por
José Francisco Botelho, da
Superinteressante
Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa
decidiu escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de papiro
(uma planta importada do Egito) e começou a contar uma história mágica,
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão
forte, que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras
pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto,
que viria a se tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia.
Ela apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os
fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento do
islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os
afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos
legou noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o
livre-arbítrio.
Mas quem escreveu, afinal, o livro mais importante que a humanidade já
viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas? Como criaram o enredo, e
quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está na Bíblia deve ser
levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados? A
resposta tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã,
o autor da Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a
verdade é um pouco mais complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio
de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por
reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da
maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela
não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca
inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé.
Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta
biblia ta hagia – “os livros sagrados”.
A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito
por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo
Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco)
teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os
Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta
Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que
os livros sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação
para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de
Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da
Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã
fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia
revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma
terra sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram
apenas uma entre muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua
cultura e seus escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como
os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os
únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos
habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia
de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh,
menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual algumas pessoas se
salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus
textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e
divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra
aberta, com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em
história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a
colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado
de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil
reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi
redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o
Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional
(e às vezes conflituosa) entre Deus e os homens. Só que, logo no começo
da Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do
Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é
tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em
português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor
fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de
Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido
simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os
fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou
os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto
narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único
autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria:
esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos,
escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm
uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não
derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”.
Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na
primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de
Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda.
“Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto
Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do
Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos
foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta
de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs
uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o
mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7º). Nessa
história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas
no 6º dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores
anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no
início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e
poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início,
Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da
população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois,
os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um
conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos,
os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os
sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o
único e absoluto deus do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo
contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a
existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante combate contra
um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um
combate entre Deus e o Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época,
um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram
radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram
os livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio,
Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10
Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás
a Deus acima de todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma
conduzida por Esdras impunha leis religiosas bem rígidas, como a
proibição do casamento entre hebreus e não-hebreus. Algumas das leis
encontradas no Levítico se assemelham à ética moderna dos direitos
humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o maltrates. Ama-o
como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e
sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e
crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos
sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen
Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para
os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos
de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado
foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as
histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os
redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados)
hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente
Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época.
Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande
centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico
para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é
conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram
versões do Antigo Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de
língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a
mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os
atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem
judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como
Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré
nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos
décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os
deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império
Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C.
Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as
histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um
dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender
suas origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo
Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso,
criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse termo, que vem do
grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa contando
os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela
época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em
forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas
alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da
Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um
conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O
problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de
copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja
por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias,
erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais
erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”,
afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de
Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser
apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no
Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque,
na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o
judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os
sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução
da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os
ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos
já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos
judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o
fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum
entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível
ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o
castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima
dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna
teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e
o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não
teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte
não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas
acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já
adulto, pelo Senhor.
A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por
volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo, mas um rico
comerciante de navios chamado Marcião. Ele nasceu na atual Turquia, foi
para Roma, converteu-se ao cristianismo, virou um teólogo influente e
resolveu montar sua própria seleção de textos sagrados.
A Bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos hoje. Isso
porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje desaparecida, o
gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o
mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas
mortais. O Deus hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava
apenas o mundo material. Já o universo espiritual seria dominado por um
Deus bondoso, o pai de Jesus.
A Bíblia editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11
cartas de Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de
Marcião tivessem triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a
arca de Noé e a travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura
ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido
pelas autoridades eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã
acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em
313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele pretendia
usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império.
Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão de
Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no
Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali,
surgiu o cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo
a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade
sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos
apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os
apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso
definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para
representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos
docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus
autores declarados hereges.
Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra
que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos
apócrifos se perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não
estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o
surgimento da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram
encontrados nas areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto
encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria” que
muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente em vários
trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem feminista:
Madalena é descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os
outros apóstolos.
Nos primórdios do cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e
eram, inclusive, consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no
século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que explicaria a
censura da apóstola e seu testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena
não foi prostituta – idéia que teria surgido por um erro na
interpretação do livro sagrado. No ano 591, o papa Gregório fez um
sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada nas Escrituras
e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa (em 1967, o
Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas – e
suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A
mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à mulher que
ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi
formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha
escrito essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o
cristianismo não pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa
parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do século 2.
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se
deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a
romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o
latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde
viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o
Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17
anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da
Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata foi o
alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão
influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram
clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante
do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim:
cornuta esse facies sua,
ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a
sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura
representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois
belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica
karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A
tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado,
e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao
longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa
realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e
passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às
vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da
Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges
copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas
alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas
Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por
exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis”
no texto do Antigo Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que
disputavam com os espanhóis a posse da península Ibérica.
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais
dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por
isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as
traduções.
Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em massa
sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e do grego
para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa
língua moderna – e a nova versão trouxe várias mudanças, que provocavam
a Igreja.
Logo depois um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o
inglês. No Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por
“congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções
católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas:
como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja.
Resultado? Ele foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu
trabalho é referência para as versões inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi publicada sua
primeira tradução completa para o português, feita pelo protestante João
Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a feita
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001.
Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida
para mais de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do
mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões de cópias do texto
integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há
consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas
do hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de
1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair
leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de
1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga
moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas
estão agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem
versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à
ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible
Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e
fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa, ou grupo de
pessoas, a interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com
propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores fundamentalistas
tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo
que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de
1950.
Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o
apedrejamento de adúlteros, e no Oriente Médio rabinos extremistas usam
trechos da Torá para justificar a ocupação de terras árabes. Por quê?
Porque está na Bíblia, dizem os radicais. Não é nada disso. Hoje, os
principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um
manual de regras literais – e sim como o relato da jornada, tortuosa e
cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é,
afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regada há 3 mil
anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença num
sentido transcendente da existência.
Não há nenhum relato da época de Jesus sobre sua existência
junho de 2011
Ateu acusa religião de ter sequestrado uma herança cultural, a Bíblia
maio de 2011
Consequências da Bíblia para o mal. Mais sobre a Bíblia. Jesus
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