por 
José Francisco Botelho, da 
Superinteressante
Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa
 decidiu escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de papiro 
(uma planta importada do Egito) e começou a contar uma história mágica, 
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão 
forte, que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras 
pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto, 
que viria a se tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia. 
Ela apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os 
fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento do 
islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os 
afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos 
legou noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o 
livre-arbítrio.
Mas quem escreveu, afinal, o livro mais importante que a humanidade já 
viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas? Como criaram o enredo, e 
quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está na Bíblia deve ser 
levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados? A 
resposta tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã,
 o autor da Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a 
verdade é um pouco mais complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio 
de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por 
reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da 
maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela
 não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca 
inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé.
 Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta
 biblia ta hagia – “os livros sagrados”.
A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito
 por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo 
Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) 
teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os 
Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta 
Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que 
os livros sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação 
para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de 
Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da 
Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã 
fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia 
revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma 
terra sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram 
apenas uma entre muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua 
cultura e seus escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como
 os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os 
únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos 
habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia 
de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh, 
menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual algumas pessoas se 
salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus 
textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e 
divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra 
aberta, com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em 
história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a 
colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado 
de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil 
reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi 
redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o 
Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional
 (e às vezes conflituosa) entre Deus e os homens. Só que, logo no começo
 da Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do 
Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é 
tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em
 português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor
 fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de 
Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido 
simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os 
fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou 
os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto 
narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único 
autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria:
 esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos, 
escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm
 uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não 
derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. 
Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na 
primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de 
Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda. 
“Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto 
Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do 
Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos 
foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta 
de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs
 uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o 
mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7º). Nessa 
história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas 
no 6º dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores 
anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no 
início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e
 poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, 
Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da 
população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, 
os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um 
conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, 
os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os 
sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o 
único e absoluto deus do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo 
contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a 
existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante combate contra 
um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um 
combate entre Deus e o Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época, 
um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram 
radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram 
os livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio,
 Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10 
Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás
 a Deus acima de todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma 
conduzida por Esdras impunha leis religiosas bem rígidas, como a 
proibição do casamento entre hebreus e não-hebreus. Algumas das leis 
encontradas no Levítico se assemelham à ética moderna dos direitos 
humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o maltrates. Ama-o 
como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e 
sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e 
crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos 
sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen 
Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para 
os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos 
de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado 
foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as 
histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os 
redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados) 
hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente 
Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. 
Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande
 centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico
 para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é 
conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram 
versões do Antigo Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de
 língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a
 mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os
 atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem 
judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como 
Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré 
nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos
 décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os 
deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império 
Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C. 
Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as 
histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um 
dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender
 suas origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo 
Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso,
 criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse termo, que vem do 
grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa contando
 os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela
 época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em 
forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas 
alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da 
Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um
 conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O
 problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de 
copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja 
por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, 
erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais 
erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”, 
afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de 
Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser 
apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no 
Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque,
 na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o 
judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os 
sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução
 da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os 
ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos
 já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos 
judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o
 fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum 
entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível
 ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o 
castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima
 dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna 
teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e
 o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não 
teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte 
não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas 
acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já 
adulto, pelo Senhor.
A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por 
volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo, mas um rico 
comerciante de navios chamado Marcião. Ele nasceu na atual Turquia, foi 
para Roma, converteu-se ao cristianismo, virou um teólogo influente e 
resolveu montar sua própria seleção de textos sagrados.
A Bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos hoje. Isso 
porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje desaparecida, o 
gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o 
mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas
 mortais. O Deus hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava 
apenas o mundo material. Já o universo espiritual seria dominado por um 
Deus bondoso, o pai de Jesus.
 A Bíblia editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 
cartas de Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de 
Marcião tivessem triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a
 arca de Noé e a travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura 
ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido 
pelas autoridades eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã 
acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em 
313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele pretendia 
usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império. 
Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão de 
Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no 
Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, 
surgiu o cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo
 a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade 
sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos 
apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os 
apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso 
definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para 
representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos 
docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus 
autores declarados hereges.
Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra 
que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos 
apócrifos se perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não 
estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o 
surgimento da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram 
encontrados nas areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto 
encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria” que 
muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente em vários 
trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem feminista:
 Madalena é descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os 
outros apóstolos.
Nos primórdios do cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e 
eram, inclusive, consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no 
século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que explicaria a 
censura da apóstola e seu testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena 
não foi prostituta – idéia que teria surgido por um erro na 
interpretação do livro sagrado. No ano 591, o papa Gregório fez um 
sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada nas Escrituras
 e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa (em 1967, o 
Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas – e 
suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A 
mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à mulher que 
ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi 
formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha 
escrito essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o 
cristianismo não pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa 
parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do século 2.
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se 
deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a 
romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o 
latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde 
viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa 
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o
 Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 
anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da 
Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata foi o
 alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão 
influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram
 clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante 
do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: 
cornuta esse facies sua,
 ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a 
sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura 
representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois 
belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica 
karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A 
tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado,
 e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao
 longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa 
realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e 
passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às 
vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da 
Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges
 copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas 
alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas 
Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por
 exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” 
no texto do Antigo Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que
 disputavam com os espanhóis a posse da península Ibérica.
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais
 dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por 
isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as 
traduções.
Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em massa
 sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e do grego 
para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa 
língua moderna – e a nova versão trouxe várias mudanças, que provocavam 
a Igreja.
Logo depois um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o
 inglês. No Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por 
“congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções 
católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas:
 como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. 
Resultado? Ele foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu 
trabalho é referência para as versões inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi publicada sua 
primeira tradução completa para o português, feita pelo protestante João
 Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a feita 
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001.
 Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
 De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida 
para mais de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do 
mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões de cópias do texto 
integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há 
consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
 próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas 
do hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de 
1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair 
leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 
1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga 
moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas 
estão agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem 
versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à 
ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible 
Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e 
fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa, ou grupo de
 pessoas, a interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com 
propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores fundamentalistas 
tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo
 que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de 
1950.
Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o
 apedrejamento de adúlteros, e no Oriente Médio rabinos extremistas usam
 trechos da Torá para justificar a ocupação de terras árabes. Por quê? 
Porque está na Bíblia, dizem os radicais. Não é nada disso. Hoje, os 
principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um 
manual de regras literais – e sim como o relato da jornada, tortuosa e 
cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é, 
afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regada há 3 mil 
anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença num 
sentido transcendente da existência.
 
Não há nenhum relato da época de Jesus sobre sua existência
junho de 2011
Ateu acusa religião de ter sequestrado uma herança cultural, a Bíblia
maio de 2011
Consequências da Bíblia para o mal.   Mais sobre a Bíblia.   Jesus 
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