Há hoje um amplo consenso em torno da gravidade
do processo das alterações climáticas, fruto da modificação da estrutura
química da atmosfera pelo Homem, pelo incremento da produção de gases
com efeito de estufa, conforme evidenciam as conclusões do Quinto
Relatório do Grupo II do Painel Intergovernamental para as Alterações
Climáticas, da Organização das Nações Unidas, realizado entre 2013 e
2014. A velocidade e magnitude das mudanças climáticas em curso excedem a
capacidade de adaptação dos organismos vivos e ameaçam a nossa
existência interdependente. Alguns cientistas falam de uma nova era
geológica, o Antropoceno, caracterizada pelo poder da acção humana
alterar o frágil equilíbrio da rede de sistemas da estrutura do Planeta
[Crutzen, P.J. e Stoermer, E.F. (2000) “The Antropocene”, Global Change
Newsletter. 41, pp 17-18, citado por Viriato Soromenho-Marques no artigo
“Entre a Crise e o Colapso. O Desafio Ontológico das Alterações
Climáticas”, Dezembro de 2009].
Estudos científicos recentes demonstram que o aquecimento global da
atmosfera e dos oceanos aumenta a uma velocidade maior do que se
supunha; crescem as concentrações de CO2 e de metano, os mais
importantes gases com efeito de estufa; o degelo polar continua; o nível
das águas dos mares subiu; a erosão das zonas costeiras, a perda de
biodiversidade e da floresta tropical são factos indesmentíveis, bem
como o extermínio da vida nos oceanos; a maioria das mudanças observadas
desde os anos 50 não tem precedentes na História da humanidade, tendo
as Nações Unidas declarado que enfrentamos a maior catástrofe planetária
jamais vista (The World Economic and Social Survey 2011: The Great
Green Technological Transformation);
Na verdade, a demanda da satisfação das necessidades básicas de uma
população em crescimento, dentro da finitude dos recursos da Terra,
torna necessário criar um modelo de produção e de consumo mais
sustentável, pois o actual coloca-nos em rota de colisão com a Natureza.
Desde a Revolução Industrial, a Natureza tem sido sempre tratada
apenas como uma mercadoria (commodity) existente para benefício das
pessoas no interior de uma economia de mercado e os problemas ambientais
têm sido considerados passíveis de ser solucionados fragmentadamente e
mediante o recurso à tecnociência. Contudo, tais sustentações devem ser
reavaliadas e alteradas.
O paradigma mecanicista e antropocêntrico, que regula o modo de
fruição da Natureza - concebida como objecto de direitos - , provou ser
inadequado para a protecção efectiva do ambiente e dos recursos naturais
e para alcançar a sustentabilidade, permitindo, ao invés, a sua
continuada degradação, antevendo-se sérias repercussões se nada for
feito.
Viver em harmonia com a Natureza é essencial à vida. A crise global
do ambiente é o resultado da total desconsideração dos custos ambientais
na tomada de decisões políticas e económicas.
Assim:
1) Considerando que todos têm direito a um ambiente de vida humano,
sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender; que é tarefa
fundamental do Estado defender a natureza e o ambiente e preservar os
recursos naturais, bem como promover a efectivação dos direitos
económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação
das estruturas económicas e sociais (arts. 66.º e 9.º als. d) e e) da
Constituição da República Portuguesa, doravante CRP);
2) Considerando que a integração das exigências de protecção
ambiental na definição e execução das demais políticas globais e
sectoriais é essencial para a redução da pressão sobre o ambiente, sendo
expressão do princípio da transversalidade e da integração, com
acolhimento na al. a) do art. 4.º da Lei de Bases do Ambiente, aprovada
pela Lei n.º 19/2014, de 14 de Abril (doravante, LBA), constituindo
também uma incumbência do Estado com consagração constitucional, na al.
f) do art. 66.º da CRP;
3) Considerando que o princípio do conhecimento e da ciência,
acolhido também no mesmo preceito da LBA, obriga a que o diagnóstico e
as soluções dos problemas ambientais resultem da convergência dos
saberes sociais com os conhecimentos científicos e tecnológicos
provenientes de fontes fidedignas e isentas (al. c) do art. 4.º);
4) Considerando a manifesta inadequação do acervo normativo
ambiental vigente para fazer face à crise global do ambiente que reclama
uma nova abordagem holística, sistémica e inclusiva, promotora da
protecção efectiva da Natureza, da qual são parte integrante todos os
seres, humanos e não humanos, assente na visão da Terra como um
organismo vivo (Gaia), e não como um “conglomerado de matéria inerte (os
continentes) e água (os oceanos, lagos e rios)”, “um todo relacional,
inter-retro-conectado com tudo e maior que a soma das suas partes” nas
expressões significativas de Leonardo Boff;
5) Considerando que a actuação pública em matéria de ambiente se
encontra subordinada aos princípios do desenvolvimento sustentável e da
responsabilidade intra e inter-geracional, visando a garantia da
preservação dos recursos naturais para a presente e futuras gerações
(art. 3.º, als. a) e b) da LBA);
6) Considerando que a degradação em curso dos componentes ambientais
naturais que são objecto da política de ambiente (o ar, a água e o mar,
a biodiversidade, o solo, o sub-solo, e a paisagem, de acordo com o
estabelecido no art. 10.º da LBA) reclama dos poderes públicos novas
soluções protectoras da sua integridade, de que dependem todos os seres
para viver;
7) Considerando que o ordenamento jurídico ambiental vigente assenta
numa concepção da natureza como objecto de direitos de propriedade
(pública ou privada), regulando prima facie o seu uso ou fruição, ainda
que lesivo da sua integridade, e que as alterações climáticas revelam o
fracasso desta abordagem;
8) Considerando, ainda, que a União Europeia concordou em estimular a
transição para uma economia verde, num contexto de desenvolvimento
sustentável (Conclusões do Conselho de 11 de Junho de 2012);
Almejando instituir uma verdadeira Ética Ecológica ou Ética da Terra
[expressão cunhada por Aldo Leopold], que torne possível a efectivação
dos direitos ambientais, torna-se necessário que o ordenamento jurídico
reconheça o valor intrínseco da Natureza e dos componentes ambientais
naturais e que actue em conformidade, dando corpo a um novo paradigma
assente no reconhecimento da Natureza como fonte de vida e da vida e,
como tal, sujeito de direitos intrínsecos próprios merecedores de uma
tutela jurídica robusta, garante da observância de um acervo de deveres
legais de cuidado e respeito cuja imperatividade se imponha a todos os
demais sujeitos de direitos;
Considerando também que esta visão já foi traduzida normativamente
em diversos países, como o Equador, a Bolívia, o México e a Índia,
apenas para citar alguns;
Considerando que existe uma convergência entre aqueles que defendem a
necessidade do reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos e
aqueles que sustentam a urgência de dar expressão legal mais estrita e
positiva aos nossos deveres para com ela, pois em ambos os casos a
Natureza é compreendida como conditio sine qua non para que seja
alcançada a sustentabilidade a longo prazo do ambiente e dos
ecossistemas que constituem o suporte das actividades humanas, incluindo
as actividades económicas, e a harmonia entre a humanidade, presente e
futura, e o mundo natural, de que somos parte intrínseca;
Considerando que a consagração dos direitos da Natureza, ou dos
nossos inadiáveis deveres para com ela, na ordem jurídica interna, mais
não é do que a concretização dos princípios da Carta da Terra, fundada
nos mais recentes e consolidados conhecimentos da ciência contemporânea,
nos ensinamentos dos povos indígenas, na sabedoria perene das grandes
tradições religiosas e filosóficas do mundo e nas declarações e
relatórios das conferências Mundiais das Nações Unidas realizadas em
1972, 1992, 2002 e 2012, bases do movimento ético mundial dirigido à
construção de um mundo sustentável baseado no respeito pela Natureza e
pelos direitos humanos universais, fundamentos de uma cultura da
fraternidade e da paz. [www.EarthCharter.org];
E na senda do exemplo pioneiro do Equador, que acolheu, no seu texto
constitucional, em 2008, o denominado direito da Natureza, reconhecendo
a Natureza como sujeito de direitos;
As cidadãs e os cidadãos abaixo assinados vêm peticionar à Assembleia da República o seguinte:
Que adopte medidas legislativas no sentido de reconhecer que a cabal
defesa dos direitos humanos fundamentais, em especial o pilar do
direito à vida, não só não é incompatível como, pelo contrário, exige o
reconhecimento de direitos subjectivos à Natureza e aos componentes
ambientais naturais, assente no seu valor intrínseco e não meramente
utilitário, consagrando, nomeadamente, o direito ao respeito pela sua
vida e integridade, que inclui o direito à manutenção e regeneração dos
seus ciclos vitais ou ecossistemas, estrutura, funções e processos
evolutivos; que legisle no sentido de investir o Estado e todos os
cidadãos do dever de promover o respeito por todos os elementos
integrantes de qualquer ecossistema, onde se incluem todos os seres
vivos, dotados igualmente de valor intrínseco; que estabeleça o direito a
que qualquer pessoa ou entidade exija de qualquer autoridade pública,
nomeadamente dos Tribunais, a defesa dos direitos subjectivos da
Natureza e de todos os seus componentes, tal como previstos na LBA,
convocando todos à adopção de um código de conduta universal que não
comprometa a integridade dos ecossistemas e das espécies com que
coexistimos.
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