado que ainda ecoa de uma sistema corrupto e doutrinador de ideologias desconstrutoras, principalmente da família, sentando em cima do próprio rabo, esquecendo que os petistas também tiveram sua parcela de responsabilidade na destruição do Brasil. Deixem o Brasil ser governado por uma nova proposta, e se não der certo, como não deu certo como o PT, entao sim, venham às mídias e realizem seus estudos cientificos e provem que este presidente eleito pela VONTADE do povo não deu certo, mas até lá, deixem o homem governar. RESPONDER DEIXE UMA RESPOSTA

Theodor Adorno

A formação da personalidade autoritária O contexto social e político é decisivo. Mas que características psíquicas levam os indivíduos a ansiar por relações de poder baseadas na força bruta e na opressão? Publicado há 70 anos, estudo clássico de Theodor Adorno tem enorme atualidade OUTRASPALAVRAS DIREITA ASSANHADA por Rodrigo Duarte Publicado 09/07/2020 às 19:38 - Atualizado 09/07/2020 às 20:00 Por Rodrigo Duarte | Imagem: Cleon Peterson,Blood and Soil MAIS: Este texto integra o dossiê A Personalidade Autoritária hoje, da Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras A edição 259 (Julho de 2020), que contém os textos, está aqui O crescimento e a difusão de posições políticas neofascistas e até mesmo a eleição de políticos de extrema-direita – como nos Estados Unidos, Reino Unido, Hungria, Brasil – conclamam as consciências democráticas do mundo todo a não apenas se contrapor politicamente ao fenômeno, mas também compreendê-lo e sobre ele refletir em profundidade. Esse tipo de reflexão sempre teve na Teoria Crítica da Sociedade um esteio importante, a partir da publicação, em 1944, de uma primeira versão da Dialética do esclarecimento, de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, para a compreensão em profundidade – e em detalhes – do autoritarismo. Naquele mesmo ano de 1944, uma obra não menos relevante começou a ser gestada, quando Adorno, ainda na condição de exilado nos Estados Unidos, foi chamado a coordenar um grupo de pesquisadores da Universidade de Berkeley com o propósito de realizar uma investigação inédita. O objetivo era identificar, em indivíduos considerados “normais”, elementos psíquicos que predisporiam sua adesão a posições políticas fascistas, não obstante o caráter “liberal” da democracia estadunidense. Essa pesquisa deu origem ao livro A personalidade autoritária, de autoria coletiva, publicado em 1950 e que tem sido considerado, desde então, um clássico da psicologia social. Uma obra que, de modo peculiar no momento presente, é revestida de enorme atualidade. Embora os resultados da pesquisa tenham apontado para uma situação mais ampla que o preconceito em relação a judeus, o fato gerador da investigação foi um financiamento fornecido pelo Jewish Labor Committee estadunidense, que incluiu vários projetos sobre o assunto e influenciou também na inclusão do capítulo “Elementos do antissemitismo” na Dialética do esclarecimento. Além disso, havia também o “Projeto sobre o antissemitismo”, iniciado por Adorno e Horkheimer em 1941. Tratava-se de um trabalho essencialmente teórico, embora retomasse a pesquisa empírica iniciada ainda na Alemanha e intitulada Estudos sobre autoridade e família. Ambas as investigações – considerando-se também o referido capítulo da Dialética do esclarecimento – serviram de ponto de partida para a contribuição de Adorno em A personalidade autoritária, como fica patente na declaração dos próprios autores da pesquisa de que o “antissemitismo foi o ponto de partida para a investigação sobre o caráter autoritário”. + Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>> Em A personalidade autoritária, destaca-se um ponto de vista ético-político — não escamoteado em prol de uma suposta “neutralidade” científica — no qual os autores contemplam a possibilidade de explicitar os pressupostos psicológicos para o desenvolvimento de uma racionalidade mais substantiva, superior à instrumental que ainda hoje predomina de forma quase absoluta. Vale observar que um importante pressuposto teórico da pesquisa é de que o fascismo, embora seja um fenômeno de massas, tem sua gênese numa predisposição psicológica dos indivíduos, na medida em que “um caráter maduro aproximar-se-ia mais de um sistema de pensamento racional do que um imaturo. […] Nisso baseia-se a convicção de que à busca pelos determinantes psicológicos da ideologia subjaz a esperança de que as pessoas possam se tornar mais racionais”. Levando em consideração a irracionalidade congenial às ideologias totalitárias, a esperança dos autores poderia ser igualmente determinante na consolidação de uma democracia mais plena. Entre os pressupostos da pesquisa empírica – que incluía preenchimento de questionários, fornecimento de dados, respostas discursivas a questões projetivas, entrevista ideológica, entrevista clínica e Teste de Apercepção Temática – estava a ideia de que as pessoas que demonstram susceptibilidade extrema para a propaganda fascista têm muito em comum, enquanto as que a rejeitam enfaticamente diferem muito entre si. Além disso, os autores do estudo externam a convicção de que “o antissemitismo, mais do que em propriedades reais dos judeus, repousa em fatores subjetivos da situação geral do antissemita”. Vale ressaltar que o papel determinante ou não da propaganda antidemocrática no posicionamento político das pessoas depende fortemente da atuação de poderosas comunidades de interesse econômico. Não por acaso, a escala F (de fascismo) de medição de tendências autoritárias, obtida com base em um dos quatro tipos de questionário aplicados, foi estabelecida por Adorno diretamente vinculada à influência da indústria cultural sobre os indivíduos. A consideração desse fato pode explicar, aliás, por que “nesses casos o indivíduo parece não apenas ignorar seus interesses, mas até mesmo agir contra eles; parece identificar-se com um grupo maior, como se indagações menos racionais dos próprios interesses determinassem seu ponto de vista”. O impacto determinante da indústria cultural no psiquismo dos indivíduos tem a ver com o fato de que o fascismo – diferentemente de outros regimes ditatoriais –, necessita de uma base de massa para ter sucesso como movimento político, o que significa que ele deve assegurar uma cooperação ativa, e não apenas uma submissão medrosa de amplos setores da população envolvida. Esse impacto ocorre porque a ideologia fascista veiculada pelos meios de massa corresponde à estrutura de caráter dos indivíduos integrantes dos mencionados setores, uma vez que “antigas expectativas, nostalgias, medos e inquietações tornam as pessoas receptivas a certas convicções e resistentes a outras”. As características psicológicas que, de acordo com os autores, permitem aferir o grau de antissemitismo latente nos sujeitos da pesquisa foram: a) “convencionalismo”, ou seja, a fixação em valores aceitos de forma convencional e acrítica; b) “submissibilidade autoritária”, a qual designa a submissão completa e acrítica a um líder; c) “agressão autoritária”, que é a tendência do autoritário a punir pessoas consideradas outsiders; d) “anti-intracepção”, que significa uma reação extremada contra tudo o que é subjetivo ou imaginativo; e) “superstição e estereotipia”, que indica a crença na determinação mística do próprio destino; f) “pensamento de poder”, que designa a identificação completa com formas de poder; g) “destrutividade e cinismo”, que corresponde à hostilidade generalizada e gratuita; h) “projetividade”, a qual aponta para a projeção de pulsões sobre o exterior; i) “sexualidade”, que consiste na exacerbação no trato com processos sexuais. Todas essas características, normalmente combinadas entre si em proporções diversas, constituem a alta pontuação de um indivíduo na escala F e, via de regra, estão relacionadas à integração defeituosa das leis morais em sua estrutura de caráter. Numa linguagem psicanalítica, dir-se-ia que a consciência ou supereu são imperfeitamente integrados no eu, entendido aqui como a unidade das funções de autocontrole e da autoexpressão do indivíduo. Pode-se supor, segundo os autores da pesquisa, que a internalização fracassada do supereu relaciona-se com uma fraqueza do eu, com sua incapacidade de executar a integração necessária do supereu com o eu. Praticamente todas as características mencionadas relacionam-se igualmente com a “fraqueza do eu”: com a anti-intracepção, porque o anti-intraceptivo extremo não ousa refletir sobre fenômenos humanos, na medida em que se encontra inseguro sobre sua própria identidade. A superstição e a estereotipia também se ligam a “hábitos de pensamento proximamente aparentados com o preconceito, na medida em que não podem impedir também a atividade espiritual no âmbito extraceptivo”. Também à característica “pensamento de poder”, a qual se manifesta como demonstrações aparentemente gratuitas de força, “subjaz a hipótese de que a exibição exagerada de robusteza não apenas pode refletir a fraqueza do eu, mas também o peso da exigência posta a ele, isto é, dominar a intensidade de certas necessidades pulsionais, que são reprovadas pela sociedade. No caso da variante “destrutividade e cinismo”, a fraqueza do eu se expressa na aceitação da agressividade extrema sem nenhuma forma de censura moral, o que remete, mais uma vez, à integração defeituosa do super-eu no eu. A variante “sexualidade” subjaz a quase todos os comportamentos associados à alta pontuação na escala F, uma vez que os distúrbios na economia psíquica dos indivíduos associam-se, como sugerido, a descaminhos das pulsões. Tais descaminhos associam-se, por sua vez, à característica da “projetividade”, cujo mecanismo exprime-se em conexão com a agressão autoritária. O autoritário tende a projetar seus impulsos reprimidos em outras pessoas, a fim de prontamente acusá-los: “Projeção é, portanto, um meio de manter pulsões do isso alheias ao eu e pode ser considerada um sinal de incapacidade do eu em preencher suas funções”. Para concluir, pode-se dizer que a atualidade das contribuições de A personalidade autoritária fica patente até mesmo se cotejamos a caracterização feita do “pontuador alto” na escala F com a dos neofascistas brasileiros, inclusive com seu “chefe supremo”: são convencionais, submissos ao líder, agressivos, “extrospectivos”, supersticiosos, identificados com o poder autoritário, destrutivos e “projetivos” – podendo-se reconhecer em todas essas características um subjacente descaminho das pulsões sexuais. Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS TAGS ADORNO, ATAQUES À DEMOCRACIA, AUTORITARISMO, BASES PSÍQUICAS DO AUTORITARISMO, CAPA, FASCISMO, GOVERNO BOLSONARO, PERSONALIDADE AUTORITÁRIA, PSICOLOGIA DO FASCISMO, THEODOR ADORNO, ULTRADIREITA, ULTRADIREITA NO MUNDO RODRIGO DUARTE Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel (Alemanha) e professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG. Autor de "Adorno/Horkheimer e a dialética do esclarecimento" (Zahar) e "Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano" (UFMG) LEIA TAMBÉM: OUTRASPALAVRAS Por que o apoio a Bolsonaro não desmorona Inépcia na pandemia arranha sua imagem, porém seus ataques à democracia não geram grandes abalos. Uma pista: presidente encarna espírito da Casa Grande, ainda arraigado no país, para mobilizar os desiludidos com a política tradicional DIREITA ASSANHADA | por André Pereira Neto, Matthew B. Flynn e Letícia Barbosa OUTRASPALAVRAS Bolsonaro usa o vírus para reinventar tortura O corona é seu comparsa: anônimo, destrutivo e instrumento para rechaçar qualquer ideal de coletividade e impor ao país sua política de terra arrasada. Ele confisca o tempo presente — e nos remete às violências do nosso passado ditatorial DIREITA ASSANHADA | por Fábio Zuker OUTRASPALAVRAS As miragens de que se vale a ultradireita Bolsonaro e Trump ainda não sucumbem, apesar de seus trágicos desastres. Pesquisadores brasileiros sugerem, em livro: ideia do futuro tornou-se tão árida que muitos preferem crer num presente fantasioso, a buscar outra perspectiva DIREITA ASSANHADA | por Mateus Pereira, Valdei Araújo e Mayra Marques OUTRASPALAVRAS Especulações sobre um possível autogolpe Risco existe, mas exigiria complexa trama. Apoio incondicional do alto-comando militar e policial, reagrupar empresariado descontente e tutela dos EUA seriam o começo. Ao projetar essa escalada, poderemos organizar a resistência DIREITA ASSANHADA | por Bruno Lima Rocha OUTRASPALAVRAS Quem tenta ameaçar a democracia no Brasil Setores das PMs, a partir de seus comandos, flertam com o bolsonarismo. Ultradireitistas de “clube de tiro” tentam formar milícias. Presidente instala militares em 3 mil cargos federais. É preciso compreender — e enfrentar — riscos autoritários DIREITA ASSANHADA | por Almir Felitte OUTRASMÍDIAS Miséria pedagógica para um futuro de precários Escolas demitem professores em massa — e usam robôs no ensino à distância. Eliminam-se diálogo e debate, essenciais para formação. Bilionários e bancos tentam dominar o ensino – e criar próxima geração de “empreendedores” DIREITA ASSANHADA | por Blog da Boitempo DEIXE UMA RESPOSTA

A necropolítica brasileira


Brasão da PM: coleção de massacres em nome da elite No símbolo da polícia de SP, pistas de sua real função: as estrelas ostentadas representam desde o massacre de Canudos até repressão a greves e louvor ao golpe. Em sua origem, modelo europeu que visava concentrar poder e dizimar dissidências OUTRASPALAVRAS HISTÓRIA E MEMÓRIA por Almir Felitte Publicado 09/07/2020 às 15:32 - Atualizado 09/07/2020 às 17:02 É comum ouvir que a militarização da polícia brasileira é um resquício da Ditadura. Há motivos justos para que esta afirmação seja feita, por conta da reorganização realizada pelo Decreto 667 de 1969, mas, historicamente, ela não é totalmente correta. Na verdade, o militarismo é um fenômeno antigo nas polícias brasileiras e as estrelas estampadas no brasão da PM paulista até hoje mostram bem os objetivos desta escolha essencialmente política. Antes de falar destes controversos símbolos, vale dizer que a militarização das polícias não foi um processo exclusivamente brasileiro. Formadas entre o fim do século 18 e o início do século 19, na Europa, as instituições policiais modernas adotaram, logo em seu início, a organização tipicamente militar. Curiosamente, a época não apresentava, no continente, nenhum tipo de explosão de taxas de criminalidade que pudesse visivelmente justificar a formação destes aparatos de segurança. Isso porque a estrutura militarizada das polícias que surgiam atenderia a outros interesses: a centralização do poder. É nesse contexto, por exemplo, que se organiza a Royal Irish Constabulary, localizada na Irlanda, mas dirigida pela Metrópole Inglesa. De igual forma, surgem os carabineiros (1814) e a Guardia di Publicca Sicurezza (1853), no Piemonte, que seriam essenciais no processo de unificação da Itália. Se somam a estes exemplos a Guardia Civil espanhola e a Maréchausseé francesa, todas instituições policiais organizadas aos moldes militares, naturalmente centralizadores com seus valores de disciplina e hierarquia, no objetivo de fortalecer o poder central de suas respectivas nações. No Brasil, no contexto de uma recém-proclamada República federativa, foram os estados que reproduziram essa tentativa de concentrar poderes políticos, através do que historiadores chamam de “política dos governadores”. Novo polo econômico do país pelos cafezais e pela nascente indústria, além do protagonismo na “política do café-com-leite”, São Paulo teve um papel central nesta reestruturação policial brasileira, que importou os modelos militarizados da Europa. E a palavra “importação”, aqui, não é força de expressão. Em 1906, o Governo paulista de fato contratou uma Missão do Exército Francês que passaria 8 anos treinando a Força Pública do estado, no que pode ser considerado o embrião da atual Polícia Militar. + Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>> A corporação, porém, considera que o seu nascimento remeta à criação do Corpo Policial Permanente (que, já na República, integraria a Força Pública), em 1831, sendo esta, justamente, a primeira das estrelas estampadas no brasão da atual PM paulista. Já militarizada, contando com a presença de cavalaria, esta polícia teria participações centrais em atividades que pouco tinham a ver com funções de policiamento. É o caso das repressões à Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, em 1838, e à revolta indígena no Campo das Palmas, no Paraná, em 1839, ambas igualmente representadas no atual brasão. A época monárquica ainda renderia mais uma simbólica estrela com a participação dos policiais paulistas na Guerra do Paraguai. Já na República, quando a Força Paulista começa a estruturar-se de forma cada vez mais organizada e militarizada, outras atividades essencialmente políticas renderiam futuras estrelas no brasão. Foi o caso da repressão à Revolução Federalista, em 1893, e a participação em uma das muitas campanhas destinadas a destruir a icônica Canudos de Antônio Conselheiro, em 1897. As próximas estrelas já remeteriam a fatos ocorridos após o processo de militarização total realizado através da Missão Francesa contratada em 1906, como a atuação para a manutenção da ordem durante a Revolta da Chibata liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910, ou as repressões à Sedição do Mato Grosso e aos “18 do Forte de Copacabana”, em 1922, além do combate à Coluna Prestes, no Ceará, em 1926, entre outras. Marcada pelo uso político nas repressões a movimentos revoltosos e pelas atividades que extrapolavam as próprias fronteiras de seu estado, não é à toa que Força Pública viria a ser conhecida como “Pequeno Exército Paulista”. Formado no mesmo contexto em que São Paulo passava por um intenso processo de urbanização e industrialização, com as camadas trabalhadoras cada vez mais organizadas e influenciadas por ideais anarquistas e socialistas, não tardaria para que este pequeno exército fosse massivamente utilizado também contra os movimentos de proletários. E assim o foi durante as primeiras décadas do século 20, culminando na repressão à grande Greve Geral de 1917, que também seria eternizada em mais uma estrela no brasão da PM paulista. A participação protagonista da polícia de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, a repressão à Intentona Comunista de 1935 e um destacamento direcionado à Itália durante a 2ª Guerra Mundial completam a lista, precedendo a última e talvez mais simbólica das estrelas: a que faz menção ao Golpe Militar de 1964, que instaurou uma longa Ditadura no país, chamada de “Revolução de Março” pelo Decreto 17.069 de 1981 que a inseriu, assinado pelo então Governador Paulo Maluf. Totalizando 18 estrelas, a Polícia Militar paulista ostenta como atos heroicos e marcos históricos da corporação a atuação em atividades de clara repressão ao próprio povo. Cantando “vitórias”, o aparato policial de São Paulo construiu a sua história mais à semelhança de um Exército que luta para eliminar inimigos externos do que aos moldes de uma instituição policial destinada a lidar com cidadãos brasileiros em seu dia a dia. Não é estranho que esta instituição insistentemente militarizada, ainda hoje, olhe para estes mesmos cidadãos como inimigos. A História demonstra bem como a militarização é incompatível com a democracia quando aplicada nas atividades internas de um país. E é por essas lições da História que a história do “pequeno exército paulista” e seus irmãos estaduais precisa chegar ao fim. Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS TAGS BRASÃO DA PM, CANUDOS, ELITES BRASILEIRAS, FORÇA PÚBLICA, GOLPE DE 1964, GREVE DE 1917, GUERRA DO PARAGUAI, GUERRA DOS FARRAPOS, MISSO DO EXÉRCITO FRANCÊS, PEQUENO EXÉRCITO PAULISTA, PM PAULISTA, PM., POLÍCIA, POLÍTICA DO CAFÉ COM LEITE, REPRESSÃO A INDÍGENAS, REVOLTA DA CHIBATA ALMIR FELITTE Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública LEIA TAMBÉM: OUTRASMÍDIAS O Brasil também teve zoológicos humanos Inspirado nos exemplos da Europa, onde tais “espetáculos” eram comuns, D. Pedro II promoveu, em 1882, “exposição” de “selvagens” botocudos. Episódio, que merece ser conhecido em detalhe, revela subcolonialismo das elites nacionais HISTÓRIA E MEMÓRIA | por El País Brasil OUTRASPALAVRAS Aloysio Biondi e seu direito sagrado de analisar Jornalista ousado, conhecido por afiadas previsões econômicas, faria 84 anos. 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quarta-feira, 8 de julho de 2020

A necropolítica de bolsonaro


O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/ 25/09/19 por Mariana Ferrari Compartilhe este conteúdo: A pesquisadora Rosane Borges explica como o conceito de necropolítica se relaciona com racismo, a ideia da eliminação de um inimigo e as favelas Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. O ensaio virou livro e chegou ao Brasil em 2018, publicado pela editora N-1. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro qualquer violência torna-se possível, de agressões até morte. Aqui, o termo vem sendo usado para falar de políticas de segurança pública, como no caso de Ágatha, que, de acordo com testemunhas e familiares, morreu depois de ser atingida por um disparo de fuzil da Polícia Militar do Rio de Janeiro, estado comandado por Wilson Witzel, que, no discurso e na prática, tem adotado uma conduta de combate e violência na área da segurança. “A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos rincões do país. Nossa polícia substitui o capitão do mato”, analisa Rosane Borges, jornalista, professora e pesquisadora do Colabor (Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Criações Colaborativas e Linguagens Digitais) da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), em entrevista à Ponte. Para ela, discutir necropolítica e segurança pública brasileira é entender que os lugares subalternizados com licença para matar “têm endereço e densidade negra”. “A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite”, afirma. Confira a entrevista: Ponte – O que é necropolítica e como Achille Mbembe chegou até ela? Rosane – A necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E o Achille Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo. Uma das inspirações dele é o Michel Focault, com a biopolítica. Ele vai trabalhar com o conceito inicial, não contrapondo exatamente, mas dizendo: “a materialização dessa política se dá pela expressão da morte”. O Estado não é para matar ninguém, ele é para cuidar. Que a própria política não é o lugar da razão, é o lugar da desrazão. E isso vai ter um desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que se divide entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas comunidades do Rio de Janeiro, nas periferias das grandes cidades brasileiras. Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que são reflexíveis e tem desdobramentos que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança. Ponte – Segundo o autor, os “mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte” e a “eliminação dos inimigos do Estado” vem desde os tempos do imperialismo colonial, do período da escravidão. Ou seja, nada mudou de lá pra cá? Rosane – Nada mudou ou, na verdade, pouca coisa. A gente não pode dizer que nada mudou, mas a gente tem uma concepção de fundo que permanece. Se a gente perceber nossa polícia, ela tem uma vocação empreguista, porque ela substitui o capitão do mato. O capitão do mato tinha a função de perseguir os fugitivos e entregar aos seus “donos”. Com o fim do sistema da escravidão oficializada, a gente tem uma polícia que nasce com essa vocação empreguista. E esse empreguismo e essa perseguição se dá a partir de questões sociais, raciais, de gênero e de território. A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite. Ela não invade territórios de elite. Essa é a vocação empreguista e persecutória. É a humanidade subalterna que ela invade, que ela viola. Primeiro mata e depois pergunta quem é. Rosane Borges | Foto: arquivo pessoal Ponte – Como neopolítica e racismo se relacionam? Rosane – A política de morte, ou como o próprio Achille Mbembe vai dizer, a necropolítica adota tipografias da crueldade. São os lugares em que se tem licença para matar. Lugares subalternizados, com uma densidade negra. Então, quando a gente junta necropolítica com raça e com racismo, a gente vai ver que essa política da morte tem um endereço. Por que se fala em genocídio da juventude negra brasileira? Porque se mata negros e os números são exorbitantes. Ponte – Como a necropolítica está sendo aplicada no Brasil e, principalmente, no governo Witzel? Rosane – Pela militarização da força. A militarização se tornou agora uma panaceia para se combater “todo e qualquer tipo de violência e de criminalidade”. Muita gente vem discutindo como a Operação de Paz liderada pelo Brasil no Haiti construiu um paradigma. Não é a toa que se você pegar os generais [que passaram pela missão] eles estão no governo Bolsonaro. A história das guerras de paz da ONU começam na Guerra Fria e, por isso, são chamadas de guerra de paz. Elas eram orientadas por uma presença mais passiva e menos uso da força. Os conflitos de Ruanda e Bósnia deixaram a ONU em uma situação muito difícil, porque em Ruanda tiveram um milhão de mortos e a ONU não fez nada, na Bósnia a mesma coisa. Quer dizer, o genocídio da década de 90 mudou muito as missões de paz da ONU. A ONU passa a adotar uma conduta mais agressiva justamente quando o Brasil assume a liderança da missão da ONU no Haiti. E essa aplicação fez que, do ponto de vista interno da criminalidade, também fosse adotado uma nova lógica. Uma postura das Forças Armadas que acaba sendo usada no dia a dia da polícia, o que não surte efeito para a criminalidade, porque morre todo mundo. Morre inocente. Morre policiais. Morre civis. E aquilo que era para se combater não se combate. Ponte – E aí o Estado não está cumprindo seu papel por definição… Rosane – Como bem disse Foucalt: o Estado não é para operar a morte, é para cuidar da vida de todos. Quando essa política de morte é oficializada, significa dizer que o Estado também faliu na sua função. É o papel do Estado prover as vidas, de que elas realmente serão vividas. Estado não é para matar os seus cidadãos. Ponte – Mbembe fala em o “estado de exceção” e “estado de sítio” como “base normativa do direito de matar” para se referir ao nazismo e ao território palestino. Pensando em Brasil, podemos fazer essa leitura para falar sobre as mortes causadas pela polícia que acontecem em territórios periféricos das cidades? Rosane – Sim, inclusive Achille Mbembe vai dizer que se fala muito dos campos de concentração do século 20. Ele vai fazer um recuo histórico e dizer: “olha, essas experiências do estado de exceção já estavam na época da escravidão”. E ele vai estender e dizer que isso acontece hoje, na nossa contemporaneidade. Isso porque tem os seus lugares privilegiados em que a necropolítica se exerce. No Brasil, a gente sabe onde ela se exerce: nas periferias das grandes metrópoles, nos conflitos agrários dos rincões do Brasil, nos morros, nas favelas. Ponte – Mbembe fala sobre “política como o trabalho da morte”. O que isso significa? Rosane – É uma política em de que se abre mão do que seria o poder conciliatório do Estado. O Estado é soberano quando decide sobre a vida e a morte de seus cidadãos. Se fala muito em soberania, o Bolsonaro fala de soberania quando fala da Amazônia, mas não se fala de soberania em relação aos Estados Unidos. Aquilo não tem nada de soberano. O que é ser soberano é quando você tem o poder de decidir a morte. Então, a necropolítica é uma forma de os Estados exercerem a soberania pela decisão de escolher quem deve morrer e quem deve viver na sociedade. Ponte – Qual a relação que as expressões “parem de nos matar”, “vidas negras importam”, “a bala perdida sempre encontram corpos negros”, muito comuns em protestos contra a violência policial, tem com o termo necropolítica? Rosane – Quando pessoas levantam bandeiras e cartazes com esse enunciado elas estão dizendo: “Olha como essa política da morte se materializa, olha como o Estado está sendo ineficaz em combater a criminalidade e promover a Justiça, em ser um Estado que protege os seus cidadãos e não os coloca em risco. Inclusive em risco de morte”. Esses cartazes, como agora na morte da menina Ágatha, apontam, primeiro, para essa falência do Estado em combater o que ele deveria combater e promover, de fato, igualdade e justiça. Famílias negras e pobres estão sentido isso na pele.Em Salvador tem um protesto que chama “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Essa é uma preocupação que acompanha famílias, especialmente negras, que moram nesses lugares. As chamadas tipografias da crueldade. Quando pegamos os índices, por exemplo, de morte de jovens brancos de classe média, em cidades como São Paulo, vão aparecer acidente de carro e fatalidades. Mas a incidência de mortes por policiais se dá com o jovem negro da periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte em que o Estado é o agente, o sujeito. Ele é mais do que o responsável, ele é o culpado. Ponte – O vice presidente general Mourão declarou à imprensa, em vídeo que circula nas redes sociais, que o Estado deve ter o monopólio da violência. Essa declaração é um exemplo de necropolítica, o uso da polícia como “máquina de guerra”, termo usado pelo autor? Rosane – A excludente de ilicitude do pacote anticrime, que não tem nada de anticrime, é um pouco disso. E o que as pessoas estão dizendo? É preciso que se combata. Porque aí não precisa falar em justiça, em polícia. Já que tem que ser assim, então, que todo mundo saia por aí no bangue-bangue, matando todo mundo. Se a gente é a favor da lei, não se pode achar que o correto são os policiais matando por aí. Foram 16 crianças baleadas no Rio de Janeiro e cinco morreram só neste ano. É inadmissível. O número de policiais mortos no Rio de Janeiro é uma coisa absurda. Eles também estão morrendo. Quanto menos armas, menos criminalidade, quanto menos, mortes menos criminalidade. É assim que o Estado tem que trabalhar. Ponte – Racismo, capitalismo e necropolítica são inseparáveis? Sustentavam as mortes do passado e sustentam agora o que o autor chama de “guerras contemporâneas”? Rosane – Sim, um sustenta o outro. Em uma análise mais estritamente marxista temos o seguinte: aquilo que o capitalismo acha que não serve mais ele abate, porque são corpos negros. A massa sobrante do mercado de trabalho, o que se faz? O que se faz com o contingente de pessoas que não serão absorvidas pela novas competências técnicas e tecnológicas do capitalismo? Se mate, se exclui. Obviamente que essa mesma massa sobrante são corpos negros, mulheres negras, fundamentais para a acumulação de capital. Corpos que foram escravizados e hoje eles não interessam mais para o capital. A análise mais liberal, financeira, está chamando essas pessoas de desalentadas. São pessoas que estão vivendo nas franjas do sistema social, ficando marginalizadas. Nesse processo de marginalização, a gente cria linhas divisórias de nós e outros. E esses outros podem ser alvo de tudo. Inclusive da morte. Ponte – Algumas pessoas tratam a atual situação do Rio de Janeiro como uma guerra. Essa comparação é equivalente? Rosane – Eu acho que sim, porque se você trabalha com a ideia de amigo e inimigo, e que você tem que abater o inimigo. Você só trabalha nessa perspectiva se você trabalha com guerra. É a mesma coisa a ideia de guerra às drogas. Você não guerreia com coisas, com objetos, você guerreia com pessoas. O termo “guerras às drogas” é infeliz ao mesmo tempo que parece ingênuo, revela que se trata de uma guerra contra pessoas. Ponte – Como a necropolítica se aplica na questão poder do Estado, antes exercido pelas colônias? Rosane – Do ponto de vista jurídico não somos mais colônias, apesar de nunca termos deixado de ser no ponto de vista político. O presidente fala em ser soberano, que ninguém pode mandar na Amazônia, mas antes de ele ter esse discurso ele foi, em uma perspectiva, colonizado pelos Estados Unidos. O Brasil está escolhendo ser colônia. A colônia tinha uma expropriação do corpo, o corpo que era escravizado, um corpo moeda, objeto. O que permanece é o corpo que é matável. Não é mais estatuto jurídico do escravizado, mas digamos que essa escravização se dá de outras formas. A partir de imaginários, de políticas que definem o normal e o desviante, o bem e o mal, o belo e o feio. A gente vai vendo essas hierarquias se mantendo, o fantasma da escravidão e da colônia é uma presença muito forte. Inclusive orienta políticas contemporâneas. Eu uso sempre o exemplo da violência obstétrica. Uma das modalidades da violência obstétrica é que quando falta anestesia nos hospitais públicos qual é a ordem? Que não apliquem procedimentos anestésicos em mulheres negras, porque se supõe que mulheres negras resistam mais a dor. Da onde que vem essa informação? Da colônia, da escravidão. Por mais que essa regra não seja escrita, ela orienta a política de Estado, porque isso acontece no SUS. É o que se chama de conjunto das regras não escritas, que está no nosso imaginário. Não há comoção porque esse corpo já tem escrito a possibilidade de ser abatido. A gente não vai para a Avenida Paulista, não vai para as orlas de Copacabana. Ponte – Como você avaliou o discurso de Jair Bolsonaro na ONU nesta terça-feira? Rosane – Todo mundo está dizendo que é vergonhoso, mas é muito violento. Um presidente que diz que tem que proteger as famílias e as nossas crianças da “ideologia de gênero”, mas é o mesmo presidente que diz que não tem que proteger a família da violência. Quer dizer, a Ágatha morreu na sexta-feira e o presidente vai para a ONU dizer que tem que proteger as crianças da perversão sexual? É violento, é desrespeitoso com os pais daquela criança. Ou seja, ele não respeita família nenhuma. Não se solidarizar nesse momento com o que é a tragédia da morte da Ágatha é de uma violência extrema. Comentários https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/