Brasão da PM: coleção de massacres em nome da elite
No símbolo da polícia de SP, pistas de sua real função: as estrelas ostentadas representam desde o massacre de Canudos até repressão a greves e louvor ao golpe. Em sua origem, modelo europeu que visava concentrar poder e dizimar dissidências
OUTRASPALAVRAS
HISTÓRIA E MEMÓRIA
por Almir Felitte
Publicado 09/07/2020 às 15:32 - Atualizado 09/07/2020 às 17:02
É comum ouvir que a militarização da polícia brasileira é um resquício da Ditadura. Há motivos justos para que esta afirmação seja feita, por conta da reorganização realizada pelo Decreto 667 de 1969, mas, historicamente, ela não é totalmente correta. Na verdade, o militarismo é um fenômeno antigo nas polícias brasileiras e as estrelas estampadas no brasão da PM paulista até hoje mostram bem os objetivos desta escolha essencialmente política.
Antes de falar destes controversos símbolos, vale dizer que a militarização das polícias não foi um processo exclusivamente brasileiro. Formadas entre o fim do século 18 e o início do século 19, na Europa, as instituições policiais modernas adotaram, logo em seu início, a organização tipicamente militar. Curiosamente, a época não apresentava, no continente, nenhum tipo de explosão de taxas de criminalidade que pudesse visivelmente justificar a formação destes aparatos de segurança.
Isso porque a estrutura militarizada das polícias que surgiam atenderia a outros interesses: a centralização do poder. É nesse contexto, por exemplo, que se organiza a Royal Irish Constabulary, localizada na Irlanda, mas dirigida pela Metrópole Inglesa. De igual forma, surgem os carabineiros (1814) e a Guardia di Publicca Sicurezza (1853), no Piemonte, que seriam essenciais no processo de unificação da Itália. Se somam a estes exemplos a Guardia Civil espanhola e a Maréchausseé francesa, todas instituições policiais organizadas aos moldes militares, naturalmente centralizadores com seus valores de disciplina e hierarquia, no objetivo de fortalecer o poder central de suas respectivas nações.
No Brasil, no contexto de uma recém-proclamada República federativa, foram os estados que reproduziram essa tentativa de concentrar poderes políticos, através do que historiadores chamam de “política dos governadores”. Novo polo econômico do país pelos cafezais e pela nascente indústria, além do protagonismo na “política do café-com-leite”, São Paulo teve um papel central nesta reestruturação policial brasileira, que importou os modelos militarizados da Europa. E a palavra “importação”, aqui, não é força de expressão. Em 1906, o Governo paulista de fato contratou uma Missão do Exército Francês que passaria 8 anos treinando a Força Pública do estado, no que pode ser considerado o embrião da atual Polícia Militar.
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A corporação, porém, considera que o seu nascimento remeta à criação do Corpo Policial Permanente (que, já na República, integraria a Força Pública), em 1831, sendo esta, justamente, a primeira das estrelas estampadas no brasão da atual PM paulista. Já militarizada, contando com a presença de cavalaria, esta polícia teria participações centrais em atividades que pouco tinham a ver com funções de policiamento. É o caso das repressões à Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, em 1838, e à revolta indígena no Campo das Palmas, no Paraná, em 1839, ambas igualmente representadas no atual brasão. A época monárquica ainda renderia mais uma simbólica estrela com a participação dos policiais paulistas na Guerra do Paraguai.
Já na República, quando a Força Paulista começa a estruturar-se de forma cada vez mais organizada e militarizada, outras atividades essencialmente políticas renderiam futuras estrelas no brasão. Foi o caso da repressão à Revolução Federalista, em 1893, e a participação em uma das muitas campanhas destinadas a destruir a icônica Canudos de Antônio Conselheiro, em 1897.
As próximas estrelas já remeteriam a fatos ocorridos após o processo de militarização total realizado através da Missão Francesa contratada em 1906, como a atuação para a manutenção da ordem durante a Revolta da Chibata liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910, ou as repressões à Sedição do Mato Grosso e aos “18 do Forte de Copacabana”, em 1922, além do combate à Coluna Prestes, no Ceará, em 1926, entre outras. Marcada pelo uso político nas repressões a movimentos revoltosos e pelas atividades que extrapolavam as próprias fronteiras de seu estado, não é à toa que Força Pública viria a ser conhecida como “Pequeno Exército Paulista”.
Formado no mesmo contexto em que São Paulo passava por um intenso processo de urbanização e industrialização, com as camadas trabalhadoras cada vez mais organizadas e influenciadas por ideais anarquistas e socialistas, não tardaria para que este pequeno exército fosse massivamente utilizado também contra os movimentos de proletários. E assim o foi durante as primeiras décadas do século 20, culminando na repressão à grande Greve Geral de 1917, que também seria eternizada em mais uma estrela no brasão da PM paulista.
A participação protagonista da polícia de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, a repressão à Intentona Comunista de 1935 e um destacamento direcionado à Itália durante a 2ª Guerra Mundial completam a lista, precedendo a última e talvez mais simbólica das estrelas: a que faz menção ao Golpe Militar de 1964, que instaurou uma longa Ditadura no país, chamada de “Revolução de Março” pelo Decreto 17.069 de 1981 que a inseriu, assinado pelo então Governador Paulo Maluf.
Totalizando 18 estrelas, a Polícia Militar paulista ostenta como atos heroicos e marcos históricos da corporação a atuação em atividades de clara repressão ao próprio povo. Cantando “vitórias”, o aparato policial de São Paulo construiu a sua história mais à semelhança de um Exército que luta para eliminar inimigos externos do que aos moldes de uma instituição policial destinada a lidar com cidadãos brasileiros em seu dia a dia.
Não é estranho que esta instituição insistentemente militarizada, ainda hoje, olhe para estes mesmos cidadãos como inimigos. A História demonstra bem como a militarização é incompatível com a democracia quando aplicada nas atividades internas de um país. E é por essas lições da História que a história do “pequeno exército paulista” e seus irmãos estaduais precisa chegar ao fim.
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ALMIR FELITTE
Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública
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