“Aconteça o que acontecer nas eleições europeias o sinal verde foi 
dado nas eleições municipais. Com isso chegará a grande prova de fogo 
dos movimentos que levantam um ataque institucional”. Assim anunciava 
Traficantes de Sueños – uma influente cooperativa editorial e livraria 
de Madri – no curso 
Ataque aos céus (terceiro round)1, em
 maio de 2014. O objetivo do curso estava traçado estrategicamente: 
“Pensar e desenhar uma aposta municipalista que trabalhe questões chave 
em torno de como construir uma verdadeira democracia”. Noutras palavras,
 planejar o salto para as instituições a partir do ecossistema do 15M – 
Indignados, que havia tomado as praças do país em 2011. O desafio: 
passar do grito “não nos representam” ao “nos representamos”.
O plano municipalista estava em andamento muitos antes do maremoto 
que o novo partido Podemos causou nas eleições europeias, em 25 de maio 
de 2014, quando conseguiu cinco eurodeputados. Podemos despertava já 
alguns receios entre alguns movimentos sociais, por sua pressa em 
“atacar” as instituições e por sua narrativa agressiva. E por isso, um 
dia depois das eleições europeias, seguindo o roteiro de uma trajetória 
prévia, nasceu o livro 
La apuesta municipalista (A aposta municipalista)2, assinado pelo Observatorio Municipal de Madri.
O livro tem como subtítulo: “la política comienza por lo cercano”, a 
política começa pelo próximo, numa introdução histórica: “da Ágora grega
 ao cantonalismo espanhol do século 19 (movimento que propunha organizar
 a sociedade em confederações de cidades independentes com federação 
livre), passando pelas comunas e os municípios livres da segunda 
república espanhola, do 
Provos holandês (movimento de contracultura da década de 60) aos Verdes alemães (partido fundado em 80) ou as 
Juntas del Buen Gobierno zapatista”. O livro publicado com licença 
copyleft
 (licença livre para baixar, reproduzir e remixar), era mais do que um 
livro. Era um dispositivo apropriável: o Observatorio Metropolitano de 
Madri recomendava que cada cidade adaptasse o capítulo 4 (dedicado à 
Madri) por um capítulo local. “As eleições gerais pareciam inviáveis. As
 eleições municipais eram mais possíveis: poderiam ser abordadas sem 
aparatos centralizadores de partidos”, assegura Emmanuel Rodríguez, um 
dos responsáveis por 
La apuesta municipalista.
O livro se conclui com o capítulo 
Por um municipalismo democrático:
 “A democracia perde a maior parte de sua substância se não se instituem
 âmbitos diretos de decisão nos quais as pessoas comuns possam fazer 
exercício efetivo de um mínimo de autogoverno”. O desafio estava 
lançado. Em 
La apuesta municipalista, confluíam de alguma maneira os anseios do grupo 
EnRed, 
uma aposta pela organização aberta em Madri desde o começo de 2013, por movimentos sociais vinculados ao 15M, em prol da cultura livre e dos bens comuns. 
La apuesta municipalista também era um antídoto coletivo frente ao furacão Podemos. Se 
EnRed.cc
 significava decisão por consenso, a prática da assembleia e praças 
ocupadas, Podemos era ataque institucional e tentativa de hegemonia 
política. A tentativa de unir os diferentes fluxos político-sociais foi 
batizado de “confluência”. Confluência: algo muito diferente de uma 
coligação ou aliança político-partidária. Algo mais do que uma frente 
cidadã. Algo mais do que uma candidatura de unidade popular. Algo novo, 
inexistente até um ano atrás.
Ninguém imaginava que uma confluência chamada 
Ahora Madrid (Agora Madri
) acabaria
 retirando o conservador Partido Popular (PP) da prefeitura de Madri. 
Como conseguiram? Como se teceram as confluências que tomaram o poder 
nas eleições do 24 de maio (o #24M nas redes) em algumas das cidades 
mais importantes da Espanha?
Resultados Gerais
Uma edição do 
Le Monde serve de metáfora perfeita para o processo eleitoral do #24M: “
Terremoto político na Espanha”
3. Terremoto.
 Apesar disso, não é possível fazer uma leitura linear. Impossível 
simplificar. Difícil encontrar ganhadores e perdedores à primeira vista.
 A primeira contradição: o Partido Popular (PP), sendo o partido mais 
votado é o grande derrotado. O PP perde majoritariamente em 500 cidades,
 em quase todas as grandes urbanas. Perderá as cidades de Madri e 
Valência. E muitas capitais. Perde, por sua vez, a maioria em quase 
todas as regiões, que serão governadas por alianças de esquerda e/ou 
cidadãs. Especialmente simbólica será a perda da Comunidade Valenciana. O
 bipartidarismo levou um duro golpe: a soma dos votos do PP e do Partido
 Socialista Obrero Español (PSOE) resulta apenas 52% do total. Mas 
sobrevive no entorno rural e entre o eleitorado idoso.
O PSOE não morre: perde votos, mas recupera regiões como Astúrias ou 
Extremadura. Com pactos, governará em muito mais regiões e cidades. Já o
 Podemos se consolida como a terceira (e chave) força política, mesmo 
que ainda se mantenha com baixas espectativas: 14% dos votos nas 
eleições autônomas (regionais). O novo partido que surgiu depois do 
Podemos, chamado 
Ciudadanos (Cidadãos), exaltado pelos meios como
 a alternativa de centro ao “bolivariano” Podemos, não emplacou, ficando
 abaixo de 10% dos votos.
Onde está então o grande terremoto político de que fala o 
Le Monde?
 Está no resultado das eleições municipais. Não tanto entre quem perde, 
mas sim entre quem ganha. O terremoto político leva o selo confluência, 
esse pós-partido que governará as principais cidades da Espanha.
As leituras do terremoto eleitoral são confusas, contraditórias. Os 
meios conservadores espanhóis ignoram o fenômeno da confluência. E 
afirmam que o Podemos “não ganhou nada”. Os meios internacionais afirmam
 que Podemos acabará governando cidades como Madri ou Barcelona. 
Atribuem a Pablo Iglesias, líder indiscutível da formação, o êxito 
municipal “das esquerdas”. E seguem definindo as confluências municipais
 como “frentes de esquerda”. Owen Jones, em um 
artigo no The Guardian4,
 recomenda a esquerda britânica a aprender espanhol: “Tudo gira ao redor
 da atitude e a estratégia, de outra forma estaremos simplesmente 
elegendo o gueto autoimposto a partir do que queremos vociferar com 
impotência”.
Tudo é mais complexo. Menos linear. Menos dicotômico. Não serve à 
lógica binária. O eixo esquerda-direita não está morto: mas está 
agonizando. Não explica tudo. As confluências, especialmente em Madri, 
não são exatamente “as esquerdas unidas”. Mais complexidade, por favor, 
escrevia Antón
 Losada: “Após a campanha mais vazia, frívola e simples que alguém é 
capaz de recordar, nós protestamos ao votar no #24M pela complexidade, a
 sutileza e os matizes. Frente às propostas 
for dummies5
 sobre escolher entre comigo ou contra mim, os votantes optaram por 
ensinar a todos os candidatos e todas as forças políticas que a política
 deve ser praticada conforme a realidade: diversificada e multifacetada e
 por vezes contraditória”
6.
 Os espanhóis não votaram massivamente no PP e no PSOE. Tão pouco 
aconteceu exatamente o contrário. Certo: o voto foi para a esquerda. 
Apostou, em geral, pela mudança. Mas o mais importante: o #24M 
desajustou a lógica binária-antagonista do sistema político.
E a novidade do abalo democrático reside na complexidade e 
pluralidade das confluências. As confluências, em alguns casos com 
alguns pactos com forças de esquerda, governam cidades como Madri, 
Barcelona, La Coruña, Santiago de Compostela, Zaragoza, Terrasa ou 
Cádiz, entre outras cidades. Ademais, as confluências facilitam governos
 de esquerda, ecologistas ou cidadãos em Valência (terceira cidade mais 
importante da Espanha) ou Oviedo. Reformularão também os governos do 
cinturão obreiro de cidades como Madri ou Barcelona.
Pablo Iglesias, em outro golpe narrativo de seu particular 
Game of Thrones7,
 recordou poucos dias depois das eleições que as confluências eram uma 
grande aposta de Podemos. E que Podemos não é um partido: “é um 
instrumento de mudança”. Qual o papel do Podemos no abalo municipal da 
Espanha? Como se relacionam as confluências cidadãs como Barcelona em 
Comum ou Ahora Madrid com o Podemos? Que diálogo existe entre a 
cidadania, movimentos sociais, 15M – Indignados, as confluências e 
Podemos?
Tentativa de cronologia
Em maio de 2014, ninguém imaginava que a onda narrativa, 
organizacional e emocional do Podemos poderia virar a política espanhola
 de cabeça para baixo em tão poucos meses. Tampouco que o municipalismo 
se consolidaria em todo o território espanhol de forma tão fulminante. 
Muito menos que ambos os processos acabariam se entendendo, confluindo. 
Poucos entenderam, em 3 de junho de 2014, um tweet da editora 
Traficantes de Sueños, que recordava aos líderes hipermidiáticos do 
Podemos que já existia um plano municipalista:
“La apuesta 
municipalista” #libro preparar siguiente asalto. #DescargaLibre 
http://www.traficantes.net/libros/la-apuesta-municipalista CC 
@ahorapodemos — Traficantes (@traficantes2010) junio 3, 2014.”
Em 15 de junho de 2014, algumas semanas depois da publicação de La apuesta municipalista, foi publicado o manifesto da plataforma Guanyem Barcelona:
 “Não queremos nenhuma coligação nem uma mera sopa de letras. Queremos 
nos esquivar das velhas lógicas de partido e construir novos espaços que
 vão além da mera soma aritimética das partes que as integram”.1
 Em 26 de junho, se apresentava oficialmente o Guanyem Barcelona, 
iniciativa liderada por Ada Colau, a midiática porta-voz da Plataforma 
dos Afetados pela Hipoteca (PAH). Seu propósito era “ganhar a 
presidência do município de Barcelona”, criando uma confluência de 
maiorias. Guanyem, “ganhemos” em catalão, pegava a carona no grito 
empoderador do Podemos. 
Por trás de Guanyem, a plataforma EnRed, em que organizações como Traficantes de Sueños2, Observatório Metropolitano de Madri3, Juventude Sem Futuro4 (vital
 no 15M) ou o Pátio Maravillas (um centro social ocupado) – cozinhavam o
 plano municipalista desde o início de 2013, transformando-se 
rapidamente para se tornar a chamada “Municipália”. E sua reunião aberta em 28 de junho, no MediaLab Prado de Madri5, abriu
 a porta para a tradução do nome: Gañemos (Ganhemos). E brotaram 
iniciativas Ganhemos em todos os bairros, em dezenas de cidades da 
Espanha. “Durante os últimos meses foram cozidos em fogo brando os 
acordos, as propostas e os programas para construir candidaturas cidadãs
 democráticas que se debruçassem em novas formas de organização e 
criação política e respondessem as teias sociais de cada localidade”, 
escrevia há alguns dias Pablo Carmona, um dos cérebros do El plan municipalista, vereador do Ahora Madrid.
Acordos em fogo brando, assembleias, entusiasmo, 
sessões, tensões. Havia pressa. E muita. Alguns participantes das 
assembleias dos bairros do 15M haviam aberto em 2014 círculos de Podemos
 nos bairros, a estrutura descentralizada mais elogiada do partido. No 
verão de 2014, muitos se animaram com a onda nos bairros e e abriram nós
 do Ganhemos. E foram tecendo a rede humana e descentralizada do que 
viria a ser Ahora Madrid. “As praças evidenciaram o alto nivel de 
preparação que temos para a gestão de situações muito complexas, com 
grande inteligência, mas também ternura, escuta e proximidade”, assegura
 Alberto Nanclares, colaborador do Ganhemos e do Movimento de Liberação Gráfica de Madri6,
 chave na reta final da campanha do Ahora Madrid. “As formas de 
cooperação dos movimentos em rede não passam mais por grandes dogmas 
ideológicos unitários, mas por conectar as práticas nas quais se exercem
 a reconquista dos direitos e do que é comum”, escrevia em 2013 Arnau 
Monty, em seu artigo As mutações dos movimentos de rede do 15M.
 “Se nos organizamos a partir de objetivos e práticas concretas, 
poderemos alcançar metas que pareciam impossíveis”, recorria o manifesto
 inicial Guanyem Barcelona.
O imaginário e o método do Ganhemos Madri foram especialmente construtivos. “Tomar a cidade, mandar obedecendo (desobedecendo)”7, publicado por Ganhemos Madri em 27 de junho de 2014, foi um inspirador roteiro comum. A obediência zapatista8,
 remixada com a desobediência em massa ativada pelo 15M. O “tomar a 
rua”, de 2011, mudando para “tomar as suas instituições da cidade”. O 
dia a dia quase invisível de assembleias e redes de afetos, 
reivindicando o líquido, a política lateral, flexível. Uma política 
real. O espaço, o ingrediente territorial e hiperlocal estavam entrando 
no processo político de baixo-pra-cima, de fora-pra-dentro.
Os cinco princípios da confluência do Ganhemos funcionaram metaforicamente como as quatro liberdades do software livre9: um breve quadro ético para a construção de processos e práticas de partilha de códigos. Vale a pena ler com calma: 1)
 Princípio da confluência: não criar uma nova estrutura, mas sim 
promover a coordenação das existentes e trabalhando em conjunto. 2)
 Princípio da promoção: encorajar o desenvolvimento de ferramentas e 
oportunidades de cooperação no território em lugares onde eles não 
existem. 3) Princípio da 
sustentabilidade: pense mecanismos de participação para que eles sejam 
sustentáveis, não só para os pessoas ativistas, mas para o público em 
geral. 4) Princípio da inclusão: que as
 iniciativas lançadas sempre busquem a cidadania em geral, a sua 
participação, e não só a composição interna do movimento. 5)
 Princípio da co-organização: não compreender a cidadania como um espaço
 para a consulta ou validação, mas sim favorecer as ferramentas, que 
para aqueles que o desejem possam organizar-se, participar e tomar 
decisões vinculativas. 
A onda Ganhemos cresceu rapidamente durante o verão de 2014. Multiplicava-se. Transformava-se. A lógica do software livre,
 os repositorios de códigos informáticos compartilhados e a cooperação 
em rede facilitaram a expansão. Guanyem Barcelona publicou uma “Guia útil para a criação de um Guanyem”10.
 A inteligência coletiva e as necessidades locais de cada cidade foram 
reconfigurando a lógica de cada confluência. Ahora Madrid, por exemplo, 
aproveitaria o código fonte da plataforma digital de Zaragoza em Comum11, para
 desenvolver um programa de colaboração. “A implementação de mecanismos 
de participação cidadã é uma expropriação do poder pelos representantes,
 é um ato de des-representação”12, alegou alguns dias antes da eleição Pablo Soto, gerente de participação digital e futuro vereador do Ahora Madrid.
Como foram evoluindo as confluências? A eficácia da aventura, como apontado no início de novembro de 2014 pela jornalista Olga Rodríguez13,
 participante do Madri Ganhemos, dependia de encontrar “espaços nos 
quais se englobem todos que sofrem de exclusão, para restaurar a 
democracia e valores tão simples como solidariedade”. Enquanto isso, 
Podemos – atacado pelos meios de comunicação de massa e vítima de 
manipulações constantes – resolvia a sua operação secreta “One Girl”:
 o plano era obter uma candidata mulher, independente e experiente para a
 confluência de Madri. Jesús Montero, secretário-geral do Podemos Madri,
 depois de várias recusas, convenceu a ex-juíza Manuela Carmena a se 
candidatar pelo Ahora Madrid. Já em campanha, Manuela repetia uma vez oy
 outra que “não tinha nada a ver com Podemos”. Sem essa distância, teria
 sido impossível o triunfo do Ahora Madrid.
Ninguém suspeitou que a mutação provocada pelas 
siglas municipalistas fosse tão vertiginosa. Em muitos casos, foi 
causado um problema pelo oportunismo de antigos partidos políticos, que 
se adiantaram à gestação dos Ganhemos para legalmente registraram a 
marca em toda a Espanha, contando para isso com a cumplicidade do 
Ministério do Interior. Em face dessa manobra, o Guanyem Barcelona teve 
de rebatizar-se para Barcelona en Comú (“Barcelona em Comum”, do catalão). 
Na Galícia, as Mareas Atlánticas e Compostela Aberta se consolidaram. O mesmo aconteceu com Somos Oviedo, nas Astúrias. Por Cádiz si puedo,
 em Cádiz. O nome da confluência era o de menos. O espírito permeava 
centenas de candidatos com palavras como “ganhar”, “agora”, “mudança”, 
“ganhemos”, “nós” ou “comum”. Os formatos jurídicos utilizados, como explica14 o
 periodista Aitor Rivero, dependiam de cada cidade: a fórmula “grupo de 
eleitores” e “partido instrumental” foram as mais utilizadas.
Em 6 de março de 2015, foi lançado oficialmente 
Ahora Madrid, como um partido instrumental formado por essa confluência 
de movimentos cidadãos, associações e novos partidos (contando com o 
Podemos, o Equo e dissidentes da Izquierda Unida). Um verdadeiro 
pós-partido. Não havia orçamento. Faltava ainda fazer as eleições 
primárias, condição inegociável do Ganhemos Madri. Em 24 de março, foi 
realizada a coletiva de imprensa15 de
 apresentação da lista dos vencedores das primárias, encabeçada por 
Manuela Carmena. A ex-juíza era uma perfeita desconhecida. A essa 
altura, faltavam apenas 60 dias para as eleições e poucos pensaram que 
Ahora Madrid poderia conquistar a capital da Espanha.
Manuela, a musa
 A menos de duas semanas das eleições, 
começou o transbordamento cidadão. O Movimento de Liberação Gráfica, em 
Barcelona e Madri, colocou os primeiros grãos de areia. A plataforma #MadriConManuela dinamizou
 a campanha com uma narrativa agregadora, emocional e contagiosa. 
Desmantelou-se o medo. Manuela Carmena se transformou numa musa pop e 
quebrou o bloqueio que a mídia havia tecido contra Ahora Madri. Manuela, a musa ilustrada16, entoava o periódico El País. E quando a mídia quis seguir com o personalismo pop da candidata, surgiu a hashtag e a narrativa #SomosManuela, que chegou a trending topic
 no Twitter por toda a terça-feira, 19 de março. Manuela Carmena se 
tornou uma máscara da multidão, uma candidata apropriável pela 
cidadania. #SomosManuela transbordou em toda parte. Com isso, se 
descentralizou a campanha. Contágio entusiasmado. Conquistou Madri. Toda
 a Espanha. Todos eram Manuela.
A campanha oficial de Ahora Madrid já não definia o
 ritmo dos acontecimentos. Foi mais uma camada dentro de um conjunto 
polifônico de narrativas, estratégias e ações. A manifestação poética em
 19 de maio, no Plaza de Tirso de Molina em Madri, serve como outra 
metáfora para o transbordamento: “Nem os responsáveis pela comunicação 
de Ahora Madrid refletiram o encontro. Nem os comentaristas e 
especialistas, com a praça de Tirso Molina lotada ouvindo poemas, sem 
discursos eleitorais, mas com conteúdo muito político”, disse Ruben 
Caravaca.
Felipe Gil e Francisco Jurado, em Desbordarse para ganar (Transbordar para ganhar)17, descrevem essa nova realidade que vai além das políticas dos ditos “spin doctors”,
 os consultores e gabinetes de partido. Seu texto fala de narrativas 
inclusivas e inacabadas. De protótipos abertos e identidades mutantes, 
que apontam para uma chave em todas as confluências políticas que 
emergiram e continuam emergindo: “deixar-se ser invadido e confiar em 
uma construção coletiva e descontrolada.” Mayo Fuster, pesquisadora em 
cultura colaborativa também enfatizou esse ponto.
 “Um conceito-chave é o de transbordamento (overflow), que se refere à 
capacidade de perder o controle sobre o processo e operar livremente no 
processo de mobilização”.18
A campanha cidadã para Manuela Carmena foi baseada 
em um sistema-rede de pessoas. Um ecossistema humano que se liga com a 
definição histórica de “autopoiesis” feita pelos biólogos chilenos 
Humberto Maturana e Francisco Varela, em 1972: o mecanismo que favorece 
que um sistema vivo se reproduza de forma auto-organizada. Da autopoiese
 das células para a autopoiese de uma cidadania indignada e auto 
organizada desde 2011. Da autopoiese dos nós do Ahora Madrid à mythopoesis19,
 o processo de criação coletiva mitos: a cidadania transformou Manuela 
Carmena em um desejo-corpo comum. “A campanha pró Manuela é uma história
 que não aceitou outro emitente que não os próprios cidadãos, e não 
poderia ter sido gerida por uma estrutura de uso”, diz Nacho Padilla, um
 dos fundadores da plataforma Madri com Manuela.
O que vem a seguir?
Um terremoto político. Para os partidos. Para o velho marketing.
 Para a esquerda tradicional. Um terremoto sistêmico. Também para os 
movimentos sociais. “Os movimentos sociais têm de ter a sua própria 
vida, a autonomia, deve ser massa crítica. Temos que acabar com a figura
 de associação amiga”, nas palavras de Rafael Pena, de Compostela Aberta. 
E como é que o Podemos fica neste novo quadro 
político social? Uma confluência de diferentes forças políticas e 
sociais nas eleições gerais de novembro será possível? O sucesso dos 
laboratórios de confluência – onde Podemos é um motor importante – faz 
muitos sonharem com uma confluência nacional e cívica para a eleição 
geral do próximo mês de novembro. “Sim, nós podemos, mas não com o Podemos apenas”, escreve Isaac Rosa20. Alberto Garzón, candidato presidencial da Izquierda Unida (Esquerda Unitária), já defende publicamente o plano: “Nós não nos jogamos a próxima eleição, mas as próximas gerações.”21 Melhor Ganhemos que Podemos22 é
 um novo mantra coletiva. “O que foi jogado em Madri e Barcelona nas 
municipais/regionais tem uma conexão e correlação com as mudanças que 
vêm para ficar”, diz David Arenal, envolvido em 15M, Ganemos e Ahora 
Madrid.
Raúl Sánchez Cedillo, da Fundación de los Comunes,
 aponta Ahora Madrid como um modelo a seguir: “Há apenas um caso que 
ilustra este tipo de municipalismo soma mais do que Podemos, e é o Ahora
 Madrid. Uma experiência que sem o trabalho e determinação de 
Municipália primeiro e depois Ganemos Madri é inconcebível”. Barcelona 
em Comum obteve 25% dos votos na capital catalã, mas com Izquierda Unida
 (ICV) dentro da confluência. Os 32% dos votos obtidos pelos Ahora 
Madrid, sem o apoio oficial da Izquierda Unida e com menos tempo, abre 
horizontes de esperança.
Se o 15M inaugurou uma nova gramática social23,
 o resultado das eleições municipais espanholas criou um novo 
ecossistema político. Um ecossistema no qual coexistem diferentes formas
 vivas, interdependentes, mais líquidas do que definidas. Não da para 
falar de Podemos sem as confluências. Não dá para explicar Ahora Madrid 
sem Podemos. Em uma confluência nacional hipotética, o motor da mudança 
poderia ser Podemos. A forma e a narrativa seriam as confluências. Os 
nós cidadãos e os movimentos sociais seriam as células autopoiéticas 
para manter o novo ecossistema vivo.
Enquanto isso, Manuela Carmena, atual prefeita de Madri,
 confirma em cada gesto que outra forma de fazer política é possível. 
Viaja de metrô. Locomove-se de bicicleta. Não ataca os inimigos. Escuta.
 Um de seus tweets no dia da eleição, sem teorizar, resume a alma 
agregadora das novas confluências:
No tengáis miedo ni dejéis que os asusten. Ser felices es nuestra unica venganza. Participad y sigamos delante  #Eleccion2015 - Manuela Carmena (@ManuelaCarmena) Maio 24, 2015 
—
Tradução: 
Laila Manuelle (GuerrilhaGRR)