sexta-feira, 10 de julho de 2020

A necropolítica brasileira


Brasão da PM: coleção de massacres em nome da elite No símbolo da polícia de SP, pistas de sua real função: as estrelas ostentadas representam desde o massacre de Canudos até repressão a greves e louvor ao golpe. Em sua origem, modelo europeu que visava concentrar poder e dizimar dissidências OUTRASPALAVRAS HISTÓRIA E MEMÓRIA por Almir Felitte Publicado 09/07/2020 às 15:32 - Atualizado 09/07/2020 às 17:02 É comum ouvir que a militarização da polícia brasileira é um resquício da Ditadura. Há motivos justos para que esta afirmação seja feita, por conta da reorganização realizada pelo Decreto 667 de 1969, mas, historicamente, ela não é totalmente correta. Na verdade, o militarismo é um fenômeno antigo nas polícias brasileiras e as estrelas estampadas no brasão da PM paulista até hoje mostram bem os objetivos desta escolha essencialmente política. Antes de falar destes controversos símbolos, vale dizer que a militarização das polícias não foi um processo exclusivamente brasileiro. Formadas entre o fim do século 18 e o início do século 19, na Europa, as instituições policiais modernas adotaram, logo em seu início, a organização tipicamente militar. Curiosamente, a época não apresentava, no continente, nenhum tipo de explosão de taxas de criminalidade que pudesse visivelmente justificar a formação destes aparatos de segurança. Isso porque a estrutura militarizada das polícias que surgiam atenderia a outros interesses: a centralização do poder. É nesse contexto, por exemplo, que se organiza a Royal Irish Constabulary, localizada na Irlanda, mas dirigida pela Metrópole Inglesa. De igual forma, surgem os carabineiros (1814) e a Guardia di Publicca Sicurezza (1853), no Piemonte, que seriam essenciais no processo de unificação da Itália. Se somam a estes exemplos a Guardia Civil espanhola e a Maréchausseé francesa, todas instituições policiais organizadas aos moldes militares, naturalmente centralizadores com seus valores de disciplina e hierarquia, no objetivo de fortalecer o poder central de suas respectivas nações. No Brasil, no contexto de uma recém-proclamada República federativa, foram os estados que reproduziram essa tentativa de concentrar poderes políticos, através do que historiadores chamam de “política dos governadores”. Novo polo econômico do país pelos cafezais e pela nascente indústria, além do protagonismo na “política do café-com-leite”, São Paulo teve um papel central nesta reestruturação policial brasileira, que importou os modelos militarizados da Europa. E a palavra “importação”, aqui, não é força de expressão. Em 1906, o Governo paulista de fato contratou uma Missão do Exército Francês que passaria 8 anos treinando a Força Pública do estado, no que pode ser considerado o embrião da atual Polícia Militar. + Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>> A corporação, porém, considera que o seu nascimento remeta à criação do Corpo Policial Permanente (que, já na República, integraria a Força Pública), em 1831, sendo esta, justamente, a primeira das estrelas estampadas no brasão da atual PM paulista. Já militarizada, contando com a presença de cavalaria, esta polícia teria participações centrais em atividades que pouco tinham a ver com funções de policiamento. É o caso das repressões à Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, em 1838, e à revolta indígena no Campo das Palmas, no Paraná, em 1839, ambas igualmente representadas no atual brasão. A época monárquica ainda renderia mais uma simbólica estrela com a participação dos policiais paulistas na Guerra do Paraguai. Já na República, quando a Força Paulista começa a estruturar-se de forma cada vez mais organizada e militarizada, outras atividades essencialmente políticas renderiam futuras estrelas no brasão. Foi o caso da repressão à Revolução Federalista, em 1893, e a participação em uma das muitas campanhas destinadas a destruir a icônica Canudos de Antônio Conselheiro, em 1897. As próximas estrelas já remeteriam a fatos ocorridos após o processo de militarização total realizado através da Missão Francesa contratada em 1906, como a atuação para a manutenção da ordem durante a Revolta da Chibata liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910, ou as repressões à Sedição do Mato Grosso e aos “18 do Forte de Copacabana”, em 1922, além do combate à Coluna Prestes, no Ceará, em 1926, entre outras. Marcada pelo uso político nas repressões a movimentos revoltosos e pelas atividades que extrapolavam as próprias fronteiras de seu estado, não é à toa que Força Pública viria a ser conhecida como “Pequeno Exército Paulista”. Formado no mesmo contexto em que São Paulo passava por um intenso processo de urbanização e industrialização, com as camadas trabalhadoras cada vez mais organizadas e influenciadas por ideais anarquistas e socialistas, não tardaria para que este pequeno exército fosse massivamente utilizado também contra os movimentos de proletários. E assim o foi durante as primeiras décadas do século 20, culminando na repressão à grande Greve Geral de 1917, que também seria eternizada em mais uma estrela no brasão da PM paulista. A participação protagonista da polícia de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, a repressão à Intentona Comunista de 1935 e um destacamento direcionado à Itália durante a 2ª Guerra Mundial completam a lista, precedendo a última e talvez mais simbólica das estrelas: a que faz menção ao Golpe Militar de 1964, que instaurou uma longa Ditadura no país, chamada de “Revolução de Março” pelo Decreto 17.069 de 1981 que a inseriu, assinado pelo então Governador Paulo Maluf. Totalizando 18 estrelas, a Polícia Militar paulista ostenta como atos heroicos e marcos históricos da corporação a atuação em atividades de clara repressão ao próprio povo. Cantando “vitórias”, o aparato policial de São Paulo construiu a sua história mais à semelhança de um Exército que luta para eliminar inimigos externos do que aos moldes de uma instituição policial destinada a lidar com cidadãos brasileiros em seu dia a dia. Não é estranho que esta instituição insistentemente militarizada, ainda hoje, olhe para estes mesmos cidadãos como inimigos. A História demonstra bem como a militarização é incompatível com a democracia quando aplicada nas atividades internas de um país. E é por essas lições da História que a história do “pequeno exército paulista” e seus irmãos estaduais precisa chegar ao fim. Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS TAGS BRASÃO DA PM, CANUDOS, ELITES BRASILEIRAS, FORÇA PÚBLICA, GOLPE DE 1964, GREVE DE 1917, GUERRA DO PARAGUAI, GUERRA DOS FARRAPOS, MISSO DO EXÉRCITO FRANCÊS, PEQUENO EXÉRCITO PAULISTA, PM PAULISTA, PM., POLÍCIA, POLÍTICA DO CAFÉ COM LEITE, REPRESSÃO A INDÍGENAS, REVOLTA DA CHIBATA ALMIR FELITTE Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública LEIA TAMBÉM: OUTRASMÍDIAS O Brasil também teve zoológicos humanos Inspirado nos exemplos da Europa, onde tais “espetáculos” eram comuns, D. Pedro II promoveu, em 1882, “exposição” de “selvagens” botocudos. Episódio, que merece ser conhecido em detalhe, revela subcolonialismo das elites nacionais HISTÓRIA E MEMÓRIA | por El País Brasil OUTRASPALAVRAS Aloysio Biondi e seu direito sagrado de analisar Jornalista ousado, conhecido por afiadas previsões econômicas, faria 84 anos. 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