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Por Slavoj Žižek.*
Blog da Boitempo

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real!(2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012),Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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sábado, 19 de setembro de 2015
Žižek: não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar o capitalismo global
Por Slavoj Žižek.*Blog da Boitempo
“Nós
 não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar o capitalismo 
global. Os refugiados não chegarão à Noruega. Mas a Noruega que eles 
procuram sequer existe.”
Em seu estudo clássico On Death and Dying,
 Elisabeth Kübler-Ross propôs o famoso esquema de cinco estágios de como
 reagimos ao saber que temos uma doença terminal: negação (a pessoa 
simplesmente se recusa a aceitar o fato: “Isso não pode estar 
acontecendo, não comigo.”); raiva (que explode quando já não podemos 
negar o fato: “Como isso pode acontecer comigo.”); negociação (a 
esperança de que podemos de alguma forma adiar ou diminuir o fato: 
“Apenas deixe-me viver para ver meu filho graduado.”); depressão 
(desinvestimento libidinal: “Eu vou morrer, então por que se preocupar 
com alguma coisa?”); aceitação (“Eu não posso lutar contra isso, mas eu 
bem posso me preparar para isso.”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou 
esses estágios a qualquer forma de perda catastrófica pessoal 
(desemprego, morte de um ente querido, divórcio, vício em drogas) e 
enfatizou que eles não acontecem necessariamente na mesma ordem, nem que
 os cinco estágios são vivenciados por todos os pacientes.
A
 reação da opinião pública e das autoridades na Europa Ocidental ao 
fluxo de refugiados da África e do Oriente Médio não teve uma combinação
 semelhante de reações disparatadas? Houve a negação, agora diminuindo: 
“Não é tão sério, vamos simplesmente ignorar.” Existe uma raiva: “Os 
refugiados são uma ameaça ao nosso modo de vida, entre eles escondem-se 
fundamentalistas muçulmanos, eles precisam ser barrados a qualquer 
preço”. Há negociação: “Ok, vamos estabelecer quotas e apoiar os campos 
de refugiados nos seus próprios países!” Há depressão: “Estamos 
perdidos, a Europa está se transformando em uma Europa-stan.” O que está
 faltando é a aceitação, o que, neste caso, significaria um consistente 
plano pan-europeu para lidar com os refugiados.
Então,
 o que fazer com centenas de milhares de pessoas desesperadas, que 
esperam no Norte da África, fugindo da guerra e da fome, tentando 
atravessar o mar e encontrar refúgio na Europa?
Existem
 duas principais respostas. Liberais de esquerda expressam sua 
indignação com a forma como a Europa está permitindo que milhares de 
pessoas se afoguem no Mediterrâneo. O argumento deles é que a Europa 
deve mostrar solidariedade abrindo as portas amplamente. Os populistas 
anti-imigrantes reivindicam que devemos proteger nosso modo de vida e 
deixar que os africanos resolvam seus próprios problemas.
Qual
 é a melhor solução? Parafraseando Stalin, as duas são piores. Aqueles 
que defendem a abertura das fronteiras são grandes hipócritas: 
Secretamente, eles sabem muito bem que isso nunca vai acontecer, uma vez
 que provocaria uma imediata revolta populista na Europa. Eles jogam com
 a bela alma que os fazem se sentir superiores diante de um mundo 
corrompido enquanto secretamente participam dele.
O
 populista anti-imigrante também sabe muito bem que, deixados por si 
mesmos, os africanos não terão sucesso na mudança de suas sociedades. 
Por que não? Porque nós, norte-americanos e europeus ocidentais, estamos
 impedindo-os. Foi a intervenção europeia na Líbia que jogou o país no 
caos. Foi o ataque dos Estados Unidos ao Iraque que criou as condições 
para o surgimento do ISIS [Estado Islâmico do Iraque e do Levante]. A 
guerra civil em curso na República Centro-Africana não é apenas uma 
explosão do ódio étnico; França e China estão lutando pelo controle dos 
recursos petrolíferos através de seus procuradores.
Mas
 o caso mais claro de nossa responsabilidade é o Congo de hoje, que está
 novamente emergindo como o “coração das trevas” africano. Em 2001, uma 
investigação da ONU, sobre a exploração ilegal de recursos naturais no 
Congo, descobriu que os conflitos internos acontecem para se ter o 
acesso, o controle e o comércio de cinco minerais fundamentais: coltan, 
diamante, cobre, cobalto e ouro. Sob a fachada de guerra étnica, nós 
podemos identificar o funcionamento do capitalismo global. O Congo não 
existe mais como um estado unificado; é uma multiplicidade de 
territórios governados por senhores da guerra locais, que controlam o 
seu pedaço de terra com um exército, que como regra, inclui crianças 
drogadas. Cada um desses senhores da guerra estão ligados pelos negócios
 com empresas ou corporações estrangeiras que exploram as riquezas 
minerais da região. A ironia é que muitos destes minerais são usados em 
produtos de alta tecnologia, tais como laptops e telefones celulares.
Retire
 as empresas estrangeiras de alta tecnologia da equação e toda a 
narrativa de guerra étnica alimentada por velhas paixões desmorona. Este
 é o lugar onde devemos começar se realmente queremos ajudar os 
africanos e parar com o fluxo de refugiados. A primeira coisa é lembrar 
que a maioria dos refugiados vem de Estados falidos – onde a autoridade 
pública é inoperante, pelo menos em grandes regiões – Síria, Líbano, 
Iraque, Líbia, Somália, Congo, etc. Essa desintegração do poder do 
Estado não é um fenômeno local, mas o resultado da economia e da 
política internacional, em alguns casos, como a Líbia e o Iraque, um 
resultado direto da intervenção ocidental. É claro que o aumento destes 
“Estados falidos” não é um inesperado infortúnio, mas sim uma das formas
 que as grandes potências exercem seu colonialismo econômico. Deve-se 
notar também que as sementes dos “Estados falidos” do Oriente Médio 
devem ser procuradas nas fronteiras arbitrárias desenhadas após a 
Primeira Guerra Mundial pelo Reino Unido e a França, que criaram uma 
série de Estados “artificiais”. Com o propósito de unir os sunitas na 
Síria e no Iraque, o ISIS está, em última análise, juntando o que foi 
dilacerado pelos mestres coloniais.  
Não
 se pode deixar de notar o fato de que alguns países não muito ricos do 
Oriente Médio (Turquia, Egito, Iraque) são muito mais abertos aos 
refugiados do que os realmente ricos (Arábia Saudita, Kuwait, Emirados 
Árabes, Qatar). Arábia e Emirados não receberam refugiados, embora façam
 fronteira com países em crise e são culturalmente muito mais próximos 
aos refugiados (que são na maioria muçulmanos) do que a Europa. Arábia 
Saudita tem até mesmo devolvido alguns refugiados muçulmanos da Somália.
 Isto porque a Arábia é uma teocracia fundamentalista que não pode 
tolerar estrangeiros intrusos? Sim, mas deve-se também ter em mente que 
esta mesma Arábia Saudita é totalmente integrada à economia do Ocidente.
 Do ponto de vista econômico, Arábia Saudita e Emirados, que afirmam 
depender totalmente das suas receitas petrolíferas, não são puros postos
 avançados do capital ocidental? A comunidade internacional deveria 
colocar toda pressão em países como Arábia Saudita, Kuwait e Qatar para 
fazer seus deveres de aceitarem um grande contingente de refugiados. 
Além disso, por estar apoiando os rebeldes anti-Assad, a Arábia Saudita é
 o grande responsável pela situação na Síria. E, em diferentes graus, o 
mesmo se aplica para muitos outros países – nós estamos todos nisso.
Uma nova escravidão
Outra
 característica partilhada por esses países é o surgimento de uma nova 
escravidão. Enquanto o capitalismo se legitima como o sistema econômico 
que sugere e promove a liberdade individual (como uma condição do 
mercado cambial), ele gerou por conta própria a escravidão, como parte 
de sua dinâmica: embora a escravidão estivesse quase extinta no final da
 Idade Média, explodiu cedo na modernidade e durou até a Guerra Civil 
Americana. E hoje, numa nova época do capitalismo global, pode-se 
arriscar a hipótese de que uma nova era da escravidão também está 
surgindo. Embora não exista um estatuto jurídico legal para escravizar 
as pessoas de forma direta, a escravidão adquire uma multiplicidade de 
novas formas: na península da Arábia (Emirados, Qatar, etc.), milhões de
 trabalhadores imigrantes são de fato privados de direitos civis 
elementares e liberdades; o controle total sobre milhões de 
trabalhadores em fábricas asiáticas, muitas vezes organizados 
diretamente como campos de concentração; o uso massivo de trabalho 
forçado na exploração de recursos naturais em muitos estados africanos 
centrais (Congo etc.). Mas nós não temos que olhar tão longe. Em 01 de 
dezembro de 2013, pelo menos sete pessoas morreram quando uma fábrica de
 roupas de propriedade chinesa em uma zona industrial na cidade italiana
 de Prato, a 19 km do centro de Florença, incendiou, matando 
trabalhadores presos em um dormitório de papelão improvisado, construído
 no local.  O acidente ocorreu em Macrolotto, distrito industrial da 
cidade conhecido por suas fábricas de vestuário. Milhares de imigrantes 
chineses estariam vivendo ilegalmente na cidade, trabalhando até 16 
horas por dia para uma rede de oficinas atacadista que confeccionava 
roupa barata.
Nós,
 portanto, não temos que olhar para a vida miserável dos novos escravos 
nos longínquos subúrbios de Xangai (ou em Dubai e Qatar) e 
hipocritamente criticar a China – a escravidão pode estar aqui mesmo, 
dentro de nossa casa, nós apenas não vemos (ou melhor, fingimos não 
ver). Este novo apartheid de facto, esta explosão sistemática do número 
de diferentes formas de escravidão de facto, não é um acidente 
lamentável, mas uma necessidade estrutural do capitalismo global de 
hoje.
Mas
 estão os refugiados entrando na Europa apenas oferecendo-se para se 
tornar força de trabalho precário, em muitos casos, à custa dos 
trabalhadores locais, que reagem a essa ameaça unindo-se a partidos 
político anti-imigrantes? Para a maioria dos refugiados, esta será a 
realidade de seu sonho realizado.
Os
 refugiados não estão somente fugindo de suas terras devastadas pela 
guerra; eles também estão possuídos por um sonho. Podemos ver repedidas 
vezes em nossas telas. Refugiados no Sul da Itália deixam claro que eles
 não querem ficar lá, eles querem majoritariamente viver nos países 
escandinavos. E o que dizer dos milhares de acampados em Calais que não 
estão contentes com a França, mas estão dispostos a arriscar suas vidas 
para entrar no Reino Unido? E o que dizer de dezenas de milhares de 
refugiados dos países Bálcãs que querem ao menos chegar à Alemanha? Eles
 declaram esse sonho como um direito incondicional, e exigem das 
autoridades europeias não só alimentação adequada e cuidados médicos, 
mas também o transporte para o local de sua escolha.
Há
 algo enigmaticamente utópico nesta demanda impossível: como poderia a 
Europa realizar o sonho deles, um sonho que, aliás, está fora do alcance
 para a maioria dos europeus. Quantos europeus do Sul e do Leste não 
prefeririam viver na Noruega? Pode-se observar aqui o paradoxo da 
utopia: precisamente quando as pessoas se encontram em situação de 
pobreza, aflição e perigo, e seria de se esperar que eles estivessem 
satisfeitos com o mínimo de segurança e bem-estar, a utopia absoluta 
explode. A dura lição para os refugiados é que “não há Noruega”, mesmo 
na Noruega. Eles terão que aprender a censurar seus sonhos: Em vez de 
persegui-los, em realidade, eles devem se concentrar em mudar a 
realidade.
Um tabu da esquerda
Um dos grandes tabus da esquerda terá que ser quebrado aqui: a noção de que uma maneira de proteger um modo de vida [way of life]
 é em si mesma protofascista ou racista. Se não abandonarmos essa noção,
 abrimos o caminho para a onda anti-imigrante que prospera em toda a 
Europa. (Mesmo na Dinamarca, o Partido Democrático, anti-imigrante, pela
 primeira vez ultrapassou os sociais-democratas e tornou-se o partido 
mais forte do país.) Responder às preocupações das pessoas comuns sobre 
as ameaças ao seu especifico estilo de vida também pode ser feito a 
partir da esquerda. Bernie Sanders é uma prova viva disso! A verdadeira 
ameaça para nossos estilos de vida comunitários não são os estrangeiros,
 mas a dinâmica do capitalismo global: Só nos Estados Unidos, as 
mudanças econômicas das ultimas décadas fez mais para destruir a 
convivência comunitária das cidades pequenas do que todos os imigrantes 
juntos.
A
 reação padrão da esquerda liberal é, naturalmente, uma explosão de 
arrogante moralismo: No momento em que damos alguma credibilidade a 
“proteção do nosso modo de vida”, nós já comprometemos a nossa posição, 
uma vez que propomos uma versão mais modesta do que os populistas 
anti-imigrantes defendem abertamente. Esta não é a história das últimas 
décadas? Partidos centristas rejeitam o racismo aberto dos populistas 
anti-imigrantes, mas afirmam simultaneamente “compreender as 
preocupações das pessoas comuns” e promulgam uma versão mais “racional” 
da mesma política.
Mas,
 embora exista um núcleo de verdade, as queixas moralistas – “A Europa 
perdeu a empatia, é indiferente para o sofrimento dos outros,” etc. – 
são apenas o reverso da brutalidade anti-imigrante. Ambas as posições 
compartilham o pressuposto, o que não é de forma alguma evidente, que a 
defesa do próprio modo de vida exclui o universalismo ético.  Assim, 
deve-se evitar ser pego pelo jogo liberal de “quanto de tolerância 
podemos oferecer.” Devemos tolerar eles impedirem suas crianças de irem 
para as escolas estaduais, eles arrumarem casamentos para seus filhos, 
eles brutalizarem gays nos seus espaços? A este nível, é claro, nós 
nunca somos suficientemente tolerantes, ou somos sempre tolerantes 
demais, negligenciando os direitos das mulheres, etc. A única maneira de
 sair deste impasse é movendo-se para além da mera tolerância ou 
respeito em direção a uma luta comum.
Nesse
 sentido, é preciso ampliar a perspectiva: Os refugiados são o preço da 
economia global. Em nosso mundo global, mercadorias circulam livremente,
 mas as pessoas não: novas formas de apartheid estão surgindo. O tema de
 parede oca, da ameaça de sermos inundado por estrangeiros, é 
estritamente imamente ao capitalismo global, é o índex do que é falso 
sobre a globalização capitalista. Enquanto as grandes migrações são uma 
característica constante da historia da humana, a sua principal causa na
 historia moderna são as expansões coloniais: Antes da colonização, o 
Sul Global consistia, principalmente, de comunidades locais 
autossuficientes e relativamente isoladas. Foi a ocupação colonial e o 
comércio de escravos que lançou este modo de vida para fora dos trilhos e
 renovou as migrações em larga escala.
A
 Europa não é o único lugar que está experimentando uma onda de 
imigração. Na África do Sul, existem mais de um milhão de refugiados do 
Zimbabwe, que estão expostos a ataques de pobres locais por roubarem 
empregos. E haverá mais, não apenas por causa de conflitos armados, mas 
por conta dos novos “Estados párias”, crise econômica, desastres 
naturais (agravados pela mudança climática), desastres criados pelo 
homem, etc. Sabe-se que, após o desastre nuclear de Fukushima, por um 
momento, as autoridades japonesas imaginaram que toda área de Tóquio – 
20 milhões de pessoas – deveria ser evacuada. Para onde essas pessoas 
iriam? Em que condições? Eles deveriam receber um pedaço de terras ou 
dispersar ao redor do mundo? E se o Norte da Sibéria tornar-se mais 
habitável e arável, enquanto várias áreas subsaarianas tornam-se 
demasiadamente secos para que uma grande população suporte viver lá? 
Como será organizado o intercambio de populações? No passado, quando 
coisas similares aconteceram, as mudanças sociais ocorreram de uma forma
 espontaneamente selvagem, com violência e destruição (recorde as 
grandes migrações no final do Império Romano) – Nos dias de hoje, tal 
perspectiva é catastrófica, com armas de destruição em massa disponíveis
 para muitas nações.
Portanto,
 a principal lição a ser aprendida é que a humanidade deve estar 
preparada para viver de forma mais “plástica” e nômade: Rápidas mudanças
 climáticas, locais e globais, podem exigir, de forma inédita, 
transformações sociais em larga escala. Uma coisa é clara: a soberania 
nacional terá que ser radicalmente redefinida e novos níveis de 
cooperação global inventados. E o que dizer das enormes mudanças na 
economia e padrões de conservação do clima devido a escassez de água e 
energia? Através de quais mecanismos de decisão tais mudanças serão 
decididas e executadas? Aqui uma série de tabus deverá ser quebrado e um
 conjunto de medidas complexas realizadas.
Em
 primeiro lugar, a Europa terá de reafirmar seu total empenho em 
proporcionar condições dignas para a sobrevivência dos refugiados. Não 
deve existir compromisso aqui: grandes migrações são o nosso futuro, e a
 única alternativa a esse empenho é a barbárie renovada (que alguns 
chamam de “choque de civilização”).
Em
 segundo lugar, como consequência necessária deste empenho, a Europa 
deve organizar-se e impor regras e regulamentos claros. O controle do 
Estado ao fluxo de refugiados deve ser implantado através de uma vasta 
rede administrativa abrangendo toda a União Europeia (para evitar as 
barbáries locais como as da Hungria ou Eslováquia). Os refugiados devem 
ser tranquilizados de sua segurança, mas também devem acatar as áreas de
 convivência atribuídas pelas autoridades europeias, além disso, 
precisam respeitar as leis e as normas sociais dos Estados europeus: 
nenhuma tolerância a violência religiosa, sexista ou étnica de qualquer 
dos lados, nenhum direito de impor sobre os outros o próprio modo de 
vida ou religião, o respeito da liberdade de cada individuo de abandonar
 seus costumes comunais, etc. Se uma mulher decide cobrir seu rosto, sua
 decisão deve ser respeitada, mas se ele escolhe não cobri-lo, sua 
liberdade deve ser garantida. Sim, um conjunto privilegiado de regras do
 modo de vida europeu. Estas regras devem ser claramente estabelecidas e
 aplicadas, por medidas repressivas (contra os estrangeiros 
fundamentalistas, bem como contra os nossos próprios racistas 
anti-imigrantes), se necessário.
Em
 terceiro lugar, um novo tipo de intervenção internacional terá de ser 
inventada: intervenções militares e econômicas que evitem as armadilhas 
neocoloniais. E sobre as forças da ONU que garantem a paz na Líbia e no 
Congo? Uma vez que tais intervenções estão intimamente associadas com o 
neocolonialismo, serão necessárias extremas salvaguardas. Os casos de 
Iraque, Síria e Líbia demonstram como o tipo de intervenção errada (no 
Iraque e Líbia), bem como a não intervenção (na Síria, onde, sob a 
aparência de não intervenção, os poderes externos da Rússia, Arábia 
Saudita e os EUA estão totalmente engajados) acabam no mesmo impasse.
Em
 quarto lugar, a tarefa mais difícil e importante é uma mudança 
econômica radical que deve abolir as condições sociais que criam 
refugiados. A última causa dos refugiados é o próprio capitalismo global
 de hoje e seus jogos geopolíticos, e se nós não transformarmos isso 
radicalmente, os imigrantes da Grécia e de outros países europeus em 
breve se juntarão aos refugiados africanos. Quando eu era jovem, uma 
tentativa organizada de regulamentar o bem comum [commons] foi chamada de comunismo. Talvez devêssemos reinventar isso. Talvez, no longo prazo, isso seja a única solução.
Tudo isso é uma utopia? Talvez, mas se não fizermos isso, então, estamos realmente perdidos, e nós merecemos estar.
* Publicado originalmente em inglês no In these times em 9 de setembro de 2015. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura para o Blog da Boitempo.
***
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Violência, seis reflexões laterais * Kindle (Amazon | Travessa)
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real!(2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012),Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.