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                                "Terapia para marido agressor é igual a tratamento anti-drogas"
Especialista em violência doméstica, a ex-diretora do departamento de Justiça americano veio ao Brasil treinar juízes, policiais e advogados e diz que crimes cometidos por quem as mulheres amam só serão detidos em ações conjuntas
por Gisele Vitória
Especialista em violência doméstica, a ex-diretora do departamento de Justiça americano veio ao Brasil treinar juízes, policiais e advogados e diz que crimes cometidos por quem as mulheres amam só serão detidos em ações conjuntas
por Gisele Vitória
DESAFIO
"Esse tipo de crime é complexo e difícil de investigar. Não tem país nem classe social"
Criada no Texas, a promotora 
americana Cindy Dier, 47 anos, é uma mulher sensível. Casada e mãe de 
dois adolescentes, ela sabe usar essa virtude como uma força. Diante dos
 tribunais mais severos, Cindy é capaz de identificar quando uma mulher 
está em perigo e precisa de ajuda, mesmo que ouça o contrário. Até 2009 
ela foi diretora do departamento de Justiça dos Estados Unidos na área 
de violência contra mulheres, nomeada pelo ex-presidente George W. Bush.
  Trabalha com violência doméstica e sexual há mais de 14 anos e há seis
 anos é vice-presidente de direitos humanos da Vital Voices, ONG 
americana criada por Hillary Clinton quando era primeira-dama americana.
"O homem agressor usa a violência de forma pensada.
Ela é um de seus meios de controle na relação"
Na semana passada, Cindy esteve no Brasil 
com uma missão: liderar um workshop de três dias organizado pelo 
Instituto Avon com objetivo de treinar e aprofundar o conhecimento de 
cerca de 70 juízes, promotores, advogados e assistentes sociais 
brasileiros em casos de crimes de agressões domésticas contra mulheres. 
Os desafios são grandes, mas ela vê avanços na causa, ainda que hoje a 
(Organização Mundial de Saúde (OMS) aponte que 30% das mulheres 
agredidas no mundo foram vítimas da violência de seus parceiros. Cindy 
Dier falou com exclusividade a ISTOÉ.
"A Lei Maria da Penha (foto) é uma grande lei de combate à
violência domestica. É referência mundial. A ideia é que ela
saia do papel e seja de fato aplicada"
                               Istoé -
                                      Qual foi o objetivo deste treinamento no Brasil?
 
                                  
                                   
            Cindy Dier  - 
           
           
          
                                     
  O Brasil tem uma grande 
lei de combate à violência doméstica. É uma referência mundial porque 
inclui o foco não só à punição. Ela oferece outros serviços para 
proteção a vítima. A ideia é que essa lei saia do papel e seja aplicada 
em todas as suas possibilidades.
                               Istoé -
                                      A lei Maria da Penha tem
 9 anos e observa-se um aumento de até 18% de casos de violência contra a
 mulher. Isso prova que lei não muda comportamento?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Não há mágica. O processo 
de mudança exige tempo, mas é poderoso. No Brasil, o aumento de casos 
pode ser atribuído a mais boletins de ocorrência e à demonstração de que
 mulheres estão denunciando crimes, o que talvez não acontecesse tanto 
antes. Nos Estados Unidos, o departamento de estatísticas registrou um 
declínio de 64% dos casos de violência cometida por parceiros íntimos 
entre 1993 e 2010. A razão da queda se deve ao trabalho de ação 
coordenada após a promulgação da lei americana de proteção à mulher, de 
1994.
 
                               Istoé -
                                      Há preparo de juízes, delegados, promotores, investigadores no Brasil?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 A resposta curta é sim. 
Conduzo esse treinamento em todo o mundo, incluindo Estados Unidos. Os 
70 profissionais que estiveram aqui têm conhecimento, estão 
familiarizados e comprometidos em produzir efeitos com essa lei.
 
                               Istoé -
                                      E a resposta longa? São comuns relatos de despreparo no primeiro atendimento à mulher agredida.
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Isso foi um dos problemas 
discutidos. Queremos encorajar os operadores de Direito (policiais, 
promotores, juízes) a ter a vítima no centro das suas medidas. Não 
significa que um policial vai passar a ser um assistente social. Nem que
 um promotor tem que passar a ser um investigador. A questão não é você 
dizer ao investigador como fazer o trabalho dele. Ele sabe fazer. O 
importante é que eles vejam, entendam e sintam porque devem levar esse 
processo tão a sério. Não queremos trazer receitas prontas, mas 
motivá-los e aparelhá-los. A ideia é que eles trabalhem juntos para 
formar uma rede de segurança para a mulher. O fato é que esse é um crime
 de maior complexidade. Não é fácil investigar nem fazer o processo 
legal. A violência doméstica é um crime diferente.
 
                               Istoé -
                                      Como define essa complexidade? Afinal, os criminosos são maridos...
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 As vítimas freqüentemente 
amam seus agressores e abusadores. Elas detestam a violência, mas 
gostariam de voltar ao tempo quando o agressor era um homem carinhoso. 
Essa mulher às vezes volta ou fica no relacionamento. Mas se sabe, na 
maioria dos casos, que essa esperança é infundada. Temos que entender 
esse tempo delas. Se não forem bem atendidas e respeitadas na decisão de
 retomar a relação, não voltarão a procurar os agentes quando a 
violência voltar. 
                               Istoé -
                                      Como foi o treinamento aqui?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Trabalhamos casos que não 
são redondinhos: quando o B.O é incompleto, quando há testemunhas que 
não querem se envolver. Algumas vítimas despertam simpatia, outras não 
são agradáveis. As vítimas não contam direitinho tudo o que aconteceu, 
na ordem cronológica. Deve-se considerar que a mulher está amedrontada. 
Ela se casou jovem ou nunca trabalhou. Ela não sabe se seria capaz de se
 sustentar ou a seu filho. São complicações.
 
                               Istoé -
                                      Qual foi o caso que a senhora conduziu e que mais a impressionou?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Em 1994, no Texas, atendi 
como promotora uma mulher que denunciou um crime grave, mas depois 
voltou atrás. Isso aconteceu logo após ter sido aprovada lá uma lei 
anti-violência à mulher. A moça estava aterrorizada por ter que 
testemunhar. Eu não poderia arquivar o caso. Esse marido tinha tocado 
fogo nesta mulher. Ele tinha queimado o cabelo dela, o rosto dela, tinha
 causado cicatrizes profundas e tudo isso na presença do bebê de nove 
meses que eles tinham juntos. O réu nunca iria confessar o crime. Eu 
disse a ela: ‘Eu não vou te chamar para testemunhar, mas terei que 
prosseguir.”
 
                               Istoé -
                                      E como a senhora agiu?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Montei o processo como um 
caso de assassinato. O juiz me disse: “Como você levará esse caso a 
julgamento se a vítima não testemunha?” Eu respondi: “Ainda bem que 
vossa excelência não pensa da mesma maneira em casos de vítimas de 
assassinato, que não podem comparecer.”  Ele foi obrigado a rir e 
aceitou. Mas a maior surpresa estava por vir. No julgamento, o advogado 
de defesa do marido chamou uma testemunha. Pode imaginar quem era? A 
própria vítima. Ela apareceu no tribunal de juri para dizer que tudo foi
 um acidente. Alegou que o marido tinha muito senso de humor e quis 
fazer uma brincadeira. Ela contou que ele despejou o fluido do isqueiro e
 jogou em cima dela de brincadeira, e também de brincadeira encostou o 
cigarro em seu rosto, que pegou fogo.
 
                               Istoé -
                                      E como a senhora se saiu?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Eu não faria nenhuma 
pergunta que fosse deixá-la em perigo. Então perguntei se ela ainda 
estava vivendo com o agressor, quem pagava as contas, quando foi a 
última vez que ela trabalhou, quem tinha trazido-a ao tribunal naquele 
dia. Em voz alta, eu disse a ela: “Eu sei que o agressor está aqui 
sentado, ouvindo o que você está dizendo”. Perguntei quem iria levá-la 
para casa. Quem estaria com ela à noite quando a porta fosse trancada e 
ela fosse para a cama. Nos argumentos finais, disse aos 12 jurados: se 
vocês acreditam que hoje ela disse a verdade, sabendo que à noite estará
 sozinha com ele, devem inocentá-lo. O veredicto foi unânime: culpado. E
 isso mudou o procedimento no Texas. A sentença foi de pena em regime 
aberto. Mas ele violou uma das condições e foi mandado para a prisão por
 cinco anos.
 
 
                               Istoé -
                                      Como a senhora explica os dilemas femininos nessa hora?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 As mulheres querem que a 
violência acabe mas desejam a família unida. Até que  se convencem que a
 violência não vai parar. Muitas não querem os agressores na prisão. 
Primeiro, para não impedi-lo de trabalhar e sustentar os filhos. E para 
proteger seus filhos do estigma de ter um pai na prisão. E aí vem o 
momento difícil para a promotoria: atender esse pedido da mulher 
agredida ou colocar o criminoso em reclusão para evitar que cometa o 
mesmo crime com outra mulher? Isso exige muita reflexão.
 
                               Istoé -
                                      Por que uma quantidade tão alta de homens agride suas mulheres e namoradas? Por que matam?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 São homens que tentam 
ganhar poder e controle sobre o relacionamento. E nós vemos uma escalada
 de violência  e gravidade ao longo da sua vida. O processo se 
intensifica em períodos onde o agressor se sente inseguro ou tem medo 
que a mulher vá deixá-lo. Há programas que tem tido sucesso na 
modificação de comportamento dessas pessoas. Uma terapia para marido 
agressor é similar ao tratamento anti-drogas. É igual e isso tem maior 
eficácia quando a pessoa sente que foi ao fundo do poço. Não é tratar a 
raiva ou fazer terapia de casal. Não é que a pessoa é meio esquentadinha
 que precisa aprender a se controlar. São homens que conseguem se 
controlar melhor do que qualquer outra pessoa.
 
                               Istoé -
                                      Qual é o perfil do homem que bate em mulher?
                           
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 É um homem que usa a 
violência de forma pensada. E isso é só uma das partes do sistema que 
ele criou para manter o controle. Quase sempre há o controle por meio 
das finanças. A agressão emocional. Ele define quem a mulher pode ver, 
que amigas ela pode ter, quanto tempo fica com a família. A violência é 
um dos meios de controle.
                               Istoé -
                                      Como evitar que certas mulheres se submetam a esse controle?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Cada mulher é diferente. 
Elas têm que passar pelo seu próprio processo. Uma dos modos de ajudar a
 vítima é mostrar o padrão de evolução da violência. Mostramos os 
efeitos que as crianças vão sofrer por testemunhar essa violência.
 
                               Istoé -
                                      A presidente Dilma 
Rousseff sancionou a lei do Feminicídio, tornando crime hediondo o 
assassinato de mulheres decorrente de violência doméstica. Isso será 
eficaz?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
  Lógico que é muito bom 
haver uma lei rigorosa para proteger mulheres de um crime tão hediondo 
como o de ser morta por uma pessoa em quem ama e confia. Mas todo o 
esforço desses três dias de treinamento é na prevenção para que, 
idealmente, não seja necessário que aplicar essa lei. O que queremos é 
atacar o problema desde o começo, como qualquer doença. A punição é um 
pedaço da lei, mas há outros. É vital penalizar o agressor e mostrar 
claramente que ele deve ser responsabilizado. Mas é preciso dar poder a 
essa mulher para que ela se sinta confiante e que saiba sair dessa 
situação.
 
                               Istoé -
                                      Mulheres mais poderosas estão imunes a violência?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 As mulheres precisam se 
tornar mais poderosas, mas não podem se iludir. Uma mulher não 
conseguirá sozinha deter a violência. Ela não controla a decisão de um 
marido de usar a violência. O dono da decisão de agredir é o marido. Uma
 mulher mais confiante pode escolher sair dessa situação, mas não cabe a
 ela a responsabilidade de evitar a agressão. Ela não pode ter esse 
peso.
 
                               Istoé -
                                      Vê no Brasil particularidades na violência contra a mulher?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Na verdade, não. Sempre me surpreendendo: a violência doméstica é semelhante em todo o mundo. Não tem País ou classe social.
 
                               Istoé -
                                      Mais mulheres vão morrer vítimas da violência doméstica?
 
                                  
                                   
           
            Cindy Dier  - 
           
          
                                     
 Mais mulheres serão 
feridas e mortas até o ponto que nós, como sociedade, declaramos 
decididamente que não vamos mais tolerar isso. Podemos dar uma virada 
nisso a partir de uma intervenção decisiva ao primeiro sinal de 
violência doméstica.