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Entrevista especial com Andrea Fumagalli
UNISINOS - Sexta, 18 de setembro de 2015
Quando
“hierarquias do mercado ditarem escolhas da política econômica e o
próprio mercado estabelecer as regras das relações humano-sociais, a
democracia, entendida como processo de decisão resultante de um
princípio dialético, está morta”, adverte economista italiano
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Foto: direitoagesn.blogspot.com |
“O pensamento neoliberal fundamenta-se
no conceito de neutralidade da moeda e na suposição da perfeita
competição nos mercados financeiros. Na verdade, os mercados financeiros
não são imparciais e neutros, mas expressão de uma hierarquia bem
precisa: longe de serem concorrenciais, escondem uma pirâmide que vê, na
parte superior, poucosoperadores financeiros controlando mais
de 65% de fluxos globais e, na base, uma miríade de pequenos
investidores e operadores desempenhando uma função passiva. Tal
estrutura permite que poucas empresas tenham capacidade de atingir e
afetar a dinâmica do mercado. Asagências de rating (amiúde
em conluio com as financeiras) ratificam, de modo instrumental,
decisões oligárquicas, tomadas de tempos em tempos. Com tal farsa, o
pensamento neoliberal tenta fazer passar como objetiva, neutra e
naturalmente dada, uma estrutura de poder que, ao contrário, objetiva
favorecer uma distribuição que vai dos mais pobres para os mais ricos”. A reflexão é do economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo”.
Andrea Fumagalli (foto
abaixo) é Doutor em Economia Política, professor no Departamento de
Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e
Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são
teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da
inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação
do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo,
entre outros.
Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006),Bioeconomia e capitalismo cognitivo. Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007) eLa crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Em 2010 Fumagalli participou com uma conferência do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, quando falou sobre A financeirização como forma de biopoder.
Confira a entrevista.
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Foto: wikimedia.org |
IHU On-Line - O que une bioeconomia e capitalismo cognitivo?
Andrea Fumagalli - O atual paradigma de acumulação chama-se "capitalismo cognitivo". Conforme Carlo Vercellone, "o termo capitalismodesigna
aquelas variáveis fundamentais do sistema capitalista que permanecem,
mesmo transformando-se: em particular, a preponderância do lucro e da
relação salarial ou, mais precisamente, as diferentes formas de trabalho
dependente, dais quais se extrai a mais-valia; o atributo cognitivo
evidencia a nova natureza do trabalho,
as fontes de valorização e a estrutura da propriedade, sobre as quais
se funda o processo de acumulação e das contradições que esta mutação
gera".
A centralidade das economias de
aprendizagem e do trabalho em rede, típicas do capitalismo cognitivo,
vai sendo questionada no início do novo milênio, na sequência do
rebentamento da bolha especulativa da Net-Economy,
em março de 2000. O novo paradigma cognitivo não é capaz de evitar
sozinho a instabilidade do sistema socioeconômico que o caracteriza. É
necessário injetar nova liquidez nos mercados financeiros.
A capacidade de os mercados financeiros gerarem
"valor", na verdade, depende do desenvolvimento de "convenções" (bolhas
especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente
homogêneas, que empurram os principais operadores financeiros a se
concentrarem em determinados tipos de atividades financeiras. Nos anos
1990, de fato, foi a Net-Economy,
na década de 2000 a atração veio do desenvolvimento dos mercados
asiáticos (a China entrando na OMC, em dezembro de 2001) e imobiliário.
Hoje a tendência é concentrar-se na manutenção do welfare europeu. Independentemente do tipo de acordo dominante, o capitalismo contemporâneo está
constantemente procurando novas áreas sociais e vitais, onde devorar e
mercantilizar, até interessar-se, crescentemente, nas que são as
faculdades vitais dos seres humanos. É o que, nos últimos anos,
chamou-se de bioeconomia e biocapitalismo. Podemos, então, propor a
junção do capitalismo cognitivo com a bioeconomia: “capitalismo biocognitivo” é a definição terminológica do capitalismo contemporâneo.
“A
polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que
estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o
salário médio”
IHU
On-Line - Por que a crise financeira, enfrentada em diversos países, é
uma crise de governança financeira do biopoder atual? A partir deste
cenário, em que medida se pode dizer que a financeirização atinge todas
as áreas de nossas vidas? Quais são as implicações fundamentais?
Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros são o coração batendo, o conhecimento do cérebro, as atividades relacionais, o sistema nervoso. O capitalismo biocognitivo é
um corpo único, no qual não é possível separar a esfera do "real" da
esfera "financeira"; a esfera produtiva, da esfera improdutiva; o tempo
de trabalho, do tempo de vida; e a produção, da reprodução e do consumo.
Em geral, a financeirização marca
a transição final do dinheiro-mercadoria para o dinheiro-símbolo. Com a
desmaterialização total do dinheiro (após o colapso de Bretton Woods,
em 1971, e do fim da paridade fixa dólar-ouro), os mercados financeiros
definiram convenções sociais e hierárquicas capazes de fixar, em pouco
tempo, o valor da moeda. E, ao mesmo tempo, permitem que se mantenham
abertas as relações de débito e crédito, contanto que haja confiança
suficiente nos operadores.
Os mercados financeiros, portanto, fornecem o lubrificante para o processo de acumulação: no sistema capitalista, no entanto, não existe acumulação sem endividamento.
Não é por acaso que, dos anos 1990 em diante, proveem o financiamento
das atividades de acumulação: a liquidez atraída pelos mercados
financeiros premia a reestruturação da produção voltada a explorar os
conhecimentos e os controles dos espaços externos da empresa.
Em segundo lugar, na presença de mais-valia, os mercados financeiros desempenham, no sistema econômico, o mesmo papel que no capitalismo fordista-industrial era desempenhado pelo multiplicador keynesiano (ativado
pelos gastos deficitários). No entanto - ao contrário do clássico
multiplicador keynesiano -, o novo multiplicador financeiro leva a uma
redistribuição distorcida da renda. Para que este multiplicador seja
operacional (>1) requer-se que a base financeira (ou seja, a extensão
dos mercados financeiros) esteja constantemente em aumento, e que os
ganhos decapital acumulados sejam,
em média, superiores à perda do salário mediano. Por outro lado, a
polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o salário médio. Daqui resulta que o biocapitalismo cognitivo é estruturalmente instável.
Quando o lucro vira renda
Em terceiro lugar, os mercados financeiros, canalizando de forma forçada parte crescente da renda do trabalho(liquidação
e previdência, além das rendas que, através do Estado social, se
traduzem em instituições de tutela da saúde e da educação pública),
substituem, assim, o Estado como segurador social. Deste ponto de vista,
eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida.
Finalmente, os mercados financeiros são o
lugar onde se fixa hoje a valorização capitalista, ou seja, o local da
medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral através
da dinâmica de valores de mercado. O lucro é
transformado, assim, em renda (cf. Tese 3), e os mercados financeiros
tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, que é transformado
em valor-financeiro, que não é senão a expressão subjetiva de futuros
lucros obtidos pelos mercados financeiros, que se apropriaram, dessa
forma, de uma anuidade. Os mercados financeiros exercem, por conseguinte, o biopoder.
“A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo”
IHU On-Line - Neste contexto, que importância tem o neoliberalismo como fundamento da financeirização?
Andrea Fumagalli - O pensamento neoliberal fundamenta-se
no conceito de neutralidade da moeda e na suposição da perfeita
competição nos mercados financeiros. Na verdade, os mercados financeiros
não são imparciais e neutros, mas expressão de umahierarquia bem
precisa: longe de serem concorrenciais, escondem uma pirâmide que vê,
na parte superior, poucos operadores financeiros controlando mais de 65%
de fluxos globais e, na base, uma miríade de pequenos investidores e
operadores desempenhando uma função passiva. Tal estrutura permite que
poucas empresas tenham capacidade de atingir e afetar a dinâmica do mercado.
As agências de rating (amiúde em conluio com as financeiras) ratificam,
de modo instrumental, decisões oligárquicas, tomadas de tempos em
tempos.
Com tal farsa, o pensamento neoliberal
tenta fazer passar como objetiva, neutra e naturalmente dada, uma
estrutura de poder que, ao contrário, objetiva favorecer uma
distribuição que vai dos mais pobres para os mais ricos.
IHU
On-Line - Quais são os espaços e os limites da democracia neste
cenário? Que novas formas políticas surgem como resistência e confronto?
Andrea Fumagalli - No mesmo momento em que as hierarquias do mercado ditarem
as escolhas da política econômica, e o próprio mercado estabelecer as
regras das relações humano-sociais, a democracia, entendida como
processo de decisão resultante de um princípio dialético, está morta. A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo.
IHU
On-Line - Vale a pena analisar esta predominância da economia sobre a
política como elemento explicativo da desconfiança da política e da
apatia dos eleitores? Por quê?
Andrea Fumagalli - A
desconfiança da "política" surge no exato momento em que ela se torna
uma caixa vazia, que ratifica decisões tomadas em outros lugares. É
consequência, não causa, da prevalência do poder econômico sobre o poder político e sobre o direito.
IHU
On-Line - Como entender que governos de esquerda, como no Brasil,
Bolívia e Equador, professem um modelo de desenvolvimento não
sustentável, ignorando as terras indígenas com a construção de barragens
e estradas, por exemplo?
Andrea Fumagalli - As
compatibilidades econômicas e a subsunção da vida e da natureza são
alheias às diferenças entre "direita" e "esquerda", enquanto normas
garantem um processo de acumulação originária,
da qual, junto à exploração e à comercialização da vida, o processo de
valorização não pode prescindir. No limite, se houver alguma diferença
entre direita e esquerda, elas dirão respeito não à esfera das modalidades de acumulação, mas à esfera da distribuição. Uma lei como o Bolsa Família, por exemplo, dificilmente teria sido promulgada por um governo de direita.
IHU On-Line - De que modo se pode falar de outra economia, num contexto marcado pela hegemonia do mercado financeirizado?
Andrea Fumagalli - Pode-se falar de "outra economia", se esta outra economia não só puder exercitar o poder de decisão sobre
como produzir, o que produzir e de que modo produzir, mas,
propedeuticamente, tiver autonomia de decisão, não sujeita às restrições
e ao comando da financeira. E, para chegar a essa autonomia decisional (que, por exemplo, a Grécia não pode exercer, apesar de Syriza ter
conquistado poder decisional), é necessário autonomia, do ponto de
vista do circuito monetário-financeiro. Para isto, então, é necessário
construir um circuito monetário alternativo, complementar e não
substitutivo do tradicional, submetido ao comando da Troika,
emitindo, sob controle democrático, uma moeda paralela, utilizável para
produção de valor de uso interno, de trabalho e de impostos. Chamamos
esta moeda complementar de Moeda Social!
“O nível de entropia da produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticas irreversíveis”
IHU
On-Line - No interior de uma companhia capturada pelo dispositivo
financeirizado, como analisa as críticas do Papa Francisco à
globalização da indiferença e o lançamento da encíclica Laudato Si’, que
prega uma ecologia integral, em termos ambiental, econômico e social?
Andrea Fumagalli - Acredito que seja um convite à governança capitalística em grau de levar a sério os vínculos do ecossistema,
que agora, em termos físicos, foram alcançados. O nível de entropia da
produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticasirreversíveis.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line,
em 2010, você disse que um dos principais efeitos do biocapitalismo
sobre o trabalho é o controle das faculdades cognitivas do ser humano, e
não apenas o disciplinamento do corpo. Quais são os impactos desta
realidade para a autonomia e para a subjetividade dos contemporâneos?
Andrea Fumagalli - Este acompanhamento, que hoje chamaríamos de "subsunção da vida",
é realizado através de três mecanismos principais: precariedade
(envolvendo chantagem), dívida (que implica dependência e culpabilidade)
e competição individual (que implica tendência ao reconhecimento social
e ao mérito, em detrimento dos outros). Todos convergem em direção a um
comportamento autointeressado e a uma ruptura dos laços sociais, como
também à criação de um consenso passivo tal para garantir o poder
existente e impotencializar quem luta por um mundo melhor.
IHU On-Line - Em que medida este controle das faculdades cognitivas torna-se trabalho precário e de sujeição do trabalhador?
Andrea Fumagalli - Por meio da chantagem, da dívida, da (parcial) lobotomia cerebral, da resignação.
Por Márcia Junges / Tradução: Ramiro Mincato