O mito do livre-mercado: o caso inglês
As potências econômicas da atualidade costumam defender a tese de que somente com o receituário neoliberal,
as nações emergentes serão capazes de alcançar o mesmo estágio de
prosperidade que elas atingiram. Afirmam que foi através desta
estratégia — livre-comércio, tarifas baixas, abertura ao investimento estrangeiro e não-intervenção do Estado, entre outras coisas — que elas conseguiram se tornar ricas. Mas a história destes países mostra uma atitude bem diferente...
Na postagem anterior (O mito do livre-mercado: os casos sul-coreano e japonês)
vimos os casos mais recentes de Coreia do Sul e Japão; hoje vamos
conhecer um caso mais antigo, de uma das nações que se autoproclamaram o
berço do livre-mercado mundial: a Inglaterra.
Livre-comércio só quando convém
Daniel Defoe (imagem à direita) é mais conhecido como autor da obra literária Robinson Crusoé,
mas pouca gente sabe que ele, além de trabalhar no governo britânico,
também era economista. Seu principal trabalho nessa área foi lançado em
1728, A Plan of the English Commerce, sendo hoje praticamente esquecido.
No livro, Defoe mostra como, no final do século XV, a dinastia dos Tudor usou o protecionismo, os subsídios, a distribuição de monopólios, a espionagem industrial
financiada pelo governo, entre outras intervenções, para desenvolver a
incipiente e fraca indústria de lã da Inglaterra — a indústria de ponta
da época.
Antes dos Tudor, a economia inglesa se
resumia basicamente à produção de lã bruta para exportação. Os Países
Baixos dominavam o processamento da lã através de suas modernas
manufaturas. Eles sabiam que comprar a lã e transformá-la em roupas dava
muito mais lucros.
Henrique VII, rei inglês, queria reverter essa situação. Apesar da “vocação”
do seu país para a produção bruta de lã, ele queria entrar no ramo
dominado pelos Países Baixos (Bélgica e Holanda) de produção de roupas.
Para isso, ignorou os sinais do mercado de que seu país era um bom
produtor de lã e que poderia ter continuado assim. Primeiro aumentou a taxa sobre as exportações de lã, a fim de desestimulá-las. Assim ele queria que o processamento da lã fosse feito por ingleses internamente, favorecendo o fortalecimento das próprias indústrias. Por fim, 100 anos depois, quando as indústrias de lã inglesas se tornaram fortes o suficiente, a rainha Elizabeth I (imagem à esquerda) suspendeu totalmente
as exportações de lã do país, levando as indústrias dos Países Baixos à
falência. Com a riqueza do comércio das manufaturas de lã, a Inglaterra
pôde levar adiante o processo que levaria à Revolução Industrial.
O livro de Daniel Defoe mostra com clareza que não foi a livre concorrência, e sim a proteção do governo e os subsídios que favoreceram a nascente indústria inglesa.
E essa política não se resumiu apenas ao século XV. A Inglaterra se
manteve um país altamente protecionista até a metade do século XIX, além
de impedir que suas colônias desenvolvessem indústrias, incentivando a
produção de matérias-primas nestas regiões.
A
partir de meados do século XIX, as indústrias inglesas estavam tão
fortes e eficientes, sem encontrar concorrência no mundo inteiro, que os
industriais perceberam corretamente que então era a hora de incentivar o livre-comércio.
Ou
seja, a Inglaterra só adotou o livre-comércio apenas quando já havia
adquirido a supremacia total sobre os concorrentes por meio das
barreiras tarifárias altas e de longa duração, entre outras medidas
vergonhosas como a abertura forçada de mercados e tratados desiguais de
comércio com outros países.
Na próxima e última postagem vamos ver como o sucessor da Inglaterra na liderança do comércio mundial, os Estados Unidos,
se comportaram historicamente com relação àquilo que eles mais defendem
hoje: o livre-comércio para os países em desenvolvimento como
estratégia de crescimento.
Primeira parte: O mito do livre mercado: os casos sul-coreano e japonês