sábado, 21 de fevereiro de 2015

Hacker de partos

Revista GALILEU

Hacker de partos

28/06/2014 - 10H06/ atualizado 14H0606 / por Enrico Fantoni
Criador e criatura: Jorge Odón ao lado de um protótipo do seu aparelho. "Acharam que eu tinha enlouquecido" (Foto: Enrico Fantoni)

Há oito anos, Jorge Odón almoçava com os funcionários da sua oficina mecânica em Banfield, pequena cidade da província de Buenos Aires, na Argentina, quando um deles propôs um desafio: tirar a rolha de dentro de uma garrafa de vinho vazia sem quebrá-la. À primeira vista, tratava-se de uma tarefa impossível. Admitindo a derrota, Odón observou maravilhado quando o desafiante colocou uma sacola plástica no interior da garrafa (deixando para fora a ponta com as alças), inclinou levemente o recipiente para que a rolha encostasse no plástico e começou a assoprar dentro da sacola. Um puxão nas alças e voilà: a rolha estava em sua mão.
Era apenas a ação combinada de dois princípios da física, mas para Odón, que não conhecia o truque, parecia mágica. Naquela noite, o mecânico de 60 anos e pai de cinco filhos acordou de sobressalto com uma ideia: o mesmo princípio poderia ser usado no parto de bebês. “Acontece bastante”, disse a GALILEU em seu escritório improvisado no sótão de sua pequena casa com jardim a uma hora do centro da cidade. “Acordo no meio da madrugada com a solução para um problema sobre o qual passei o dia pensando.” Foi assim que surgiu o OdónDevice, um aparelho que parece um desentupidor de pia com uma sacola plástica enrolada e que substitui o fórceps e a ventosa durante o parto. Mais do que isso, ele pode ajudar a evitar a morte de cinco milhões de recém-nascidos e 150 mil mães ao ano, segundo a Organização Mundial da Saúde.
No dia seguinte à epifania, Odón chamou o amigo e engenheiro Carlos Modena para almoçar. Após a refeição, colocou sobre a mesa alguns objetos, como uma faca, um saca-rolha, um garfo e uma sacola plástica com pão dentro, e repetiu o desafio da véspera. Uma boa meia hora passou antes de Modena dar-se por vencido. Triunfante, Odón repetiu o truque, explicou sua ideia e ofereceu-lhe sociedade. “Mas você é mecânico, o que sabe sobre partos e recém-nascidos?”, afirmou o amigo. Apesar do espanto, ofereceu-se para marcar uma consulta com um obstetra amigo da família. “Modena ficou sentado do outro lado da sala, como querendo mostrar que não tinha nada a ver com aquela loucura”, conta Odón aos risos. “Quando acabei a demonstração e o doutor disse que era uma ideia brilhante, ele já tinha trazido a cadeira mais para perto.” Com a aprovação de um médico, os dois sócios começaram a trabalhar no projeto na oficina de Odón, entre uma troca de freio e um ajuste de motor. Primeiro tentaram com uma jarra de vidro grande e um bonequinho. Depois, passaram a um útero de vidro, encomendado de um artesão, do qual tentavam retirar Luna — a boneca preferida de uma das filhas do inventor. Passavam horas fechados no banheiro. “Meus funcionários começaram a achar que eu tinha ficado louco”, diz Odón. Apesar de rudimentar, o protótipo parecia funcionar — e os dois saíram em busca de novos aliados na medicina.
Odón em ação: O aparelho é primeira grande inovação no ramo da obstetrícia nos últimos 400 anos (Foto: Enrico Fantoni)

PEGADINHA
A primeira porta em que bateram foi a do Cemic, centro médico fundado em 1958 e vinculado à Universidade de Buenos Aires. Lá, trabalha o obstetra Javier Schvartzman, responsável por um parto complicado há 13 anos. Naquele dia 2 de fevereiro de 2001, o trabalho de parto da mulher havia iniciado normalmente — o rompimento da bolsa, a corrida até o hospital, as contrações. Mas logo alguma coisa deu errado, e a sala se encheu de médicos e enfermeiras com expressões preocupadas. O problema estava na posição da criança: ela estava de costas, com o pescoço dobrado e os ombros presos no canal do parto. Como era tarde demais para virá-la, Schvartzman decidiu recorrer ao fórceps. Enquanto puxava a criança, duas enfermeiras deitavam sobre a barriga da mãe, fazendo pressão com seus corpos. O caos foi ampliado pela frase que o médico deixou escapar entre os dentes. “Ela não sai, não consigo tirá-la”, disse ele, antes de pedir às enfermeiras que preparassem uma cesariana. A enfermeira que repetia “está tudo bem, não se preocupe”. Na verdade, não estava: durante o difícil trabalho de parto a criança teve seu crânio fraturado pelo uso do fórceps. Só depois de muitas tomografias foi descartada a possibilidade de qualquer dano neurológico.
“Na primeira vez em que nos encontramos, achei que estava sendo alvo de alguma brincadeira ou pegadinha”, conta Schvartzman, que recebeu o mecânico em sua sala e ficou assistindo enquanto ele tirava a garrafa e um saco plástico de sua sacola, um ritual que repetia sempre que queria falar sobre a sua ideia. “Enquanto isso, eu me perguntava onde poderia estar a câmera e qual de meus colegas estaria envolvido.” Seu ceticismo era justificado: desde o século 18 nada de novo havia sido inventado no campo da obstetrícia. O fórceps, ainda usado em salas de parto no mundo todo, tem 400 anos de idade, e a ventosa é um pouco mais jovem. Em comum, os dois aparelhos costumam causar danos ao bebê. Por isso, era no mínimo improvável que um mecânico aparecesse com algo realmente revolucionário. Após o truque, Odón mostrou seu invento — e naquele ponto o obstetra teve de admitir que se tratava de algo que merecia a sua atenção. Ao lado de outro médico do Cemic, o doutor Hugo Krupitzki, os dois começaram a se reunir periodicamente para aperfeiçoar o dispositivo. As alterações feitas por Odón e Modena na oficina mecânica eram encaminhadas à avaliação dos dois médicos. Schvartzman, que logo se tornaria o principal pesquisador do OdónDevice, logo notou que não era necessário envolver todo o corpo do bebê, mas apenas a cabeça — ideia que mudou o rumo do empreendimento. Com o projeto caminhando a passos largos, era hora de fazer com que ele fosse conhecido também fora da Argentina.
«O OdónDevice pode reduzir drasticamente a incidência dos três principais fatores da morte materna durante o parto: a hemorragia pós-parto, as infecções de útero e o parto obstruído.Ele também diminui o risco do bebê contrair HIV»
MUITOS BENEFÍCIOS
A oportunidade veio num evento da Organização Mundial da Saúde em Buenos Aires. Mario Merialdi, médico italiano à frente da Equipe de Reprodução Humana, da OMS, estava na capital argentina e também recebeu com ceticismo o pedido dos médicos do Cemic para avaliar o OdónDevice.
Frente à insistência, ofereceu aos inventores 10 minutos do seu tempo para um bate-papo numa pequena sala de um hotel cinco estrelas. O encontro estendeu-se por quase duas horas. Merialdi tornou-se o principal apoiador da ideia, e logo pediu a Schvartzman e Krupitzki que trabalhassem para elaborar os protocolos necessários à aprovação do novo dispositivo pela OMS. A primeira missão era provar que ele não era prejudicial à criança ou à mãe. Para isso, Odón e seu time foram levados a Desmoines, nos Estados Unidos, onde uma máquina reproduz em detalhes todas as fases do parto, incluindo as possíveis complicações. O OdónDevice foi aprovado com louvor (veja como o aparelho funciona ao lado) e passou a ser testado em 30 mulheres na Argentina. O mecânico assistiu a todos os partos, fazendo alterações necessárias no aparelho, que será produzido a um custo de US$ 50 pela empresa norte-americana BD (Becton, Dickinson andCompany). O preço foi uma exigência de Odón para que o aparelho seja usado em países em desenvolvimento, que são aqueles que mais sofrem com os óbitos durante o parto.
A empolgação em torno do projeto tem uma explicação: a lista de benefícios trazidos pelo OdónDevice. O aparelho pode reduzir drasticamente a incidência dos três principais fatores de morte materna durante o processo de nascimento: a hemorragia pós-parto, as infecções de útero e o parto obstruído. Outro efeito positivo é o de limitar o contato do bebê com as mucosas do canal de parto, a principal causa de transmissão do vírus HIV ao recém-nascido. Isso significa condições de parto mais seguras para a mãe e o bebê, sobretudo nos países onde os medicamentos retrovirais não são tão acessíveis. Sem falar que ele pode reduzir o número de cesarianas, procedimento caro e usado sem critério pelos médicos em países em desenvolvimento, como o Brasil. Agora, os inventores se preparam para o início da segunda fase dos testes, que se estenderá até o final do ano. Escolhidos aleatoriamente, dois grupos de mulheres na primeira gestação serão objeto do estudo: o primeiro grupo terá seu parto realizado com os meios disponíveis hoje na medicina, enquanto o segundo grupo terá o OdónDevice aplicado sistematicamente.
Enquanto aguardam os resultados dos testes, a vida de todos os protagonistas desta história mudou drasticamente. Mario Merialdi, o médico da OMS que deu o apoio inicial ao projeto, deixou o cargo para trabalhar na Becton, Dickinson andCompany, supervisionando o desenvolvimento e produção do aparelho. Schvartzman e Krupitzki decidiram permanecer à frente do time de experimentos e são convidados para conferências e simpósios em todo o mundo. Nenhum dos dois tem participação nos lucros, mas isso não parece ser motivo de preocupação. “A ideia de ter contribuído para uma invenção que pode mudar a história da medicina não tem preço”, afirma Schvartzman. “Essa é a maior recompensa.” Mas quem passou pela mudança mais radical, claro, foi o agora ex-mecânico de Banfield, Jorge Odón. Ele vendeu a oficina ao filho e agora se dedica à sua invenção. Sua história foi parar na primeira página do jornal norte-americano The New York Times, e a revista Forbes acabou de colocar o OdónDevice entre as cinco invenções mais interessantes no mundo. Odón já não se sente um peixe fora d’água quando faz reuniões com médicos e cientistas de todo o mundo. “Percebi que ter a formação de mecânico é uma vantagem, somos inventores natos”, afirma ele. Depois de tantas visitas a salas de partos, o inventor está gestando outra ideia que, espera, repetirá o sucesso de sua primogênita. Mas, pelo menos por enquanto, prefere não falar sobre o assunto.
 (Foto: Feu/Editora globo)