Crônica da Rússia, à beira da revolução
Um grande escritor e cartunista
contemporâneo reconstitui os meses que antecedram a tomada do poder
pelos bolcheviques. No trecho a seguir, agosto de 1917, quando a direita
tentou retomar o poder e Lenin teve de fugir para a Finlândia
OutrasPalavras
Publicado 15/02/2018 às 12:22
Por China Miéville
—
MAIS: DE CHINA MIÉVILLE:
Outubro — reconstituição histórica
(Editora Boitempo, R$ 59)
Marxismo e Fantasia
(Artigo publicado na revista Margem Esquerda, nº 23) (baixar grátis o arquivo)
A Cidade & a Cidade — ficção
(Editora Boitempo, R$ 49)
Estação Perdido — ficção
(Editora Boitempo, R$ 89)
Participantes de Outros Quinhentos podem adquirir estes e dezenas de outros livros com 20%, 40% e 60%, em Outros Livros, nossa loja virtual
==
AGOSTO: EXÍLIO E CONSPIRAÇÃO
Naqueles últimos dias de verão, enquanto a direita planejava uma limpeza, uma indulgência milenarista florescia. Música e dança a noite toda, vestidos e gravatas de seda tingida, moscas rondando bolos quentes, vômito e bebida entornada. Longos dias, quentes noites orgíacas. Um sibaritismo de fim de mundo. Em Kiev, disse a condessa Speránski, havia “jantares com bandas e corais ciganos, bridge e até tango, pôquer e romances”. Assim como em Kiev, também nas cidades Rússia afora, entre os ricos sonhadores.
Em 3 de agosto, o VI Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo – o Congresso Bolchevique – aprovou por unanimidade a resolução em favor de um novo lema. Um meio-termo entre os impacientes “leninistas”, que enxergavam a revolução entrando em uma nova fase, pós-Soviete, e os moderados, que ainda acreditavam que podiam trabalhar com os socialistas à sua direita para defender a revolução. Mesmo assim, a importância simbólica da mudança de palavras era imensa. As lições passadas deram calma, os apelos mudaram. Julho havia cumprido sua missão. Os bolcheviques não pediam mais “Todo o poder aos sovietes”. Em vez disso, eles aspiravam ao “Fim da ditadura da burguesia contrarrevolucionária”.
*
O
Soviete mudou de endereço, conforme solicitado. O Instituto Smolni foi
construído no início dos anos 1800: um grandioso edifício neoclássico no
distrito de Smolni, a leste do centro da cidade, às margens do Neva, de
corredores cavernosos, assoalho branco, iluminação elétrica pálida. No
térreo havia um grande refeitório entre os corredores alinhados e
repletos de escritórios sempre cheios de secretários, deputados e
facções dos partidos do Soviete, suas organizações militares, seus
comitês e seus conclaves. Pilhas de jornais, panfletos, pôsteres cobriam
as mesas. Metralhadoras se projetavam das janelas. Soldados e
trabalhadores se comprimiam nas passagens, dormiam em cadeiras e bancos,
faziam a segurança das reuniões, sob a vigilância de molduras douradas
vazias, das quais retratos imperiais haviam sido cortados.Até pouco antes da revolução, o instituto havia sido um estabelecimento de ensino para as filhas da nobreza. Antigo fiador do poder estatal, o Soviete foi rebaixado a grileiro de uma escola de etiqueta para moças. Quando o Soviete inteiro se reunia, o evento tinha lugar no que antes fora o salão de bailes.
No dia 3, Kornílov foi encontrar Keriénski e, mais uma vez, fez várias exigências ao homem que tecnicamente era seu chefe. Elas incluíam, num endurecimento de sua atitude anterior, uma rígida restrição aos comitês de soldados. Embora concordassem amplamente com sua essência, Keriénski, Sávinkov e Filoniénko reformulariam o documento apresentado por Kornílov a fim de encobrir seu menosprezo incendiário. A repulsa do general ao governo só aumentou quando, no momento em que se preparava para informar o gabinete sobre a situação militar, Keriénski discretamente o aconselhou a não ser muito específico – e insinuou que alguns membros do gabinete, em particular Tchernov, poderiam representar perigo.
Durante o encontro, Keriénski fez uma pergunta intrigante a Kornílov. “Suponha que eu tenha de renunciar”, ele disse, “o que acontecerá? Você ficará sem saída, as ferrovias pararão, o telégrafo deixará de funcionar.” A resposta contida de Kornílov – de que Keriénski deveria permanecer no cargo – foi menos interessante do que a própria pergunta. A intenção por trás dessa melancolia é obscura. Estaria Keriénski buscando se certificar de que Kornílov continuaria a apoiá-lo? Estaria ele, talvez, cautelosamente sondando a possibilidade de uma ditadura de Kornílov?
Há uma multidão em cada um de nós, e em
Keriénski havia uma multidão maior do que a da maioria. A pergunta
lamuriosa poderia expressar tanto o horror quanto a esperança na ideia
de desistir, de se entregar ao intimidador comandante em chefe. Uma
pulsão de morte política.
O ódio à guerra continuava crescendo. De todo o país vinham inúmeros relatos de soldados que resistiam à transferência.
Uma batalha propagandística se intensificou
em torno de Kornílov, refletindo a crescente separação entre a extrema
direita do país, em torno da qual gravitavam os kadets, e o reduzido
poder dos socialistas moderados. No dia 4 de agosto, o Izviéstia
fez alusão a planos de substituir Kornílov por Tcheremísov, um general
relativamente moderado que acreditava na colaboração com os comitês de
soldados. No dia 6, o Conselho da União de Tropas Cossacas
reagiu, dizendo que Kornílov era “o único general que poderia restaurar o
poder do Exército e tirar o país dessa situação de extrema
dificuldade”. O conselho, por sua vez, deu a entender que haveria uma
rebelião caso Kornílov fosse removido.
A União dos Cavaleiros de São Jorge deu seu
apoio a Kornílov. Conservadores importantes de Moscou, sob o comando de
Rodzianko, enviaram-lhe telegramas veementes, dizendo que naquele
“momento ameaçador de dura provação, o pensamento da Rússia se volta
para o senhor com esperança e fé”.
Kornílov exigiu de Keriénski o comando do
Distrito Militar de Petrogrado. Para deleite de uma direita sequiosa de
golpe, ele ordenou que o chefe do Estado-Maior, Lukómski, concentrasse
as tropas nas proximidades de Petrogrado – o que permitiria que fossem
rapidamente enviadas à capital.
O pano de fundo dessa manobra não era
apenas a catastrófica e cada vez mais grave situação econômica e social,
mas um aumento consciente e deliberado das tensões em certos setores da
direita punitiva. Em um encontro de trezentos magnatas dos setores
industrial e financeiro no início de agosto, o discurso inaugural foi de
Pável Riabuchínski, poderoso empresário do setor têxtil. “O governo
provisório possui apenas a sombra do poder”, disse. “Na verdade, um
bando de charlatões políticos está no controle […]. O governo está
concentrado nos tributos, impondo-os primeira e cruelmente à classe
comerciante e industrial […]. Não seria melhor, em nome da salvação da
pátria, nomear um guardião acima dos perdulários?”
Em seguida demonstrou um sadismo tão
espantoso que atordoou a esquerda: “A mão descarnada da fome e da
destituição nacional vai agarrar os amigos do povo pelo pescoço”.
Esses “amigos do povo” que ele sonhava ver ao alcance de esqueléticos dedos predadores eram os socialistas.
Não foi apenas pela direita, entretanto,
que a pressão se acumulou. Além disso, no dia 6, em Kronstadt, 15 mil
trabalhadores, soldados e marinheiros protestaram contra a prisão dos
líderes bolcheviques Steklov, Kámeniev, Kollontái e outros. Em
Helsingfors (Helsinque), uma assembleia de proporções semelhantes
aprovou uma resolução a favor da transferência do poder aos sovietes. É
claro que essa reivindicação agora era ultrapassada no que dizia
respeito aos bolcheviques, mas representava uma guinada à esquerda para a
maioria dos trabalhadores. Impulsionada pelos bolcheviques e pelos
militantes da ala esquerda dos Socialistas Revolucionários (SRs), no dia
seguinte a seção dos trabalhadores do Soviete de Petrogrado criticou a
prisão dos líderes de esquerda e a volta da pena de morte militar. Eles
conquistaram votos. Mencheviques e SRs começaram a reclamar de deserções
à esquerda – em suas próprias seções maximalistas ou mais além.
Tais sinais de recuperação da esquerda eram
inconsistentes e irregulares: em 10 de agosto, nas eleições em Odessa,
por exemplo, os bolcheviques conquistaram apenas três das cem cadeiras.
Mas nas eleições municipais de Lugansk, no início de agosto, os
bolcheviques conquistaram 29 das 75 cadeiras. Em Reval (hoje Talin),
obtiveram mais de 30% dos votos, quase o mesmo que em Tver, pouco tempo
depois, e em Ivánovo-Voznessiénsk conquistaram o dobro disso. Por todo o
território do Império, a tendência era nítida.
Encolhido em sua choça, em um dia de chuva
forte, Lenin foi surpreendido por palavrões. Um cossaco estava se
aproximando pela mata molhada.
O homem suplicou para se abrigar do
aguaceiro. Lenin não tinha muita escolha exceto afastar-se e deixá-lo
entrar. Enquanto estavam sentados ali, ouvindo o tamborilar dos pingos,
Lenin perguntou ao visitante o que o trazia àquele lugar tão fora de
mão.
Uma perseguição, o cossaco disse. Ele estava atrás de alguém chamado Lenin. Para levá-lo de volta, vivo ou morto.
E o que o condenado havia feito, perguntou Lenin com cautela.
O cossaco fez um gesto com a mão, impreciso
quanto aos detalhes. O que ele sabia, enfatizou, era que o fugitivo
estava “encrencado”, era perigoso e estava nas redondezas.
Quando o céu finalmente abriu, o visitante
agradeceu ao seu anfitrião temporário e partiu pelo mato encharcado para
continuar as buscas.
Depois desse incidente alarmante, Lenin e o
Comitê Central, com o qual ele continuava a se comunicar em segredo,
concordaram que ele deveria se mudar para a Finlândia.
Em 8 de agosto, Zinóviev e Lenin
abandonaram a choça acompanhados por Emeliánov, Aleksandr Chótman – um
“velho bolchevique” finlandês – e Éino Riákha, um ativista vistoso, de
bigode extravagante. Os homens atravessaram o pântano às margens do lago
até uma estação local, numa longa, árdua e úmida caminhada, cheia de
retornos errados e má vontade, até saírem finalmente, se arrastando, em
frente à ferrovia de Dibuny. Mas os problemas não haviam acabado: ali,
na plataforma, um cadete do Exército, desconfiado, provocou Emeliánov e o
prendeu. Mas Shotman, Riákha, Zinóviev e Lenin pegaram rapidamente
um trem com destino a Udelnaya, nos arredores de Petrogrado.
Dali, Zinóviev seguiu para a capital. A jornada de Lenin ainda não havia acabado.
No dia seguinte, o trem 293 para a
Finlândia chegou à Estação de Udelnaya. O condutor era Guro Jalava,
ferroviário, conspirador e marxista engajado.
“Parei na beira da plataforma”, ele se
lembrou depois, “quando um homem saiu do meio das árvores a passadas
largas, subiu na plataforma e entrou na locomotiva. Era Lenin, claro,
embora eu mal o tivesse reconhecido. Ele acabou sendo meu foguista.”
A fotografia no passaporte falso com que
Lenin – “Konstantin Petróvitch Ivánov” – viajou tornou-se famosa. Com um
quepe pousado no alto de uma peruca encaracolada e os cantos da boca,
pouco familiar no rosto sem barba, ironicamente repuxados para cima,
seus olhos profundos e pequenos são tudo que se pode reconhecer.
Lenin arregaçou as mangas. E pôs mãos à
obra com tanto entusiasmo que o trem lançou nuvens de fumaça generosas. O
condutor se lembrava que Lenin usou a pá com gosto, alimentando a
locomotiva, fazendo com que andasse rápido, levando-o para longe por
trilhos e dormentes.
Quando finalmente desembarcou, o foguista
Lenin ainda tinha uma tortuosa jornada clandestina à sua frente. Foi
apenas às onze horas da noite do dia 10 de agosto que ele chegou ao
apartamento pequeno e simples da Praça Hakaniemi, no norte de
Helsingfors (Helsinque). Ali era a residência dos Rovio. Como a sua
esposa estava fora, visitando a família, Kustaa Rovio, militante
social-democrata, havia concordado em abrigar o marxista russo.
A carreira de Rovio, um homem grande e
imponente, havia dado uma guinada improvável e extraordinária.
Socialista de longa data, ele também era, agora, chefe de polícia de
Helsingfors. Como exatamente ele conseguiu conciliar esse papel com a
militância revolucionária é algo incerto. Sobre o hóspede que, poucos
anos antes, havia defendido manter reservas de “bombas, pedras etc. ou
armas químicas” para jogar contra seus colegas, o chefe de polícia Rovio
disse: “Nunca conheci um camarada tão amistoso e encantador”.
A única exigência de Lenin – e nisso ele
era inflexível – era que Rovio devia conseguir jornais russos todos os
dias e dar um jeito de entregar secretamente as cartas que ele trocava
com seus camaradas do partido. Isso o anfitrião fez até mesmo quando sua
esposa retornou e Lenin teve de se mudar para o apartamento de um casal
socialista, os Blomqvists, próximo a Telekatu.
Percorrendo rotas arriscadas, subindo a pé
pela floresta até a fronteira, Krúpskaya visitou o marido mais de uma
vez. O próprio Lenin passeava por Helsingfors com uma liberdade fora do
comum. “Para me pegar”, disse com prazer, na mesa da cozinha dos
Blomqvists, enquanto lia sobre a caçada do governo, “é preciso ser
rápido, Keriénski.”
Acima de tudo, ao longo de agosto, assim
como havia feito em julho e faria em setembro, Lenin escrevia.
Mensagens, cartas e instruções aos camaradas, e outra longa obra. Já no
primeiro dia em que o hospedou, Rovio encontrou Lenin adormecido na
escrivaninha, com a cabeça sobre os braços e um caderno cuidadosamente
escrito diante de si. “Tomado pela curiosidade”, relatou Rovio, “comecei
a virar as páginas. Era o manuscrito de O Estado e a revolução.”
O livro é uma extraordinária e vigorosa
negociação entre o antiestatismo implacável e a necessidade temporária
do “Estado burguês sem a burguesia”, sob o domínio do proletariado. O
texto histórico, descrito por Lucio Colletti como “a maior contribuição
de Lenin à teoria política”, foi escrito em cima de um tronco às margens
de um lago infestado de mosquitos e, depois, na mesa de um policial. E
não estaria concluído quando as circunstâncias mudaram e Lenin pôde
retornar à Rússia. O texto termina com um famoso resumo: “É
mais prazeroso e útil passar pela experiência da revolução do que
escrever sobre ela”.