sábado, 28 de fevereiro de 2015

Micro-ensaio sobre a condição humana

sentimentos e emoções: uma abordagem antropológica

Micro-ensaio sobre a condição humana



Parte I - A confusão entre sentimento e emoção
Iniciemos com uma comparação simples: medo e insegurança. Há diferença entre uma coisa e outra? 

A Biologia sabe que o medo é uma emoção básica (instintiva, pode-se dizer). Todos precisam dele a partir do momento em que nascem... em um primeiro momento para sobreviver e em seguida, também para não causar danos graves a outras pessoas. Neste sentido, uma pessoa 'destemida' (que nunca sente medo), é alguém perigosíssimo, para si mesmo e para a sociedade. Não sentir medo, por assim dizer, pode ser um sintoma de uma séria patologia (cuja origem pode ser congênita ou adquirida, física ou psíquica).
O mesmo pode-se dizer da ausência ou excesso de qualquer outra emoção: alegria, tristeza, raiva, surpresa... Além disso, pode-se afirmar também que toda emoção apresenta um conjunto mais ou menos definido de sintomas mensuráveis biologicamente (no plano fisiológico): níveis de concentração de hormônios variados (insulina, endorfina, serotonina, adrenalina, dopamina etc), nível de pressão arterial, de sudorese ou de tensão muscular, velocidade dos batimentos cardíacos, dilatação da pupila, medição de temperatura ou do fluxo sanguíneo em áreas específicas do cérebro etc são apenas alguns exemplos de dados que podem ser medidos e sistematicamente comparados em laboratório.
Então, como funciona um sentimento?

Já, por outro lado, a insegurança (como qualquer outro sentimento), é de dificílima mensuração fisiológica.
Outra característica é que sua 'construção' é da alçada do sujeito cognoscente, geralmente em sua interação com o 'meio ambiente', evidentemente. O 'meio' ao qual nos referimos aqui precisa também ser melhor especificado.


Por 'meio', pode se entender 'o conjunto de condições naturais e socioculturais nos quais um sujeito nasce e se desenvolve', lembrando que o próprio corpo físico também faz parte desse 'meio'. Repare que seu corpo não é você (embora parte de sua identidade seja composta também pelo seu corpo). Você tampouco é "suas emoções" (ainda que sua identidade também seja composta pelas emoções, as quais por sua vez são produzidas quimicamente graças ao corpo). Não, você também não é seus sentimentos (embora parte de sua identidade como sujeito seja composta também pelos sentimentos que você mesmo assimilou, reformulou e cristalizou por um processo que chamamos de 'endoculturação');

Então, sentimentos dependem em maior medida da própria subjetividade (algo não mensurável), e em menor medida, do aspecto empírico (o meio) em si mesmo. Quando dizemos que sentimentos são 'construídos' pelo sujeito, estamos dizendo que eles não surgem espontaneamente apenas por mera derivação ou determinação biológica. A cultura nos apresenta padrões de comportamento e condicionamentos não naturais... mas será que um sujeito pode também ser condicionado a sentimentos (como é no caso das emoções)? 

Vale dizer, enquanto é seu corpo que reage com alegria ou tristeza, medo ou raiva, é você que escolhe, de momento a momento, se vai amar ou odiar, se vai empatizar-se (solidarizar-se) ou amesquinhar-se, se vai se magoar ou sentir compaixão, se sentirá remorso ou paz, felicidade ou solidão ou angústia. Toda essa gama de sentimentos não se confundem com simples emoções.

Além disso, a sintomatologia de quaisquer sentimentos é tão complexa e variável de sujeito para sujeito, de cultura para cultura, que é praticamente impossível, seja para o cientista biólogo, seja para o psicólogo especialista, defini-las objetiva e consensualmente (como se costuma fazer com as emoções). Neste sentido, não é raro encontrar tais cientistas cartesianos bastante 'confusos' e intrigados em suas tentativas pouco frutíferas de pesquisá-las, conceituá-las objetivamente. Geralmente essa tarefa inglória acaba sendo deixada para os filósofos, poetas e místicos.

Tanto o psicólogo comportamental quanto o biólogo ou neurologista evolucionista buscarão reduzir os sentimentos a impulsos bioquímicos ou então, a 'um conjunto de determinações filogenéticas (decorrentes da história evolutiva das espécies) e ontogenéticas (processos específicos de desenvolvimento e maturação do organismo). As teorias tendem a explicar qualquer sentimento, como sendo um 'comportamento' aprendido (por imitação) ou determinado (pela genética). O problema está no momento de se demonstrar tais teorias. Todas fracassaram até hoje.

a "equação da felicidade" segundo pesquisadores da University College London
Isso não impede que tais cientistas continuem buscando, com base nos mais recentes avanços da Neurologia e da Farmacologia, a famosa 'fórmula bioquímica da felicidade', a Pedra Filosofal da Química Moderna. Não é raro vê-los confundindo variações de humor com sentimentos. Tais confusões não ocorrem por acaso, já que costumam ser bastante lucrativas até que o golpe de publicidade termina desmascarado ao final.

As teses antropológicas, sejam elas evolucionistas ou estruturalistas, também sonham com uma redução que dê conta do 'humano'. Só que, neste caso, buscam explicar nosso comportamento cultural (incluindo, portanto, os sentimentos) como interação de mecanismos adaptativos naturais e artificiais de convivência e sobrevivência.

Parte II - Antropologia da Religião: O que a ciência cartesiana está longe de explicar?


Como assim? Algum animal precisa biologicamente de saudade, amor, ódio ou de angústia para se adaptar melhor ao ambiente e assim, aumentar suas chances de sobrevivência? (não vale aqui a apelar à pegadinha de confundir o conceito de violência com o de ódio, ou de confundir 'capacidade do cérebro para discriminar e classificar', com o racismo culturalmente ensinado e aprendido)*.

Ou então, qual é o peso do pensamento metafísico ou místico, do sentimento de vazio existencial ou do sentimento estético (todos tipicamente humanos) na obtenção de alimento, de abrigo ou na defesa contra animais perigosos?

Se você é marxista, neste momento deve estar tentando entender o que Marx quis dizer ao defender que essa superestrutura (cultura, instituições, estruturas de poder político, ideologias e filosofias) é absolutamente determinada pela infraestrutura (relações de produção e forças produtivas), a qual, por sua vez seria legitimada e sustentada pela primeira. Círculo sem fim? Quem veio primeiro? Pense bem antes de responder!

Reformulando a questão: como e por que o sentimento de transcendência faz um animal 'criar' representações do sagrado em todas as culturas, já que a princípio, eram todos nômades, comunistas e a propriedade privada era impensável naquele contexto?

Em que momento o "sagrado" tornou-se imprescindível para absolutamente todas as culturas humanas? Em que momento a ideia do sagrado tornou-se relevante para a sobrevivência da espécie humana? E se não é absolutamente relevante, por que não há notícia de povos (ágrafos ou não) onde essa impressionante ideia esteja ausente?

Como tantos sentimentos poderiam ter nos ajudado a nos adaptar e a sobreviver? Como o sentimento de devoção e gratidão às divindades ou a outros seres (imanentes ou não) nos auxiliaram pragmaticamente na adaptação ao meio hostil natural? Convenhamos: difícil de engolir. Em cada teoria, um misto de muita imaginação e de pouquíssimas e polêmicas evidências.


Parte III - Uma pitada de humanidade na receita 

Pegando novamente nosso exemplo do início desta explanação, diante de um estímulo cultural ou ambiental específico, nenhum animal 'escolhe' sentir medo, mas o ser humano pode "escolher" sentir insegurança.

Note que o medo nos impede de pular numa piscina se não sabemos nadar; já, a insegurança ou excessiva autoconfiança nos faz afogar, mesmo sabendo nadar...
 
O sentimento é uma escolha interpessoal, na medida em que "aprendemos consensualmente a sentir"... O curioso é que até mesmo o ato da escolha pode ser consciente ou estar também condicionado. O grupo pode nos levar a aderir compulsoriamente a certo comportamento ou crença? Ou no fundo aderimos por conveniência pessoal?

Quando aderimos a certas crenças, costumes, hábitos alimentares, linguagem, visão de mundo, valores morais de conduta social etc, é evidente que se trata de um processo cultural praticamente compulsório. Mas em nenhum momento até aqui citamos sentimentos...

Podemos sim ser constrangidos a falar determinada língua, a andar de certo modo ou a aceitar certa regra moral, mas não podemos ser constrangidos a amar, nem a odiar, nem a sentir paz ou angustiar-se... como diria o filósofo existencialista: somos condenados à liberdade da escolha! Então, não podemos simplesmente amar ou odiar sem que queiramos profunda e sinceramente isso!

Isto posto, posso sim ser incentivado a amar ou a odiar... posso ver exemplos do que eu penso ser 'pessoas amando ou odiando' e posso até concordar intelectualmente que 'amar é certo' e 'odiar é errado', mas não posso amar/odiar por imitação! Eis o mistério e o diferencial essencial de tudo que temos dito até agora! 
Em síntese, sentimentos são demasiadamente complexos para serem reduzidos a simples processos de mimetismo ou condicionamento (como sucede com emoções ou com os demais rituais elaborados de convivência social).

Você pode executar com perfeição técnica um ritual, uma emocionante obra musical, uma coreografia mística ou teatral, um poema, um mantran ou qualquer outra bela e emocionante oração. Mas nada disso quer dizer amor, sentimento ou paixão! Então, sentimentos se inserem numa prática que:
1º) é cem por cento humana; 
2º) é sempre um "modo de fazer"; 
3º) é sempre imaterial e inapreensível tecnicamente;
4º) é vivenciável intimamente, de modo ímpar, por outro ser complexo corpo-psique-espírito. 

O sentimento (seja ele qual for) é sempre o encontro do humano com sua inefável dimensão transcendente, antes mesmo de ser um encontro com 'outro' ser humano!

É por isso que, quando você se 'apaixona' (com ódio ou amor, com sofrimento ou compaixão, com angústia ou felicidade...), jamais conseguirá "dizer" ou "descrever", pois a experiência em si mesma é intransferível, inimitável, é íntima e singular!

A arte, mais do que qualquer outra atividade humana, é a que consegue mais se aproximar da expressão de sentimentos... daí que, só nos toca aquela arte que nos remete a algo que, como humanos, já fomos capazes de sentir também, ainda que de modo distinto do outro...

E então, eu lhe pergunto: o que é a sua existência, sem a paixão?
O que é o exercício de sua atividade profissional, sem paixão? 
Como é conviver com outro ser humano, sem paixão? 
O que é compartilhar e construir, sem paixão? 
O que é estudar, orar ou dançar ou lutar por uma causa, sem paixão?
Tudo, sem paixão, torna-se tédio, martírio, desespero e vazio.  

Note  como o sentimento nos completa e complementa tudo que fazemos, como humanos! Não estamos defendendo que o sentimento seja o único ou o mais importante aspecto que, no conjunto nos ajuda a "sermos-humanos" íntegros...

Além disso, atente bem para outro aspecto de importância crucial para entender o humano que há em cada um: cada um de nós de certo modo 'somos-humanos'...

ou seja: não se pode ser humano sozinho, sem o outro, completamente isolado do grupo, sem a humanidade... noutras palavras: sem a cultura, nossa humanidade simplesmente não existe (a não ser em estado puramente potencial)... Sem as múltiplas dimensões que ela nos traz, somos simples feras (como já previra Aristóteles: o homem é poli tikós). 

Feito este esclarecimento fundamental, considere que sem sentimentos, quaisquer atividades, por mais nobres que nos pareçam, nos parecerão mecânicas, vazias de sentido e significado. Como 'animais atribuidores de sentido' que somos, é o que nos confere a "anima"... Na mitologia judaica, a cultura é instituída pelo Sagrado... Este mesmo Sagrado nos doa a "anima" (aquilo que nos anima), cria a primeira regra de conduta e, em outro momento, cria vestes feita de peles de animais, para cobrir a nudez do casal primordial... nenhum outro animal se veste ou precisa trabalhar... Só o ser humano modifica sua natureza e a natureza ao seu redor, com o seu trabalho, com sua "agricultura" , com sua ação transformadora.
Mais que o alimento material, mais que o salário, mais do que o próprio reconhecimento, precisamos viver e fazer 'com paixão'.


Pela Antropologia sabemos que o hominídio é um "animal simbolizador". De qual imperativo biológico deriva o valor que os humanos invariavelmente atribuem aos símbolos (representações gráficas, bandeiras, amuletos, ritos, etc)?

O materialismo não explica nem justifica convenientemente o valor subjetivo de tamanha profusão de sentidos e de símbolos, irrelevantes do ponto de vista dos meios de produção ou das forças produtivas de uma sociedade. Por outro lado, a manutenção material da vida de qualquer outro animal, quase tão complexo geneticamente quanto o ser humano, prescinde de quaisquer operações de simbolização.

Então, que reações bioquímicas ou hormonais, ou que conexões neurais explicam ou controlam o valor que damos aos símbolos? Silêncio absoluto! Nem as ciências naturais, nem as sociais respondem. Fácil constatar que tal processo não é predeterminado pela nossa herança genética. Então, seria apenas o ambiente que nos comprime, desde algum momento tão remoto quanto desconhecido, a atribuir valor simbólico a objetos ou entidades imanentes (totens) ou transcendentes (seres divinos, sagrados, demoníacos, espirituais, oriundos de outros 'mundos')? Essa própria explicação 'científica' não se parece mais com uma boa e velha explicação mítica?
O fato é que ninguém sabe o quê, em nós ou fora de nós, gera o valor abstrato, culturalmente elaborado, de um símbolo.

Outro caso complexo: O altruísmo ou a solidariedade intencionais não se confundem com o impulso primitivo e biológico à caça cooperativa (onde o tal instinto nos conduzia evidentemente a um maior sucesso durante a caçada, comparada à caça solitária).

No primeiro caso, constatado a ausência do interesse pessoal em levar qualquer vantagem (biológica ou social), chegamos à conclusão de que absolutamente nada se ganha, do ponto de vista materialista e pragmático. Para a Ciência materialista ou neopositivista, a ausência da intenção social e egoística, é uma contradição insuperável, exceto se considerada como 'anomalia' (em sentido epistemológico): o cientista não sabe explicar, então ignora a contradição como se não existisse e como se ela não estivesse invalidando sua teoria (na esperança de um dia conseguir 'explicar', não se sabe como).

No segundo, se há "interesse biológico" ou sociológico no bizarro comportamento altruísta, como explicitá-los sem cair na risível, ilógica e igualmente bizarra hipótese de Dawkins, segundo a qual, o organismo é apenas uma "máquina de sobrevivência" do gene, cujo objetivo é sua autorreplicação, sendo o altruísmo não contraditório com o egoísmo?
Então, segundo a hipótese citada, há um hipotético gene "antropomorfizado" (já que é egoísta, qualidade esta eminentemente humana)... e pior que isso, tal gene só é altruísta porque é egoísta. Lógica torta essa, não?

Em síntese: As contradições entre teoria e realidade, são mais uma vez tratadas pelos cientistas como "anomalias" ou como resquícios de impulsos biológicos primitivos também quase completamente desconhecidos.

Saltemos do hominídio de milhões de anos atrás e analisemos por um breve momento, o hominídio contemporâneo:
Qual teoria científica explica a cobiça exploratória e depredatória humana, que nos faz arruinar completamente nosso próprio ecossistema e habitat, o qual sabemos ser absolutamente necessário à sobrevivência de nossa própria espécie?
Como explicar tal "comportamento"? 
É a biologia de nosso evoluído cérebro que vai explicar? O gene egoísta-altruísta (sic) de Dawkins explicaria mais essa contradição?
Ou deveríamos apelar à sociologia pós-estruturalista de nossa sociedade altamente civilizada? Qual ciência vai explicar por que estamos nos suicidando como espécie? Que lei natural ou social agora mesmo está a nos conduzir para um cenário escatológico de auto-aniquilação?

Dentre os mais evoluídos, estariam os mamíferos, certo?
Com nossos grandes e complexos cérebros, deveríamos zelar em primeiro lugar, pela nossa própria autossustentação. Certo ou errado?
Quais dentre os demais animais evoluídos apresentam comportamento tão bizarro e contraditório?
Estamos, ao invés de evoluir, involuindo?? Como os neurologistas das 'pílulas da felicidade', explicariam mais essa 'anomalia'? Maldições da vida em sociedade? Chamaríamos Rousseau com o seu "Emílio" para explicar o problema?

De repente, os humanoides enlouqueceram? Os imperativos bioquímicos (que nos exigem a manutenção da espécie) de repente entraram em colapso? onde está o gene egoísta-altruísta numa hora dessas??

Se os imperativos genéticos de nosso DNA sempre determinam nosso comportamento, onde raios foram todos parar?

De repente nosso cérebro, que por milhões de anos 'evoluiu' até o ponto de garantir a adaptação de nossa espécie, sofreu algum tipo de mutação coletiva que agora nos faz desistir coletivamente da autopreservação?


Parte IV - a antropologia filosófica**: a cereja do bolo 

Podemos até dizer que sentir fome não é pecado, sentir atração sexual não é pecado, sentir vontade (ambição) por algo não é pecado, sentir alegria, tristeza, medo ou raiva, não é pecado. O que é pecar?

"Pecado" é sentir a gula, a luxúria (a paixão desmedida), a cobiça (por bens materiais ou espirituais), a euforia/ansiedade ou a depressão, o ódio e o desespero... em sentido filosófico e metafórico, dizemos que tudo isso é "pecado", pois nos remete à ideia do antiético, do excesso, da hybris grega (a desmedida, o descomedimento, a autoconfiança e o orgulho excessivos, a arrogância e a imprudência de nos considerar como deuses, atraindo para si mesmos a maldição), da violência contra si próprio (corpo físico e mente), bem como à ideia de um desrespeito contra o outro (a coletividade da qual faz parte).
Todo sentimento é, portanto, um aprendizado... noutras palavras, ninguém nasce racista ou preconceituoso, nem nasce odiando negros e nordestinos, ou apaixonado por tal ou qual time de futebol, ou zeloso pela bandeira de sua nação... o meio nos estimula... e (bem ou mal) reagimos! geralmente reagimos de um modo mais ou menos subconsciente... todo esse 'aprendizado' raramente consciente de sentimentos envolve uma responsabilidade direta do próprio sujeito, e indireta do meio em que este sujeito vive. Assim, não adianta se colocar como vítima inocente do processo.
O mais importante em toda essa explicação é notar que o humanoide vive comumente de modo tão 'adormecido', que praticamente não se dá conta dos sentimentos que 'aprende', que desenvolve e que alimenta, diária e secretamente...
Portanto, não se engane: somos sim responsáveis em grande medida pelo que somos. Ao mesmo tempo, não percamos nosso tempo julgando ou avaliando o grau de responsabilidade dos outros. Antropologicamente, nem eu, nem você, estamos habilitados para dizer como o outro poderia ou deveria fazer...
o que posso sim dizer é o que eu posso fazer, pensar, não fazer, sentir e não sentir. Mas não cabe à ciência dizer o que "o outro" deve fazer. O ramo do conhecimento que estuda racionalmente o que devemos ou não fazer, enquanto coletividade, é a disciplina filosófica da Ética.
Parte V - considerações finais sobre quem somos

Em síntese: recebemos o estímulo (advindo das mídias de massa, das distintas redes sociais)... Mas, com qual sentimento vamos reagir? quanto tempo vamos demorar para aprender a viver?

Isso é singular, depende de cada sujeito pensante. Como animais que também somos, nossas escolhas são geralmente norteadas por aspectos emocionais e sentimentais. E mesmo assim, 'escolhemos', diariamente, que sentimentos e pensamentos (crenças) vamos interiorizar e exteriorizar...
O sentimento e a emoção podem se confundir? Às vezes sim, devido ao nível raso de autoconhecimento que apresentamos em geral. Cientificamente falando, portanto, vimos que emoção e sentimento têm origens (causas) distintas, não podendo ser tratados como coisas idênticas entre si. 


Tecnicamente, vimos que sentimentos como amor, ódio, paz ou felicidade, não se confundem com simples estados emocionais. Outros animais não podem "estar apaixonados". A paixão pode aparecer como uma palavra muito vaga, com sentido dúbio. Então, definir paixão é crucial. Paixão é sentimento ou emoção? Aprendemos culturalmente a nos apaixonar ou nascemos programados para fatalmente nos apaixonar? Onde está sua paixão? Onde está aquilo que dá sentido (significado) a sua existência?

Sua paixão está no esporte, no lazer, na profissão, na religião, na pessoa com a qual convive? onde você a põe? sua paixão está dentro ou fora de você? Onde você a pôs?

Por fim, o que é o humano, o que o caracteriza de fato? 
Eis o problema crucial de qualquer ciência e da própria filosofia: como nos definir? é possível nos definirmos a nós próprios?

E, além disso, o que diferencia o humano dos outros seres? Esta problemática surge basicamente a partir do fato de que o humano parece ser o único animal capaz de observar conscientemente os fenômenos ao seu redor e pensá-los abstratamente. Ele seria o único animal que se questiona sobre o aparente absurdo da própria existência.

Então, filosoficamente falando, uma primeira resposta possível estaria implícita no próprio ato de perguntar: "O homem é aquele que pergunta". Pelo menos, parece ser o único ser capaz de fazer perguntas. Os demais seres teriam essa capacidade (de se questionar sobre suas próprias razões de existência)?

Além do ser humano, que outra criatura se pergunta sobre seu passado e sobre seu futuro, sobre a vida e sobre a morte?

O homem pergunta pelo seu próprio ser, quer compreender e ter consciência de si. Mais que isso, o humano quer sempre captar o sentido... de sua vida, do mundo, dos acontecimentos, psíquicos ou concretos, imanentes ou transcendentes. Em apertada síntese, o homem é um animal buscador, criador e 'interpretador' de sentidos. Por outro lado, logo se identifica também sua incapacidade de se compreender de modo integral.

Seu conhecimento sobre si é limitado, condicionado pela sua própria subjetividade e por seu próprio aparato cognitivo. Então, aquilo que sabe de si, ainda que pretensamente "científico", nunca satisfaz o apetite de sua própria "busca por saber".

O resumo de tudo? Ele (o humano) não entende o mundo e não entende a si mesmo. Se ele pensa em um Ser metafísico, capaz de dar conta do mundo, de explicá-lo, o problema só se complica, pois surge em sua mente faminta, um sem-número de questões igualmente complexas, a cerca desse mesmo "Ser autossubsistente e autossuficiente".

Abandonando este projeto metafísico clássico, muitos antropólogos-filósofos irão ater-se ao que chamam "fenômeno humano". O Homem, portanto, caracteriza-se como esse emaranhado de aspectos e dimensões. Não se esgota ou limita-se a esta ou àquela dimensão, mas é um emaranhado rizomático de capacidades e possibilidades. Em razão disso podemos dizer que, em certa medida, o Homem não é, mas constrói-se cotidianamente a partir de um elemento que lhe é essencial: a cultura ou as “manifestações culturais”.

Podemos finalmente concluir que, do ponto de vista simultaneamente antropológico e filosófico, a indagação sobre o humano e suas possibilidades devem ser tomadas como ponto de partida para sua conceituação e compreensão. Por outro lado, temos que admitir que este humano também é capaz de produzir seu mundo.  Este humano é: corpo, mente (alma), ambiente (sociedade, geografia, clima...) e espírito (racionalidade transcendente).  A primeira indagação norteia a antropologia filosófica e a segunda pode ser colocada como base para a compreensão da cultura.

Quando dizemos que o ser humano constrói seu mundo, queremos dizer: ele constrói seu céu e seu inferno, seus deuses e seus demônios, sua ordem e seu caos. O homem constrói-se a si próprio para em seguida também se autodestruir. O ser humano, simultaneamente, por sua conta e risco, tem criado seu mundo interior e seu mundo exterior. Aliás, qual é mesmo a distinção substancial entre ambos? Ele exterioriza (concretiza no mundo exterior) aquilo que ele é por dentro dele mesmo. Entender essa realidade é uma das chaves mestras de qualquer mudança que queremos ver no mundo.

Silvio MMax.


* Neste sentido, vide os artigos:
"Somos racistas por natureza?", disponível em http://oficina-de-filosofia.blogspot.com.br/2012/05/180512-0300-opiniao1-o-cerebro-racista.html 
"A psicopatia e a relevância do DNA em sua determinação", disponível em http://oficina-de-filosofia.blogspot.com.br/2013/12/a-psicopatia-e-relevancia-do-dna-em-sua.html
** Outros textos de referência:
"Introdução à Antropologia Filosófica", disponível em http://oficina-de-filosofia.blogspot.com.br/p/introducao-antropologia-filosofica.html
"A Filosofia ateísta de 'Dr. House': uma ética e muitas reflexões", disponível em
http://oficina-de-filosofia.blogspot.com.br/2013/12/a-filosofia-ateista-de-house-uma-etica.html

"Cérebro: A química perfeita das emoções", disponível em  http://revistagalileu.globo.com/Galileu/0,6993,ECT490728-1719,00.html



"António Damásio - A diferença entre emoção e sentimento". vídeo disponível em http://globotv.globo.com/editora-globo/revista-galileu/v/antonio-damasio-a-diferenca-entre-emocao-e-sentimento/2736952/