A revista Forbes publicou em maio deste ano que 5% do PIB brasileiro
está nas mãos de quinze ilustres famílias, que detém um patrimônio de
269 bilhões de reais. Thomas Piketty, autor do “O Capital no Século 21″
– mencionado por Paul Krugman como provavelmente o mais importante
livro de economia desta década – é autor de uma frase de uma obviedade
alarmante nos dias que correm, mas que passa ter valor especial porque é
formulada, não por um inimigo do capitalismo, mas por um insatisfeito
com os seus rumos atuais: “os poucos que estão no topo – diz Thomas –
tendem a apropriar-se de uma grande parcela da riqueza nacional, à custa
da classe média baixa” e que “isso já aconteceu no passado e pode
voltar a acontecer no futuro”.
O remédio apontado pelo autor, um imposto global progressivo, vai
precisamente contra a tendência autorizada pelas grandes agências
financeiras, públicas e privadas, de importância no mundo, como se vê
nas medidas em andamento nos países da União Europeia, que pretendem
recuperar suas combalidas economias. Estudo recente, publicado pelo “El
País” (22 jun. 2014), mostra 10% de queda nos gastos de alimentação da
população espanhola no ano de 2013, o que atinge diretamente o consumo
básico dos assalariados, aposentados e desempregados, que vivem da parca
ajuda estatal.
No âmbito da crise, os índices de pobreza, já alarmantes, aumentaram
gravemente nos Estados Unidos, pois hoje já afetam 46 milhões de
norte-americanos, maior cifra dos últimos 50 anos, que deve ser
combinada com o aumento da renda dos 1% mais ricos, em 9%, nos últimos
35 anos. (“Página 12″, 23
jun.14,
baseado em estudos do professor Abraham Lowenthal, emérito da
Universidade do Sul da Califórnia). Os Estados Unidos, como se sabe,
superam a União Europeia em desigualdade, pois nesta a maior
concentração de renda está com 10% da população e nos EUA a maior
concentração de renda, em termos relativos, está com 1% da população.
Cabe um comparativo latino-americano, para verificarmos como os
diferentes países colocados na cena mundial globalizada, reagem perante
os dissabores da atual crise do capital. Recentemente os nossos
“especialistas” em desastres econômicos – sempre atentos aos interesses
especulativos e manipulações políticas no mercado de ações -passaram a
mostrar a genialidade da direita mexicana para lidar com o baixo
crescimento e a pobreza. Quando se depararam com as estatísticas – a
partir de 2003 a economia brasileira cresceu 45,44% e a economia
mexicana, no mesmo período, cresceu 30,471% – o México desapareceu das
suas colunas proféticas. Mormente porque ficaria chato revelar que a
participação dos salários na renda nacional, no Brasil é de 45% e no
México é de 29%. Ou seja, o Brasil cresceu muito mais com menos
desigualdade.
Esse rápido repasse na crise do capitalismo, presidido pela agenda
neoliberal, serve para ilustrar a guerra de interpretações travada no
meio intelectual, pelas redes e pelos órgãos de imprensa tradicional,
entre as lideranças das mais diversas posições do espectro político. De
um lado, estão os que entendem que a crise ocorre porque todas as
“reformas”, necessárias para o reinado completo do capital financeiro
sobre a vida pública e sobre os estados (capturados pelas agências que
especulam com a dívida pública, para acumular sem trabalho) aquelas
reformas, repito, não foram feitas pelos governos. Por isso, as baixas
taxas de crescimento, o aumento da pobreza e do desemprego.
Num outro polo, os que, por diversos meios e com diversas gradações,
sustentam que a decomposição da socialdemocracia, em nome de um
“ajuste” conservador e predatório dos direitos sociais (com a renúncia
de uma agenda socialista ou democrático-social verdadeira), significou a
vitória dos valores dos que “estão no topo”, como diz Piketty. E que a
pretensão verdadeira daquela agenda é desapropriar os direitos sociais,
que vem sendo conquistados desde o Século 19, para conformar uma
sociedade dos mais aptos, dirigida pelos mais fortes e mais ricos,
capazes de se servir das grandes transformações tecnológicas,
distribuindo migalhas de sobrevivência para a maioria da população,
tendo como intermediária uma pequena e rica classe média, apartada nos
seus condomínios ou pequenos bairros com segurança privada.
A campanha contra o Governo brasileiro e contra o Estado brasileiro,
desencadeada pelos órgãos de imprensa e partidos políticos vinculados à
primeira posição, no mundo inteiro, passava a imagem de um país
degradado na sua vida pública, com autoridades incapazes de acolher um
evento como a Copa do Mundo, incompetentes para dar segurança às
autoridades de fora do país e ineptos para a realização da própria
competição. Esta campanha, no entanto, não foi um mero mau humor da
direita mundial. Foi nitidamente uma orquestração política de caráter
estratégico para desmoralizar um BRIC que, com seus avanços e recuos,
com as suas vacilações e posições ousadas, já tinha demonstrado que é
possível crescer, distribuir renda, cuidar da vida dos mais pobres e
excluídos e, ainda, exercer um papel político no cenário
internacional, com certa margem de autodeterminação e soberania,
criticando o neoliberalismo com as “costas quentes”. À esquerda
ultra-radical isso parece pouco, mas, examinada a situação
internacional e a própria fragilidade interna das bases políticas para
desenvolver estas ações de resistência, convenhamos que é um feito
extraordinária que nenhum governo, pelo mundo afora, conseguiu realizar
com tal amplitude.
O mais grave é que os veículos de comunicação tradicionais do país,
não só repassaram este pânico desmoralizante da nação e das suas
instituições, como alimentaram com falsas informações os veículos
externos. Trabalharam diretamente contra o Brasil, embora já ensaiem uma
autocrítica oportunista, Não se tratou de mero equívoco, mas de
parceria política, porque, para estes grupos, nunca se coloca como real a
disjuntiva “Soberania X Dependência”, ou “Estado Social x Estado
Mínimo”, ou “Cooperação Interdepende x Subordinação Dependente”, ou
mesmo “Democracia x Autoritarismo”. Porque soberania, estado social,
cooperação sem submissão, sempre apontam para mais democracia (não menos
democracia), para mais participação das pessoas na política e na renda
(não menos participação) e as receitas europeias para resolver as
crises são incompatíveis com tais conquistas da modernidade.
O traço material desta aliança e da campanha contra o Brasil é o
interesse em ganhar dinheiro com a dívida pública, gerando instabilidade
e desconfiança nos governos ou submetendo as nações a governos dóceis e
à agenda da redução das funções públicas do Estado. A ideologia da
aliança é o liberalismo econômico, ora ornamentado com traços de
fascismo e intolerância, ora casado com a austeridade fiscal. Ela tanto
pode arrastar as classes médias para os protestos, como atiçar o
“lúmpen” para fazer quebradeiras de bens públicos e privados
-principalmente bens públicos – assim esvaziando os movimento sociais e
políticos de esquerda, que estão insatisfeitos, com justiça, com os
limites que já bloqueiam o crescimento econômico e impedem a melhoria
da qualidade do serviços públicos nas áreas da saúde, transporte e
segurança, principalmente nas grandes regiões metropolitanas. A
repressão, então, por este mecanismo perverso de isolamento dos
lutadores sociais, aparece legitimada para a maioria da sociedade, que
não se identifica com a violência gratuita à margem da lei, aceitando
uma violência do Estado, que julga “necessária”, mesmo que muitas vezes
também à margem da lei.
Arrisco dizer que, diferentemente das crises clássicas do capitalismo
– como na crise de 29 e na crise “do petróleo” nos anos 70 – a crise
atual se diferencia, enquanto crise política conjugada com a crise
econômica, por encontrar o capital com um grau organização mais
complexo e sofisticado, sem aparência imediata, mas mais capaz de
interferir rapidamente sobre os Estados, sem guerras extensivas e
ocupações militares em todos os territórios de domínio. De um lado, há
uma verdadeira “Internacional do Capital Financeiro”, com seus
tentáculos internos na mídia e nos partidos tradicionais -que já avança
sobre os não tradicionais através do financiamento privado das
campanhas eleitorais- e, de outro, há uma visível fragmentação na
estrutura material e espiritual das classes populares, com a
correspondente fragmentação dos seus movimentos e partidos.
Os bancos centrais dos países ricos, as agências privadas de risco,
as instituições financeiras destinadas a especulação, juntamente com as
grandes cadeias de comunicação globais, são organizados diretamente pelo
dinheiro e apoiadas na reprodução ficta do dinheiro, com um manto
ideológico e político que carece de coerência programática, mas que se
amplia no próprio movimento do dinheiro, como acumulação artificial
incessante. Esta vai aparelhando e submetendo instituições, grupos e
indivíduos, em todas as esferas da vida pública, assim tornando os
próprios partidos liberais e neoliberais supérfluos, como inteligência
política, constituindo-os como mera extensão e reprodução daquele
movimento do dinheiro, promovendo a irrelevância das suas construções
programáticas.
O surgimento de partidos de extrema direita e de caráter fascista em
toda a Europa, com base de massas, também é uma agonia da política
burguesa democrática em seu sentido clássico e, em termos humanos,
imprime nestes partidos o mesmo conteúdo ideológico de barbárie que
move as atuais guerras de conquista territorial pelas fontes de energia
fóssil: ambos os processos são inspiradas pelo espírito patriótico,
ambos dependem de aplicação de doses maciças de violência para serem
vitoriosos, ambos respaldam o poder dos mais fortes e mais decididos a
dominar e vencer, ambos não tem a aniquilação da vida do outro como
limite moral do seu projeto de poder.
Ao tentar desmoralizar o Brasil, sem qualquer rubor e apostando que a
Copa fosse um festival de incompetência e violência generalizada, a
direta conservadora e antidemocrática do país – associada material e
ideologicamente ao capital financeiro e sua estrutura de poder
internacional – mostrou mais uma vez que não conhece o Brasil. Nem o que
tem de bom, produtivo e organizado, no Estado brasileiro. Não conhece o
seu povo, porque não convive com as suas lutas nem compreende a sua
linguagem, como demonstraram quando quiseram impedir o Prouni e o
Bolsa-Família, por exemplo. Não conhecem o Estado Brasileiro, porque
prestam atenção somente nas suas imperfeições e mazelas históricas, com
os olhos de quem quer destruir o que ele tem de público para construir
uma nação soberana, pautada pela Justiça e pela Liberdade.