quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

ESTADO NÃO É IGREJA. IGREJA NÃO É ESTADO

Verdades sagradas em um mundo profano
Gazeta do Povo16 de janeiro de 2020 13:24
Nos Estados Unidos e em toda a Europa, a função do governo foi separada da fé religiosa. Essa separação é explicitada na Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que proíbe o governo norte-americano de estabelecer qualquer forma de religião – em outras palavras, de impor crenças e rituais de uma fé específica sobre o povo. Mas essa também é a regra em todo o mundo ocidental, algo que geralmente é considerado parte do legado cristão. A igreja cristã foi levada desde o início a reconhecer que ela ocupava um espaço negociado no reino maior do governo secular. São Paulo conclamava seus seguidores a respeitarem “os poderes reinantes” e o próprio Cristo argumentava que deveríamos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus — em outras palavras, devemos obedecer a lei secular e não sermos isentos dela com base na religião. Sem essas declarações cautelosas, a fé cristã teria entrado em conflito com as autoridades romanas, que toleravam todos os deuses, mas só se esses deuses fossem tão obedientes a Roma quanto as pessoas que os adoravam. Assim que Roma se sentiu ameaçada pelo Deus cristão, os cristãos começaram a ser perseguidos. E, claro, mais tarde, quando a cristandade triunfou e assumiu a forma de um governo espiritual, nominalmente distinto da lei secular, mas sempre fungando em seu cangote, hereges, incréus e judeus sofreram perseguição.
Na época do profeta Maomé, o Império Romano tinha se fragmentado, e o governo secular tendia a ser mais local, apegado aos costumes e geralmente tribal. Maomé não estava negociando um espaço para sua religião dentro de uma ordem imperial. Por outro lado, ele estava introduzindo uma ordem jurídica numa situação na qual o poder, e não a lei, é que expressava autoridade. Como resultado disso, o Islamismo assumiu um caráter bem distinto — uma forma de viver na qual a lei foi reconcebida como tal a fim de refletir a Luz Divina que banhava o mundo por meio das palavras e feitos do Profeta. No século XVII, quando os Cristãos da Europa lutavam até a morte por suas doutrinas rivais, os viajantes do Império Otomano ficaram impressionados ao descobrirem uma forma de governo quem, ainda que nominalmente muçulmana, garantia a segurança e as práticas religiosas de cristãos e judeus. Mas não era um governo baseado na lei secular, ainda que usasse, no Império Bizantino, alguns dos princípios da lei civil romana. O Corão reconhece a lei secular, mas dentro dos limites estabelecidos pela submissão à lei de Deus. Assim, no quarto capítulo do Corão, intitulado “Mulheres” (al-Nisā’), o versículo 59 diz manda os fiéis obedecerem a Deus, ao Profeta e a seus governantes.
Tudo isso significa que não podemos usar a história das civilizações cristã e islâmica para sabermos exatamente como negociar a relação entre o governo secular e a crença religiosa hoje em dia. A lei nominalmente secular da Europa não fez nada para prevenir os massacres religiosos e genocídios do século XVII, enquanto as leis nominalmente religiosas dos otomanos mantiveram a paz entre fés rivais durante séculos. Mas o tempo de se alcançar um acordo entre alianças rivais passou. Daí por que a tensão entre a religião e o governo secular permanece e não se dissipou apenas porque muitas pessoas estão perdendo sua fé. Porque você pode perder sua fé sem perder os valores tirados dela ou a orientação espiritual impressa em sua alma. E você talvez retenha essas coisas e se sinta ainda mais incomodado com uma cultura secular que ri e tripudia deles, justamente porque você não tem a quem recorrer em seu desejo de defendê-los.
Os fiéis, diante de uma cultura secular na qual palavras e imagens violentas, pornográficas e desumanizantes são protegidas pela “liberdade de expressão”, encontram refúgio na fé, dizendo para si mesmos que a repulsa deles diante dessas coisas não é apenas justificada, mas também prova de que eles são protegidos pela religião e sua comunidade de fieis. Eles podem, portanto, analisar o mundo que os cerca com certo desapego, na esperança de que mais pessoas acabem por compartilhar seu desprezo pela maldade, mas ao mesmo tempo sem se sentirem muito ameaçados por ela. Os que não têm fé, contudo, ou aqueles que mantiveram apenas os valores e a postura da fé, sem suas certezas metafísicas, não têm a mesma facilidade de se protegerem. Para eles não há refúgio da cultura secular e, se essa cultura soa como uma profanação, eles só podem lutar para suportar isso da melhor forma possível, interiorizando ainda mais seus valores, esperanças e espiritualidade. Percebemos essa atitude em boa parte da literatura moderna, sobretudo das primeiras obras de T.S. Eliot, Hart Crane e outros poetas do começo do século XX.
Ao contrário de muitos dos meus contemporâneos no mundo intelectual, vejo a religião como um dom natural da espécie humana – uma forma de compreender o mundo e nosso lugar nele que gera a estabilidade e o conforto de que precisamos. Sem religião, corremos o risco de nos perdemos na busca pelo prazer e vantagens e sermos tentados a ignorar os compromissos perenes, sem a virtude da qual as sociedades dependem, que é a virtude do sacrifício. Desde o grande estudo de Durkheim sobre as “formas elementares da vida religiosa”, ficou claro que a religião nos deu, além de uma forma ampla de compreender o mundo e o Deus que o criou, o consolo da sensação de pertencimento. E essa sensação não é apenas uma questão de se filiar a um grupo ou pagar sua assinatura para receber certos benefícios, e sim um compromisso existencial, uma doação de si mesmo, algo que é resumido com beleza na palavra árabe islã.
Por outro lado, o conhecimento científico, tanto da estrutura do Universo quanto da evolução da espécie humana, lançou dúvidas sobre várias das hipóteses intelectuais sobre as quais as religiões tradicionais foram erguidas. Daí porque muitas pessoas ignoram a essência da religião, seu legado de verdade moral e sua visão de uma ordem sagrada. Essas coisas, argumentam elas, são simples ilusões criadas para satisfazer nossa necessidade de consolo, e não ideias concretas sobre a natureza do ser. Elas não veem nada além do universo material organizado por leis matemáticas; e, mesmo que a existência do Universo seja uma maravilha sempre maior do que nossa capacidade de compreensão, não somos capazes de deduzir nada a partir dele quanto à realidade transcendental ou lições sobre como vivermos.
Não era para esse ceticismo compreensível levar à cultura profana que nos cerca hoje em dia. É possível aceitar a visão desencantada de um universo puramente material sem perder a sensação de que o mundo é também um campo de empreendimentos morais no qual há valores, proibições, momentos sagrados e uma noção clara do nosso valor e do valor dos outros. Ainda assim, os resíduos de sentimento religioso correm risco quando suas bases metafísicas são abaladas. Para pessoas comuns, a visão materialista é bastante sedutora; elas ficam obcecadas com a visão do ser humano como um objeto meramente físico, um punhado de carne suspenso entre o prazer e a dor. E essa visão reducionista dá valor a tudo o que há de mais repugnante na cultura que hoje nos assola. Seres humanos são exibidos como objetos, privados de sua liberdade e capacidade de amar, doar, se sacrificar e servir. E muitas pessoas passam os dias apegados a imagens de degradação, assistindo à destruição física de seus semelhantes em filmes violentos e à excitação física deles em filmes pornográficos. Essas imagens desprovidas de amor são tentadoras porque elas tiram a condição humana de tudo o que é difícil e exigente e tudo o que torna a vida digna – amor, compromisso, sacrifício e doação por meio dos quais cultivamos o que temos de melhor e nos conectados com o reino das coisas sagradas. São visões do inferno que devem seu encanto à facilidade com que as aceitamos, deixando todas as dificuldades da vida pessoal para trás. Uma das lições mais importantes ensinadas pelo Islã é que temos de tomar cuidado com as imagens. A beleza alcançada por Botticelli ou Michelangelo não devem nos cegar para o fato de que a forma humana representada em imagens nos tenta a objetificarmos e profanarmos o que é retratado. O hábito de ver os outros como objetos, de permitir que nosso olhar distraído busque o irreal e o ilusório, é viciante em si e uma característica fundamental da nossa cultura de consumo na qual a linguagem da publicidade se sobrepõe às palavras sagradas. Por meio de imagens do rosto e da forma humana eliminamos a face real dos outros e do mundo.
Não preciso me deter nesse assunto para a plateia muçulmana. Mas acho que é importante entender duas reações influentes e disseminadas sobre isso. Elas podem ser descritas, enviezadamente, como a forma de reencanto e a forma do desencanto. A primeira é a minha escolha; mas a segunda é o caminho trilhado por nossa cultura e, sobretudo, pela cultura universitária atual.
Foi o grande sociólogo Max Weber quem identificou pela primeira vez o desencanto como uma característica fundamental da condição contemporânea. Com a perda da religião, acreditava ele, e a importância maior de uma visão científica do Universo, antigas formas de compreender o mundo se desintegram. Não acreditamos mais em conexões mágicas e até o conceito de liberdade começa a sucumbir e dar lugar a explicações que a ridicularizam. A face do mundo aos poucos começa a nublar: o sol não mais sorri, os pássaros deixam de cantar, as ninfas desaparecem das grutas e o vento no capim alto deixa de sussurrar o amor de Deus por nós. O mundo encantado de nossos ancestrais é substituído por uma exibição rotineira de conexões causais. E as leis da ação que governo o Universo começam a parecer correntes às quais também estamos presos.
Em reação a isso, podemos nos juntar ao coro da zombaria, desprezando os sentidos e os valores entrelaçados no tecido do nosso mundo e o desfiando. Ou podemos tentar o reencanto, talvez promovendo alianças com outras religiões e, de qualquer forma, tentando emendar o tecido rasgado por meio da arte que os seres humanos criaram — poesia, drama, narrativas, leis e mitos. Um dos objetivos da educação liberal, como eu a vejo, é nos ajudar nisso: estabelecer os conceitos, histórias e analogias que nos permitirão novamente enxergarmos a face do mundo com clareza, sem a nuvem de ceticismo e se dirigindo a nós, pessoa a pessoa, eu e você. Toda a minha obra como filósofo, escritor e educador tem sido dedicada a isso e, no Alma do Mundo, argumento que essa tarefa é uma generalização do nosso dever cotidiano de vermos os outros como seres sujeitos ao diálogo, não como objetos a serem usados. Oculta nesse dever está a preciosa sensação do ser humano como um participante dos momentos, relações e formas sagradas de ser. Essa intuição do sagrado é dada a todos nós na prática das relações pessoais e, mesmo que não sejamos bem-sucedidos na tradução disso para a fé religiosa, a intuição nos lembra constantemente que, em nossos sentimentos mais profundos, não estamos totalmente à vontade entre transações físicas comuns. Somos exilados no mundo e toda a arte, a nobreza e o heroísmo, toda a beleza e sacrifício são tentativas de recuperarmos o lugar ao qual pertencemos. Para mim, é por isso que uma educação liberal é tão importante: é uma educação de ideias, ensinando-nos a amarmos a Humanidade que transcende o mero caráter humano e nos situa num mundo das coisas sagradas. Ao explorarmos a beleza na arte, música e poesia, também estamos nos relacionando com o sagrado e nos munindo contra a cultura da profanação que está tomando o mundo de assalto. Esse, na minha opinião, é o caminho do reencanto.
Em todas as nossas interações uns com os outros, sejam elas de amor ou ódio, afeto ou desafeto, aprovação ou desaprovação, raiva ou desejo, procuramos no outro aquele horizonte inalcançável a partir do qual a pessoa se dirige a nós. Todo objeto humano é também um sujeito se dirigindo a nós por meio de olhares, gestos e palavras, a partir do horizonte transcendental do “eu”. Nossas interações têm esse horizonte como alvo e, passando pelo corpo, chega ao ser que ele encarna. Por isso é que nossas interações interpessoais se desenvolvem de certa forma: vemos o outro como alguém envolvido por essas interações, por assim dizer, e nós nos apegamos uns aos outros como se as pessoas tivessem surgido ex nihilo de um centro único do ser.
A presença indispensável dessa busca do outro em nossas vidas está na raiz da filosofia e é o motivo real para as pessoas terem tanta dificuldade de aceitar as perspectivas evolutivas e reducionistas da condição humana. Isso também explica a reclamação comum de quem, apesar de nossas sociedades seculares reservarem espaço para a moralidade, conhecimento e vida intelectual, elas sofrem de um déficit espiritual. Os seres humanos, dizem, têm uma dimensão “espiritual”, com necessidades e valores espirituais, e as pessoas dizem essas coisas mesmo sem o consentimento de uma religião e mesmo rejeitando a ideia da alma, o ruĥ, ou a considerando uma complexa metáfora. O motivo, acredito, é esse: a busca pelo outro não é um dado inalterável; ele pode ser aprendido, orientado em novas direções, disciplinado por meio de virtudes e corrompido por meio de pecados. Em alguns casos de autismo extremo, isso pode estar até ausente, como está ausente nos animais. Mas aprender a direcionar suas atitudes para o horizonte alheio, a partir do qual ele, por sua vez, direciona seu olhar – isso requer uma disciplina que vai além do mero respeito. Em tudo o que toca o que há de mais profundo e duradouro em nossas vidas – fé, amor erótico, laços familiares e o prazer da música, arte e literatura — tratamos do horizonte a partir do qual o olhar do outro nos busca. A educação moral envolve a manutenção deste estado mental de modo a permitir, nas mais duras circunstâncias, olhar os outros no “eu”, por assim dizer. É isso o que muitas pessoas querem dizer quando falam em disciplina “espiritual” e o que Platão chamava de “o cuidado da alma”. E é o que chamo de o caminho do reencanto.
Mas esse tipo de educação está perdendo espaço diante da forma dominante de desencanto, e isso é algo que deveríamos tentar compreender. Sendo religiosos ou daquele tipo de andarilho da visão de mundo religiosa que até aqui tenho exposto, é simples ver que as coisas mais preciosas não só estão sendo ostracizadas da cultura secular como também têm sido profanadas pela elite cultural. Vivemos sob o domínio secular da lei que garante liberdade religiosa e tenta definir direitos e deveres dos cidadãos sem privilegiar os seguidores de determinada fé. Isso, claro, deve ser um bem precioso para os membros de uma minoria religiosa que também buscam viver com seus vizinhos como cidadãos responsáveis. Mas essa mesma lei secular costuma exercer a guarda da vida espiritual da nação – não insistindo na prática de uma fé específica, mas ainda assim reconhecendo aquilo em que se baseia nossa noção do sagrado.
Boa parte da elite esclarecida do mundo Ocidental hoje não tem uma crença religiosa e é motivada pelo que chamo de “cultura do repúdio”, destinada a banir da vida pública as velhas ideias do sagrado e a reformar as instituições e estruturas da vida civil de modo que elas reflitam seu estilo de vida libertino. Essa atitude, que aqui nos Estados Unidos é chamada de “progressismo”, se diz em busca da liberdade e tende a seguir de mãos dadas com a rejeição à moralidade tradicional e aos costumes que sustentam as pessoas comuns em suas vidas cotidianas. Tais coisas são consideradas formas de opressão.
Aprender a lidar com essa cultura do repúdio é um dos grandes desafios enfrentados por religiosos ocidentais hoje em dia e também por aqueles aos quais me referi antes, os que mantiveram os conceitos por meio dos quais a religião permite que compreendamos a nossa experiência – conceitos do sagrado, do consagrado e do sacrificial — embora eles talvez tenham perdido a base firma da fé que ancora esses conceitos. Um após o outro, os espaços sagrados que nos costumes protegiam estão sendo invadidos e destruídos. Aquilo que era considerável inquestionável e até protegido das questões que talvez o profanassem está, por esse mesmo motivo, sujeito ao questionamento.
A mentalidade progressista, diante de certezas que parecem um obstáculo na busca pelo prazer, é tentada a destruí-las. Se as pessoas têm certeza de que o casamento, por exemplo, é a união entre um homem e uma mulher, o instinto progressista é o de vê-lo como uma limitação aos homossexuais. A reação, portanto, é propor o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que é proposto como uma reforma completamente inocente, apenas uma ampliação de nossas liberdades. Mas levarmos isso às últimas consequências, contudo, então as relações incestuosas também podem ser dignas do nome “casamento”, justamente porque o nome teria perdido sua dignidade. Se toda a vida social se baseia na escolha humana e nenhuma outra fonte valida as instituições, então não há certezas e instituições capazes de conter os laços sagrados.
Alguns dizem que essa visão de mundo remonta ao Iluminismo e à ideia do contrato social baseado apenas na escolha racional. Mas a verdade é que o contrato social foi uma forma de excluir Deus da equação de modo a fundamentar a legitimidade não na ordem divina, e sim na livre escolha dos seres humanos. Mas não devemos ignorar o fato de que uma ideia de ordem natural, na qual valores espirituais compartilhados governam os costumes da vida familiar e a relação dos seres humanos com seus semelhantes, comunidade e país, era parte do legado europeu, compartilhado por pessoas que vieram a se estabelecer nos Estados Unidos e usados pelos fundadores do país. Até pouco tempo, o Iluminismo era tratado como uma libertação da superstição, mas não um ataque às virtudes essenciais da civilização cristã ou um repúdio à nossa herança moral, jurídica e cultural. Ao contrário, graças ao Iluminismo, escritores e artistas começaram a explorar o passado da nossa civilização e a descobrir uma visão que eles podiam dizer que era sua. Lessing e Goethe descobriram Shakespeare, Corneille e Racine descobriram as tragédias gregas, Milton descobriu Virgílio e os românticos descobriram os medievais. Também houve, na época, um interesse pelo Islã e até conversões entre aqueles que acreditavam que seu conceito unitarianista de divindade é compatível com a teologia racional. De toda forma, as pessoas buscavam uma revelação duradoura que desse sentido à doutrina temporária na qual ela estava contida.
Quando as faculdades de artes livres surgiram nesse país, ao longo do século XIX, foi com a intenção de perpetuar essa revelação. A ideia era ensinar aos jovens a apreciarem a arte, a literatura, a música de sua civilização e, por meio disso, reafirmar a filiação deles a essa civilização. Eles descobririam, talvez por meio de Shakespeare ou Emily Dickinson, que existem valores permanentes; que a família e a sociedade civil não são algo inventado de um instante ao outro nem se baseiam em escolhas impulsivas; que as instituições do mundo contêm a sabedoria de gerações e os caminhos escolhidos para as pessoas resolverem os problemas da reprodução social e a aprenderem a conviver. Eles aprenderiam como os sexos se idealizam e lutam para conquistar a recompensa do amor; eles descobririam heróis e modelos de conduta e, em geral, começariam a perceber o mundo de outra forma, como algo imbuído de momentos consagrados e do histórico de aspirações nobres e derrotas trágicas. Eles aprenderiam a herdar uma visão comum da sociedade, um Lebenswelt ouuniverso autoevidente, moldado pela história e cultura, como um lugar de pertencimento e um legado.
Essa ao menos era a intenção, e muitos pensadores — Matthew Arnold no Reino Unido, Emerson, Hawthorn e a família James nos Estados Unidos — se dedicaram a justificar tal estudo e a mostrar que você não tinha de ser um religioso a fim de entender isso. Por um tempo, parecia que a cultura secular era capaz de reproduzir um legado de valores espirituais sem exibir que a pessoa se adequasse a uma fé específica qualquer. E os nossos professores universitários endossaram o esforço considerando a educação liberal como uma disciplina essencial na qual a geração mais jovem estudava “o melhor que já foi pensado e dito” a fim de tirar proveito de seu sentido moral e espiritual. Tal educação pertencia a uma cultura de afirmação — não uma declaração beligerante de que “o Ocidente é melhor”, e sim uma tentativa humilde de encontrar, em nosso legado cultural, a ordem espiritual duradoura que permitisse aos jovens tomá-la como “nossa”.
Hoje muitos dirão que esse tipo de educação é privilegiado e culturalmente específico demais para ser usada e que poderíamos encontrar algo na tradição islâmica que seja mais valioso e seguro. Mas acho que também se deve dizer que a alta cultura da civilização ocidental, como ela foi transmitida a mim e à minha geração, também estive aberta aos seus vizinhos de uma forma que não é mais suficientemente admirada. Havia, nos séculos XIX e XX, uma espécie de entendimento ecumênico da alta cultura, no qual toda expressão sincera do espírito humano tinha a mesma oportunidade de entrar para o cânone. Em meados do século XIX, os Vedas e Upanishads eram ensinados nas universidades alemãs, e a cadeira Sir Thomas Adams de árabe na Universidade de Cambridge existia desde 1632. O aumento no interesse pela civilização islâmica no fim do século XVII levou a um trabalho amplo de tradução que teve início com a tradução de Galland das 1001 Noites de 1704 a 1711. A tradução de Sir Richard Burton da mesma obra, disponível desde a década de 1880, não só influenciou toda a prática de contação de histórias no Reino Unido como era notável por ser fiel – não há mais uma versão fiel dessa obra-prima nos países árabes. Em vez de defender o óbvio, contudo, deixe-me apenas dizer que a crítica feita por Edward Said e outros de que nossa cultura é de alguma forma fechada para a influência oriental e ignora tudo o que vem com esse rótulo é, em parte, hábito do repúdio que nos últimos anos tomou conta de tudo o que descrevo e elogio no cenário intelectual.
Isso provavelmente se voltará contra o legado islâmico assim como se voltou contra o pensamento judaico-cristão. Isso porque se baseia num único princípio extremamente destruidor, o de que a cultura, em todas as suas formas, é poder. A cultura é parte do “aparato ideológico” no qual um grupo, uma classe, um sexo mantém o outro grupo, classe ou sexo subjugado. Essa ideia está na base do novo currículo das humanidades e é o legado mais importante dos movimentos revolucionários dos anos 1960. Isso explica o entusiasmo pela desconstrução, feminismo radical, estudos de gênero, estudos queer e o revisionismo histórico; isso explica o antagonismo crescente entre universidades e sociedade; e é o principal motivo por que aqueles que se incomodam com a cultura popular profana de hoje não conseguem encontrar uma maneira fácil de escapar dela, nenhum lugar ou instituição onde a luz da civilização ainda brilha.
Quantas pessoas comuns procuram uma autoridade para lhes dizer que o certo é se privar da pornografia, que as relações sexuais não são apenas contratos de prazer mútuo, que a inocência, a pureza e a modéstia são virtudes e que a obediência é sinal de força, não de fraqueza? Todas essas verdades estão incrustradas em nossa cultura e estavam disponíveis no antigo currículo de humanidades. Recorrendo às universidades em momentos de dúvida, nossos ancestrais encontravam respeitáveis eruditos, estudantes de filosofia grega, de poesia inglesa, de romances franceses e história medieval que, sem propor qualquer dogma religioso, reforçavam o sentido e afinidades das quais a vida comum depende. Hoje, assolados pelo colapso do casamento, as profanidades da cultura popular ou a violência da vida nas ruas, os professores só têm a dar mensagens de destruição.
Por esse motivo, o caminho do desencanto é trilhado quase que sem resistência na academia contemporânea, e os jovens não encontram quase nada no campus que dê apoio aos valores familiares ou que os convença de que o estudo das obras belas e importantes da nossa cultura vale mais a pena do que assistir a filmes piegas ou jogar bola. O objetivo do estudo é revelar a opressão que paira sobre as chamadas obras-primas. É alertar os alunos contra Conto de Inverno, de Shakespeare, que mistifica e desempodera o sexo feminino, ou contra as sinfonias de Beethoven, que são, de acordo com uma crítica feminista, fantasias de estupro. Isso é jogar um cobertor de condenação sobre toda a nossa herança cultural em nome dos interesses que ela pretendia conter — os interesses de todos os grupos biológicos e sociais para além do grupo de “homens brancos mortos”. A mesma destruição, aplicada à nossa herança ocidental, poderia ser aplicada a qualquer outra cultura – e a probabilidade de a cultura islâmica sobreviver sem sequelas, levando em conta como ela historicamente trata mulheres e minorias religiosas, é bem reduzida. Quando passamos a ver a cultura dessa forma, em termos de poder exercido e submissão sofrida (“quem e contra quem?”, como diria Lênin), todo sentido intrínseco desaparece. A beleza da poesia de Hafez, a grandiosidade do sistema filosófico de Spinoza, a glorificação que Milton faz da parceria sexual — todas essas coisas que fazem parte da superfície semântica são ignoradas por mera ideologia. O que importa é o poder que verde delas e que as impede de serem usadas.
Dessa forma, chegamos a um ponto no qual a cultura secular, longe de ser aquela coisa inclusiva que os Pais Fundadores queriam, se torna propriedade de uma elite progressista cada vez mais censora que busca fechar os antigos caminhos de sentido e estabilidade. Qualquer reação contra o gargalo progressista é chamada de “populismo”, enquanto as universidades e a imprensa parecem não ver nada de mais em castigar aqueles que se desviam da pauta progressista.
Como devemos reagir a isso? Como em toda época de conflito e intimidação, a primeira coisa de que precisamos é alianças, não só entre as pessoas de fé, mas também entre elas e aqueles que perderam a fé, mas não os valores. A Zaytuna College dá um belo exemplo com sua excelente publicação Renovatio, na qual as três grandes fés monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – se juntam de uma forma que mostra sua harmonia intrínseca, a despeito de todas as diferenças. O objetivo, até onde vejo, não é julgar a religião a partir de valores seculares – isto é, não há nada de mau em acreditar, desde que você não incomode o status quo secular — e sim aplicar a ideia de cidadania às nossas tradições religiosas, mostrar que os valores dos quais nossa vida como bons cidadãos depende se baseiam em algo mais profundo do que nossa opção em aceitá-los. Claro que ninguém hoje pode ignorar o fato de que é possível cometer crimes em nome da fé, e assassinar, estuprar e roubar acreditando que foi tudo ordem de Deus. Mas essa forma de comportamento se baseia no desespero – é, também, uma forma de desencanto, uma tentação de tirar do mundo seu sentido e se alinhar aos valores absolutos da religião um mundo cotidiano vazio. Se o mundo secular está reduzido a apenas um mecanismo e se as obrigações do amor não têm lugar, então podemos facilmente começar a pensar que a religião convida à destruição e que Deus está ordenando essa destruição como um último recurso para recrutar Seus amigos. Diante disso, temos de mostrar que o caminho da fé não significa ignorar a realidade secular. A verdadeira face da religião está no reencanto da nossa civilização ferida; a fé é uma forma de preencher todos os espaços espirituais no nosso mundo em ruínas com a ideia de um Deus amoroso, o Deus descrito no Corão com al-Raĥmān al-Raĥīm. Nosso mundo está avariado – ninguém pode negar. Mas, aos olhos Daquele que nos olha de cima, ele também é sagrado, e sempre será.
Roger Scruton foi escritor e filósofo. Este ensaio é uma versão de uma palestra dada por Roger Scruton no Zaytuna College no dia 23 de abril de 2018.
© 2020 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês


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