Porque livros não se tornam clássicos à toa.
O melhor do espaço Lounge do Obvious é a possibilidade de interagir
com o pensamento de outras pessoas. Afinal de contas, para cada artigo
que publicamos, centenas são publicados para a nossa leitura e isso nos
permite encontrar as mais diversas opiniões, inclusive as frontalmente
divergentes das nossas.
Pois bem. Foi navegando pelo espaço que me deparei com um texto intitulado "
Já sofreu Preconceito Literário?" publicado pela
lounger
Renata Ferreira. Ali ela aponta de modo bastante claro que há entre nós
um sentimento de que alguns livros não merecem ser lidos, quando para
ela toda leitura seria válida. A autora aponta também outros aspectos
positivos da leitura dessas obras proibidas, por assim dizer, como por
exemplo o fato de esses livros serem um convite à leitura àqueles que
não têm o hábito de ler.
No entanto, senti imensa vontade de contestar, isso muito
respeitosamente, alguns pontos do artigo. Tanto os apontados por Renata
quanto os que não foram abertamente defendidos por ela mas que mesmo
assim remanescem.
Antes disso, contudo, vou apontar aquilo que nos une. Eu também acho
indecoroso o julgamento sumário das leituras dos outros, de modo que
convicções do tipo "Ufa. Pensei que era Crepúsculo!", por exemplo, são
extremamente desagradáveis. Essas colocações somente servem para que o
julgador se sinta de alguma maneira em um patamar elevado, como se não
ler esse livro fosse sinal de elevação de consciência literária, se é
que isso existe.
Também creio que a crítica ao
best-seller somente por ele
assim se apresentar é equivocada. Nem todo livro bem vendido é
necessariamente ruim e não vai ser a grande saída dessas obras que vai
tirar o mérito de seus escritores. Alguns novos autores tem grande
potencial e de fato escrevem livros de destaque.
Dentro daquilo que eu concordaria em parte, o primeiro ponto é o que
diz que toda leitura é válida. Este, na minha opinião, é um raciocínio
perigoso e que por si só coloca Crepúsculo e um clássico no mesmo
patamar de importância, se considerarmos apenas o critério de validade.
Afinal de contas, se vale qualquer leitura, tanto faz um
best seller ou um Victor Hugo, por exemplo, já que os dois satisfazem ao propósito.
No entanto, o fato de toda leitura ser válida não significa dizer que
toda leitura seja igualmente frutífera. Mesmo sendo todos válidos,
alguns livros acrescentam infinitamente mais que outros. O crescimento
proporcionado por cada obra - seja objetivo ou subjetivamente falando -
está além da mera validade e é esse o ponto a ser considerado.
É preciso que se perceba que alguma coisa fez um livro se
imortalizar. E não foi a mídia comercial ávida por transformar em
roteiro de cinema qualquer obra que aparece, mas sim a capacidade do
clássico de se renovar e se reinventar com o passar dos anos, revelando a
cada linha a controversa conduta humana, seus anseios, dores e demais
sentimentos que sempre acompanharam a humanidade. Isso sem contar a
qualidade técnica muitas vezes aplicada no texto, na forma. É fascinante
ler um clássico da década de 40 e perceber que não há nada tão atual. É
surpreendente ler algo do início do século XX e constatar que até hoje
se pensa dentro do círculo apontado por aquele autor visionário.
Um clássico é um livro de leitura sempre corrente, apreciado desde a
sua concepção até os tempos de hoje por diversos leitores e sempre com
múltiplas respostas, ao mesmo tempo em que propõe novas perguntas. Se
caracteriza também por propor reflexões - e conclusões - que, embora
apresentadas à época em que foi escrito, se readaptam e se atualizam por
si mesmas, vez que a visão de mundo ali apontada muitas vezes se repete
em nosso cotidiano. É como se o clássico nos fizesse nos deparar com
diversas situações, que ocorreram ou que ainda vão ocorrer, e nos
apresentasse alternativas através da experiência ali concentrada, tal
como um manual de viver a vida.
O clássico inova no campo das ideias, no modo de escrever ou nos
dois. Nem sempre se pensou o mundo da forma que pensamos hoje e nem
sempre se escreveu com toda a liberdade que agora temos. Muitas vezes,
ou quase sempre, foi papel dos clássicos transgredir, romper modelos
tidos como absolutos e apontar novos horizontes.
Assim,
O Pequeno Príncipe hoje em dia pode parecer um livro
normal e até cheio de clichês, com a diferença de que foi Saint-Exupery
quem inaugurou aqueles clichês, até hoje trabalhados em obras
literárias. Já obras como
Laranja Mecânica, por exemplo,
transgridem não só o tempo, mas também o próprio modo de escrever. É uma
obra escrita como se falada fosse, inclusive com as gírias próprias do
grupo em que o jovem protagonista se insere. É nesse patamar que estão
tantos outros clássicos.
Se engana também quem acha que clássicos são sérios, sisudos e
representam a opinião de pessoas quadradas e burocráticas e que a busca
de alternativas demanda necessariamente o contato com livros bem
vendidos de hoje em dia. Alguns livros atuais são densos e sérios,
outros não. Acontece a mesma coisa com os clássicos. A obra-prima do já
citado Exupery é um belo exemplo, vez que
O Principezinho é agradável e de fácil leitura, sem nunca deixar de ser um grande clássico.
Um outro ponto a ser por mim contestado e que, frise-se, não foi
abertamente trabalhado pela autora, é aquele que relativiza as coisas a
ponto de concluir que o bom pode ser ruim e o ruim pode ser bom a
depender da perspectiva a ser adotada. Não é assim. Eu posso, dentro da
minha subjetividade, achar bom um livro ruim, mas não poderei nunca
deixar de considerar os aspectos objetivos inerentes à obra. Dessa
forma, eu posso crer que Crepúsculo é bom pois me põe em contato com
bons sentimentos, por exemplo, mas não posso negar aspectos objetivos do
livro, como o fato de que o roteiro é controverso e até repetitivo e
que a história é igual a tantas outras já escritas.
Se a mera subjetividade fosse suficiente para considerar boa uma
obra, qualquer um teria capacidade de ser um crítico de cinema, de arte
ou de literatura.
Ora, se eu vejo e a minha impressão é suficiente para me fazer
opinar, qual o sentido da crítica especializada, por exemplo? E por
favor não me interpretem mal. Sou contra a oficialização do conhecimento
e das opiniões, mas ainda creio que algum embasamento técnico seja
necessário para tanto.
Parece óbvio mas, mesmo com o sopro dos ventos pós-modernos dizendo o
contrário, o bom é bom e o ruim é ruim. E diferentemente do que se
pensa, é fácil perceber a qualidade quando ela existe. Salta aos olhos.
Creio que tanta relativização anestesiou autores e leitores a ponto de
fazê-los celebrar como grandiosas obras que talvez não passem de
razoáveis.
É que a gente esquece que muitas vezes foi a busca pela excelência e
pelo primor, e não o publicar por publicar e chover cada vez mais no
molhado, que tornou os autores imortais e as suas obras verdadeiros
clássicos. Talvez houvesse naqueles tempos uma vontade escancarada de
ser o melhor e eu não sei se isso existe hoje.
E já que falei dele, diz-se que Victor Hugo, ainda novo, escreveu no
seu diário "Quero ser Chateaubriand ou nada". Chateaubriand é um dos
balizadores da própria literatura, vale dizer.
Enfim. Não sei se esse meu texto me fez entrar no rol dos
preconceituosos literários. Somente que eu prefiro a estante dos
clássicos à dos mais-vendidos.