Farsa eleitoral ou luta eleitoral: a prioridade das ruas e a disputa nas urnas
 
MAURO IASI*

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), através de seu ministro, Marco 
Aurélio, anunciou a campanha da instituição para tentar atrair os jovens
 para as eleições. Ao falar das motivações da campanha o Ministro 
afirmou: “Vamos fazer uma propaganda institucional cujo mote será: NÃO 
VEM PARA A RUA, VEM PARA A URNA.” A coordenadora de Comunicação do TSE, a
 “jovem” Verônica Tavares, foi ainda mais explícita ao reafirmar que o 
mote principal será convencer os jovens que “ao invés de ir às ruas, têm
 que ir às urnas” e conclui dizendo que:
“O momento do jovem se expressar é indo às urnas, porque assim ele vai poder se manifestar realmente e fazer parte da decisão”.
A boa notícia é que, ao que parece, as manifestações de massa 
assustaram o governo a ponto de ele ter que fazer uma campanha 
institucional com medo de uma juventude que redescobriu as ruas como 
espaço da política e a luta como meio de exigir aquilo que necessita, 
demonstrando, praticamente, os limites da chamada democracia 
representativa. A má notícia é que a campanha institucional do TSE 
semeia confusão e reforça o que há de pior no conservadorismo político 
que reina entre nós. É, neste sentido, profundamente antidemocrática.
Os governos petistas produziram uma profunda despolitização com a 
intenção de manter sua governabilidade fundada em um pacto social com as
 classes dominantes, isto é, optaram por uma aliança por cima que 
esvazia as formas autônomas e independentes próprias da classe 
trabalhadora que, em grande medida, estão na base da mudança da 
correlação de forças que os levaram ao governo: as greves, as 
manifestações de massa, as lutas populares, etc.
Durante 12 anos de governo petista, não vimos, uma vez se quer, as 
massas trabalhadoras serem chamadas como ator político importante para 
intervir num impasse no qual alguma demanda popular estivesse ameaçada 
por uma resistência conservadora. Pelo contrário, era necessário 
desarmá-la e apassivá-la, para passar sem problemas a reforma da 
previdência, o código florestal, a continuidade da política de 
privatizações, diretas ou indiretas, a prioridade para o agronegócio, a 
farra dos grandes eventos e o abandono da Reforma Agrária.
Na atual estratégia política em curso não há lugar para as lutas de 
massa e movimentos independentes da classe trabalhadora. Pelo contrário,
 quando eles emergem atrapalham a governabilidade costurada por cima, 
via alianças com bancadas de sustentação parlamentar, poderosos lobbies 
que representam os interesses do grande capital monopolista (como 
empreiteiras, bancos, grandes empresas, etc.). É natural que diante da 
explosão social que estamos vendo no Brasil, as instituições se 
preocupem em dizer aos jovens que o espaço para “se manifestar realmente
 e fazer parte da decisão” esta nas urnas e não nas ruas.
Ora, este argumento é falho por inúmeros motivos, mas vamos ao 
essencial. Nenhum centímetro de direito, nenhum milímetro de conquista, 
veio pelas urnas. A própria crise da ditadura e o processo de 
democratização não veio simplesmente porque o MDB cresceu nas eleições 
de 1974, mas, fundamentalmente, pelas lutas de massas e pelas greves 
operárias no final dos anos 1970. Nenhum centímetro de terra foi 
desapropriada para a reforma agrária sem que tivesse mobilização, luta 
e, não raro, mortes para que cercas dessem lugar a assentamentos, nenhum
 direito surgiu do “auto-aperfeiçoamento das instituições”, como 
esperava Marshall e sua famosa “evolução do quadro institucional”, mas 
da luta, como é o caso exemplar da luta das mulheres, para não falar de 
direitos dos trabalhadores que agora são flexibilizados.
Todo Direito nasce fora do direito estabelecido e, muitas vezes, 
contra ele. Menosprezar o papel das lutas sociais e das mobilizações 
como fonte de resistência e defesa de direitos e luta por demandas 
populares não é apenas uma bobagem, é perigoso. Mesmo o direito ao voto 
só existe por conta de muita luta, no mundo e aqui no Brasil. O que o 
TSE, como instrumento do Estado burguês sob direção do governo petista, 
está dizendo, em poucas palavras é: a ÚNICA forma de participar e 
expressar a indignação, o protesto e buscar outros caminhos são as 
eleições, é a URNA e não a rua.
Regressamos a Hobbes. O voto não é poder soberano, é transferência de
 poder soberano. Dizia o pensador inglês do século XVII que o Estado é 
instituído quando as pessoas concordam e pactual em transferir seu 
direito de governar-se a si mesmo à um homem ou uma assembléia de 
homens, de forma que “deverão autorizar todos seus atos e decisões desse
 homem ou assembléia de homens, tais como se fossem seus próprios atos e
 decisões” (Thomas Hobbes, 
Leviatã, capítulo XXI).
Segundo o TSE, os jovens devem preferir as urnas às ruas porque nelas
 eles podem de fato “fazer parte da decisão”. Será? Não ficou 
demonstrado pela história recente o enorme poder que os grupos 
econômicos burgueses têm de intervir na decisão política dos ditos 
representantes, sejam eles parlamentares ou do poder executivo? Ao 
transferirmos o poder para esta “assembléia de homens”, ou para 
determinado homem ou mulher, aceitamos que depois de trabalhar toda uma 
vida devemos nos aposentar ganhando menos e termos nossa pensão 
reajustada de forma diferente daqueles que estão na ativa? Aceitamos que
 quase 50% do fundo público seja sangrado para banqueiros enquanto áreas
 essenciais como saúde ou educação fiquem com o que sobra, concordamos 
como uma política tributária na qual são os pobres que mais pagam 
imposto e os ricos gozem de uma infinidade de isenções e “incentivos”?
Por tudo isso é natural que haja descontentamento com a democracia 
representativa e com as formas institucionais de uma política “bem 
comportada” que quer democratizar o Estado burguês e humanizar o 
capitalismo. O que explodiu na cara destes senhores (e senhoras) amantes
 da lei e da ordem é o limite de sua própria estratégia gradualista e 
antipopular, que de fato expressa o limite da ordem capitalista burguesa
 – que não pode ser reformada. Temos mais que ir para as ruas, ir em 
maior número e mais incisivamente, porque é lá que se joga a parte 
essencial do jogo político e onde os interesses da maioria podem 
emergir.
O crescimento deste descontentamento aparece de duas maneiras: pelo 
crescimento do voto nulo e a rejeição aos processos eleitorais, ou pela 
busca de alternativas políticas na disputa eleitoral.
A defesa do voto nulo cresceu e deve crescer ainda mais e devemos 
respeitar esta posição. Ela expressa não apenas descontentamento, mas a 
compreensão dos limites da farsa eleitoral e da possibilidade de 
alcançar mudanças profundas pela reforma do Estado, como se fosse 
possível usar o Estado burguês para iniciar uma transição que nos 
levasse para além da ordem da mercadoria e do capital. Mas não apenas. O
 problema do voto nulo é que ele abriga conteúdos muito distintos que 
são difíceis de separar. Parte do conteúdo do voto nulo é um 
descontentamento conservador, que culpa a democracia pelo risco da ordem
 que lhes interessa manter, que generaliza a culpa da política como 
atividade corrupta e degenerada e clama pela volta da autocracia 
burguesa sem disfarces.
No campo da busca de alternativas políticas o cenário não é menos 
complicado. O maior risco é o velho discurso do voto útil. O debate 
sobre as alternativas reais e necessárias se esconde por de trás do 
mando enganoso do “menos pior” ou das falsas dicotomias (neoliberalismo 
ou neo-desenvolvimentismo?). Há, ainda, as alternativas artificiais, 
aquelas que aproveitam do desgaste do governo para se beneficiar da 
lógica da alternância, tentando esconder o fato que até ontem estavam 
todos lá e que no fundo defendem o mesmo conteúdo sob outras formas.
Há as alternativas à esquerda e entre elas, sem dúvida, os que ainda 
padecem da crença na possibilidade de um gradualismo reformista que 
possa democratizar a sociedade capitalista e o Estado burguês (ainda que
 reafirmando a necessidade de uma meta socialista), ou que, mesmo 
taticamente, crêem na possibilidade de ocupar pequenos espaços no jogo 
parlamentar como acúmulo político para projetos futuros de transformação
 social.
Diante desse cenário, muitos acreditam que a possibilidade do voto 
nulo se apresenta como uma alternativa necessária, como é o caso de meu 
querido camarada Gás PA, combativo militante do hip hop revolucionário, e
 meu amigo Ivo Tonet, intelectual e militante de primeira ordem. Ivo 
Tonet, que fez uma instigante contribuição ao debate, depois de algumas 
considerações sobre o caráter da sociedade capitalista e a necessidade 
de superação estado burguês (que concordamos), afirma que:
“Em consequência disto, só faz sentido a classe 
trabalhadora participar do processo político-eleitoral se ela puder 
controlar os seus representantes. Mas, ela só poderá controlá-los se 
estiver consciente dos seus interesses e organizada para defendê-los. 
Este controle não é, de modo nenhum, uma questão jurídica, mas política.
 Ele mesmo só teria sentido em um momento em que a luta 
extraparlamentar, contra o capital e contra o próprio Estado, fosse o 
eixo da luta, o que caracterizaria, já, um processo revolucionário.” 
(Ivo Tonet, “Eleições: repensando caminhos”)
Concordamos que não se trata de uma questão jurídica, mas política, 
isto é, não se trata de uma engenharia institucional ou uma reforma 
política qualquer que poderia reverter o caráter de classe do Estado 
burguês, pois este é determinado pelas relações sociais, formas de 
propriedade, a forma mercadoria subssumida ao capital. No entanto, 
quando Tonet afirma que só faria sentido a participação nos processos 
eleitorais quando os trabalhadores puderem “controlar seus 
representantes”, quando a luta extraparlamentar já atingiu a temperatura
 de um “processo revolucionário”, cai num paradoxo, pois desta forma a 
luta eleitoral só seria um meio válido se já estivéssemos chegado ao 
fim.
Afinal, para aqueles que tem uma posição revolucionária, não 
acreditam na reforma da sociedade burguesa/capitalista e defendem uma 
alternativa socialista e comunista, ou seja, uma sociedade fundada na 
livre associação dos produtores, com o fim das classes e, portanto, do 
Estado, que tem convicção que será necessário, portanto, uma ruptura; 
tem algum sentido participar das eleições? A resposta de Tonet é, neste 
caso, simplista, contrapondo de um lado a posição revolucionária e de 
outra a opção por participar das eleições.
O que nos chama a atenção no texto de nosso companheiro Ivo Tonet é 
que ele, frequentemente indica textos de marxistas ou do próprio Marx 
para respaldar sua posição, mas não trás nenhuma citação. Creio que por 
um motivo evidente, se é verdade que encontraria várias passagens destes
 clássicos revolucionários alertando para os limites da luta eleitoral 
ou, mais explicitamente, sobre o equívoco de pensar na possibilidade de 
um gradualismo sem rupturas, o autor não encontraria uma passagem sequer
 destes revolucionários negando a possibilidade de participar das 
eleições, e não somente em momentos revolucionários.
Isso por um simples motivo: todos eles, TODOS, (Marx, Engels, Lênin, 
Troski, Lukács, Gramsci, Rosa, Che, etc.) defendiam a tática de 
participar de eleições, sem perder de vista os objetivos estratégicos. 
Vamos a alguns exemplos:
Marx e Engels na Mensagem do Comitê Central à liga dos comunistas, ao
 tratar da possibilidade, na Alemanha, de no curso da luta ser chamada a
 eleiçãopara uma assembléia nacional representativa, defendem que:
“I. Nenhum núcleo operário seja privado de voto, a 
pretexto algum, [...] II. Ao lado dos candidatos burgueses democráticos 
figurem em toda parte candidatos operários escolhidos na medida do 
possível entre os membros da Liga [Liga dos Comunistas], e que para seu 
triunfo se ponham em jogo todos os meios disponíveis. Mesmo que não 
exista esperança alguma de triunfo, os operários devem apresentar 
candidatos próprios para conservar sua independência [...].”
Lênin e Trostki na direção da Revolução Russa passaram, no momento 
mais agudo da crise, por duas situações nas quais tiveram que decidir 
participar ou não das eleições, uma antes da tomada do poder quando o 
Governo Provisório chamou eleições para uma Conferencia Nacional e outro
 depois de outubro/novembro quando se deu as eleições para a 
Constituinte. Nas duas situações os bolcheviques participaram das 
eleições.
Rosa de Luxemburgo, que por desconhecimento ou interesse é evocada na
 defesa de um espontaneísmo absoluto, afirmava, exatamente no texto em 
que defende a importância da greve de massas e a necessidade de pensar a
 ação espontânea no conjunto da estratégia revolucionária, que:
“O perigo mais iminente que espia há anos o movimento 
operário alemão é o golpe de Estado da reação que pretendesse privar as 
mais largas camadas populares do seu mais importante direito político: o
 sufrágio universal.”
Gramsci que foi deformado até parecer um reformista socialdemocrata 
ou liberal, mas que, ao nosso juízo, manteve-se coerentemente marxista, 
se perguntava em um texto do jornal 
L’OrdineNuovo de 1919, 
intitulado “Os revolucionários e as eleições, o que deveriam esperar das
 eleições os revolucionários conscientes” que escolheria por sufrágio 
universal o Parlamento e seus deputados, como “máscara da ditadura 
burguesa”. E respondia:
“Não esperam decerto a conquista de metade mais um dos 
lugares e uma legislatura, [...] [para] tornar mais fácil e cômoda a 
convivência das duas classes, a dos explorados e dos exploradores. 
Esperam, pelo contrário, que o esforço eleitoral do proletariado consiga
 fazer entrar no Parlamento um bom nervo de militantes [...] para tornar
 impossível [...] um governo estável e forte, para obrigar a burguesia a
 sair do equívoco democrático, a sair da legalidade, e determinar uma 
sublevação dos estratos mais profundos e vastos da classe trabalhadora 
[...].
Por fim, o insuspeitável Comandante Che Guevara em sua critica à via 
pacífica, depois de considerar que em certos países da America Latina, 
por conta de um certo desenvolvimento do capitalismo industrial, 
prevalecia uma visão institucionalista que chegava a acreditar no 
aumento quantitativo de representantes revolucionários no parlamento, 
perguntasse se esta via poderia ser uma caminho para o socialismo em 
nossas terras. Logo depois de afirmar que não crê que isso seja 
possível, o Comandante alerta que não devemos “descartar a possibilidade
 que em algum país a mudança se inicie pela via eleitoral”. E conclui 
que “seria um erro imperdoável descartar por princípio a participação em
 algum processo eleitoral”, pois poderia, em um determinado momento, 
“significar um avanço do programa revolucionário”. Evidente que, segundo
 Che, seria igualmente errado limitar-se a esta forma de luta.
Como vemos, ainda que a experiência histórica nos alerte sobre os 
riscos deste terreno perigoso (e nisso estamos de acordo com Tonet, Gás 
PA e outros), não há uma conexão direta entre o uso da luta eleitoral e o
 caráter irremediavelmente reformista ou conciliador de uma estratégia.
A questão, então, é: se não devemos descartar por princípio (coisa 
que Tonet concorda), seria no quadro atual da situação brasileira uma 
alternativa válida?
Acreditamos que sim e mais que isso, necessária. Ao contrapor as ruas
 e as manifestações, assim como as lutas dos trabalhadores, às urnas, o 
TSE quer expulsar do debate eleitoral a posição da esquerda socialista e
 comunista que vê nas demandas que emergiram das manifestações o germe 
de um programa político anticapitalista e revolucionário para o Brasil, 
que não é só uma alternativa possível, mas urgente e necessária. Desta 
forma espera restringir o debate eleitoral às alternativas no campo da 
ordem (Continua o PT, volta para o PSDB ou tenta o PSB que caiu na 
Rede).
Neste cenário, a negação em participar das eleições pode referendar 
exatamente o que se deseja negar, isto é, que as alternativas estão 
restritas ao bloco dominante e não é possível uma alternativa 
anticapitalista. Colocar este tema no debate é estragar a festa do 
aparente consenso, não como alternativa às ruas, mas para trazer o que 
explodiu nas ruas para dentro do debate eleitoral.
Evidente que o centro são as ruas, as lutas dos trabalhadores, as 
greves e necessidade de construção de uma alternativa real de poder, um 
poder popular, anticapitalista e socialista. Alguns estarão lá, nas 
ruas, e vão defender o voto nulo, outros estarão lá também, nas ruas, e 
vão tentar meter o pé na porta no espaço privativo das eleições no qual 
não nos querem (como mostra as cláusulas de barreira e a restrição ao 
amplo debate de projetos) para defender uma alternativa socialista e 
revolucionária.
Em síntese: anule seu voto, vote na esquerda revolucionária… mas, não saia das ruas! É por lá que passa a mudança.
* 
MAURO IASI
 é Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
 NEPEM, do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do 
livro “O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência” (Boitempo, 2002) e colabora com os livros “Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil” e “György Lukács e a emancipação humana” (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Publicado originalmente no BLOG da BOITEMPO, em 14.05.2014, disponível em http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/14/farsa-eleitoral-ou-luta-eleitoral-a-prioridade-das-ruas-e-a-disputa-nas-urnas/