
Descontentes
 com a participação do país na I Guerra Mundial, soldados desertam e 
aderem aos bolcheviques, num movimento que seria decisivo para a 
revolução de outubro
 
Um grande escritor e cartunista contemporâneo reconstitui os meses que antecedram a tomada do poder pelos bolcheviques. No trecho a seguir, agosto de 1917, quando a direita tentou retomar o poder e Lenin teve de fugir para a Finlândia
Por 
China Miéville
—
MAIS: DE CHINA MIÉVILLE:
Outubro — reconstituição histórica
(Editora Boitempo, R$ 59)
Marxismo e Fantasia
(Artigo publicado na revista Margem Esquerda, nº 23) (baixar grátis o arquivo)
A Cidade & a Cidade — ficção
(Editora Boitempo, R$ 49)
Estação Perdido — ficção
(Editora Boitempo, R$ 89)
Participantes de 
Outros Quinhentos podem adquirir estes e dezenas de outros livros com 20%, 40% e 60%, em 
Outros Livros, nossa loja virtual
==
AGOSTO: EXÍLIO E CONSPIRAÇÃO
Naqueles últimos dias de verão, enquanto a direita planejava uma 
limpeza, uma indulgência milenarista florescia. Música e dança a noite 
toda, vestidos e gravatas de seda tingida, moscas rondando bolos 
quentes, vômito e bebida entornada. Longos dias, quentes noites 
orgíacas. Um sibaritismo de fim de mundo. Em Kiev, disse a condessa 
Speránski, havia “jantares com bandas e corais ciganos, bridge e até 
tango, pôquer e romances”. Assim como em Kiev, também nas cidades Rússia
 afora, entre os ricos sonhadores.
Em 3 de agosto, o VI Congresso do Partido Operário 
Social-Democrata Russo – o Congresso Bolchevique – aprovou por 
unanimidade a resolução em favor de um novo lema. Um meio-termo entre os
 impacientes “leninistas”, que enxergavam a revolução entrando em uma 
nova fase, pós-Soviete, e os moderados, que ainda acreditavam que podiam
 trabalhar com os socialistas à sua direita para defender a revolução. 
Mesmo assim, a importância simbólica da mudança de palavras era imensa. 
As lições passadas deram calma, os apelos mudaram. Julho havia cumprido 
sua missão. Os bolcheviques não pediam mais “Todo o poder aos sovietes”.
 Em vez disso, eles aspiravam ao “Fim da ditadura da burguesia 
contrarrevolucionária”.
*

O
 Soviete mudou de endereço, conforme solicitado. O Instituto Smolni foi 
construído no início dos anos 1800: um grandioso edifício neoclássico no
 distrito de Smolni, a leste do centro da cidade, às margens do Neva, de
 corredores cavernosos, assoalho branco, iluminação elétrica pálida. No 
térreo havia um grande refeitório entre os corredores alinhados e 
repletos de escritórios sempre cheios de secretários, deputados e 
facções dos partidos do Soviete, suas organizações militares, seus 
comitês e seus conclaves. Pilhas de jornais, panfletos, pôsteres cobriam
 as mesas. Metralhadoras se projetavam das janelas. Soldados e 
trabalhadores se comprimiam nas passagens, dormiam em cadeiras e bancos,
 faziam a segurança das reuniões, sob a vigilância de molduras douradas 
vazias, das quais retratos imperiais haviam sido cortados.
Até pouco antes da revolução, o instituto havia sido um 
estabelecimento de ensino para as filhas da nobreza. Antigo fiador do 
poder estatal, o Soviete foi rebaixado a grileiro de uma escola de 
etiqueta para moças. Quando o Soviete inteiro se reunia, o evento tinha 
lugar no que antes fora o salão de bailes.
No dia 3, Kornílov foi encontrar Keriénski e, mais uma vez, fez 
várias exigências ao homem que tecnicamente era seu chefe. Elas 
incluíam, num endurecimento de sua atitude anterior, uma rígida 
restrição aos comitês de soldados. Embora concordassem amplamente com 
sua essência, Keriénski, Sávinkov e Filoniénko reformulariam o documento
 apresentado por Kornílov a fim de encobrir seu menosprezo incendiário. A
 repulsa do general ao governo só aumentou quando, no momento em que se 
preparava para informar o gabinete sobre a situação militar, Keriénski 
discretamente o aconselhou a não ser muito específico – e insinuou que 
alguns membros do gabinete, em particular Tchernov, poderiam representar
 perigo.
Durante o encontro, Keriénski fez uma pergunta intrigante a 
Kornílov. “Suponha que eu tenha de renunciar”, ele disse, “o que 
acontecerá? Você ficará sem saída, as ferrovias pararão, o telégrafo 
deixará de funcionar.” A resposta contida de Kornílov – de que Keriénski
 deveria permanecer no cargo – foi menos interessante do que a própria 
pergunta. A intenção por trás dessa melancolia é obscura. Estaria 
Keriénski buscando se certificar de que Kornílov continuaria a apoiá-lo?
 Estaria ele, talvez, cautelosamente sondando a possibilidade de uma 
ditadura de Kornílov?
Há uma multidão em cada um de nós, e em 
Keriénski havia uma multidão maior do que a da maioria. A pergunta 
lamuriosa poderia expressar tanto o horror quanto a esperança na ideia 
de desistir, de se entregar ao intimidador comandante em chefe. Uma 
pulsão de morte política.
O ódio à guerra continuava crescendo. De todo o país vinham inúmeros relatos de soldados que resistiam à transferência.
Uma batalha propagandística se intensificou
 em torno de Kornílov, refletindo a crescente separação entre a extrema 
direita do país, em torno da qual gravitavam os kadets, e o reduzido 
poder dos socialistas moderados. No dia 4 de agosto, o Izviéstia
 fez alusão a planos de substituir Kornílov por Tcheremísov, um general 
relativamente moderado que acreditava na colaboração com os comitês de 
soldados. No dia 6, o Conselho da União de Tropas Cossacas 
reagiu, dizendo que Kornílov era “o único general que poderia restaurar o
 poder do Exército e tirar o país dessa situação de extrema 
dificuldade”. O conselho, por sua vez, deu a entender que haveria uma 
rebelião caso Kornílov fosse removido.

Lenin com peruca e sem o cavanhaque num passaporte falso para a fuga à Finlândia
 
A União dos Cavaleiros de São Jorge deu seu
 apoio a Kornílov. Conservadores importantes de Moscou, sob o comando de
 Rodzianko, enviaram-lhe telegramas veementes, dizendo que naquele 
“momento ameaçador de dura provação, o pensamento da Rússia se volta 
para o senhor com esperança e fé”.
Kornílov exigiu de Keriénski o comando do 
Distrito Militar de Petrogrado. Para deleite de uma direita sequiosa de 
golpe, ele ordenou que o chefe do Estado-Maior, Lukómski, concentrasse 
as tropas nas proximidades de Petrogrado – o que permitiria que fossem 
rapidamente enviadas à capital.
O pano de fundo dessa manobra não era 
apenas a catastrófica e cada vez mais grave situação econômica e social,
 mas um aumento consciente e deliberado das tensões em certos setores da
 direita punitiva. Em um encontro de trezentos magnatas dos setores 
industrial e financeiro no início de agosto, o discurso inaugural foi de
 Pável Riabuchínski, poderoso empresário do setor têxtil. “O governo 
provisório possui apenas a sombra do poder”, disse. “Na verdade, um 
bando de charlatões políticos está no controle […]. O governo está 
concentrado nos tributos, impondo-os primeira e cruelmente à classe 
comerciante e industrial […]. Não seria melhor, em nome da salvação da 
pátria, nomear um guardião acima dos perdulários?”
Em seguida demonstrou um sadismo tão 
espantoso que atordoou a esquerda: “A mão descarnada da fome e da 
destituição nacional vai agarrar os amigos do povo pelo pescoço”.

Chine Miéville: escritor, cartunista e ativista político
 
Esses “amigos do povo” que ele sonhava ver ao alcance de esqueléticos dedos predadores eram os socialistas.
Não foi apenas pela direita, entretanto, 
que a pressão se acumulou. Além disso, no dia 6, em Kronstadt, 15 mil 
trabalhadores, soldados e marinheiros protestaram contra a prisão dos 
líderes bolcheviques Steklov, Kámeniev, Kollontái e outros. Em 
Helsingfors (Helsinque), uma assembleia de proporções semelhantes 
aprovou uma resolução a favor da transferência do poder aos sovietes. É 
claro que essa reivindicação agora era ultrapassada no que dizia 
respeito aos bolcheviques, mas representava uma guinada à esquerda para a
 maioria dos trabalhadores. Impulsionada pelos bolcheviques e pelos 
militantes da ala esquerda dos Socialistas Revolucionários (SRs), no dia
 seguinte a seção dos trabalhadores do Soviete de Petrogrado criticou a 
prisão dos líderes de esquerda e a volta da pena de morte militar. Eles 
conquistaram votos. Mencheviques e SRs começaram a reclamar de deserções
 à esquerda – em suas próprias seções maximalistas ou mais além.
Tais sinais de recuperação da esquerda eram
 inconsistentes e irregulares: em 10 de agosto, nas eleições em Odessa, 
por exemplo, os bolcheviques conquistaram apenas três das cem cadeiras. 
Mas nas eleições municipais de Lugansk, no início de agosto, os 
bolcheviques conquistaram 29 das 75 cadeiras. Em Reval (hoje Talin), 
obtiveram mais de 30% dos votos, quase o mesmo que em Tver, pouco tempo 
depois, e em Ivánovo-Voznessiénsk conquistaram o dobro disso. Por todo o
 território do Império, a tendência era nítida.
Encolhido em sua choça, em um dia de chuva 
forte, Lenin foi surpreendido por palavrões. Um cossaco estava se 
aproximando pela mata molhada.
O homem suplicou para se abrigar do 
aguaceiro. Lenin não tinha muita escolha exceto afastar-se e deixá-lo 
entrar. Enquanto estavam sentados ali, ouvindo o tamborilar dos pingos, 
Lenin perguntou ao visitante o que o trazia àquele lugar tão fora de 
mão.
Uma perseguição, o cossaco disse. Ele estava atrás de alguém chamado Lenin. Para levá-lo de volta, vivo ou morto.
E o que o condenado havia feito, perguntou Lenin com cautela.
O cossaco fez um gesto com a mão, impreciso
 quanto aos detalhes. O que ele sabia, enfatizou, era que o fugitivo 
estava “encrencado”, era perigoso e estava nas redondezas.
Quando o céu finalmente abriu, o visitante 
agradeceu ao seu anfitrião temporário e partiu pelo mato encharcado para
 continuar as buscas.
Depois desse incidente alarmante, Lenin e o
 Comitê Central, com o qual ele continuava a se comunicar em segredo, 
concordaram que ele deveria se mudar para a Finlândia.
Em 8 de agosto, Zinóviev e Lenin 
abandonaram a choça acompanhados por  Emeliánov, Aleksandr Chótman – um 
“velho bolchevique” finlandês – e Éino Riákha, um ativista vistoso, de 
bigode extravagante. Os homens atravessaram o pântano às margens do lago
 até uma estação local, numa longa, árdua e úmida caminhada, cheia de 
retornos errados e má vontade, até saírem finalmente, se arrastando, em 
frente à ferrovia de Dibuny. Mas os problemas não haviam acabado: ali, 
na plataforma, um cadete do Exército, desconfiado, provocou Emeliánov e o
 prendeu. Mas Shotman, Riákha, Zinóviev e Lenin pegaram rapidamente 
um trem com destino a Udelnaya, nos arredores de Petrogrado.
Dali, Zinóviev seguiu para a capital. A jornada de Lenin ainda não havia acabado.
No dia seguinte, o trem 293 para a 
Finlândia chegou à Estação de Udelnaya. O condutor era Guro Jalava, 
ferroviário, conspirador e marxista engajado.
“Parei na beira da plataforma”, ele se 
lembrou depois, “quando um homem saiu do meio das árvores a passadas 
largas, subiu na plataforma e entrou na locomotiva. Era Lenin, claro, 
embora eu mal o tivesse reconhecido. Ele acabou sendo meu foguista.”
A fotografia no passaporte falso com que 
Lenin – “Konstantin Petróvitch Ivánov” – viajou tornou-se famosa. Com um
 quepe pousado no alto de uma peruca encaracolada e os cantos da boca, 
pouco familiar no rosto sem barba, ironicamente repuxados para cima, 
seus olhos profundos e pequenos são tudo que se pode reconhecer.
Lenin arregaçou as mangas. E pôs mãos à 
obra com tanto entusiasmo que o trem lançou nuvens de fumaça generosas. O
 condutor se lembrava que Lenin usou a pá com gosto, alimentando a 
locomotiva, fazendo com que andasse rápido, levando-o para longe por 
trilhos e dormentes.
Quando finalmente desembarcou, o foguista 
Lenin ainda tinha uma tortuosa jornada clandestina à sua frente. Foi 
apenas às onze horas da noite do dia 10 de agosto que ele chegou ao 
apartamento pequeno e simples da Praça Hakaniemi, no norte de 
Helsingfors (Helsinque). Ali era a residência dos Rovio. Como a sua 
esposa estava fora, visitando a família, Kustaa Rovio, militante 
social-democrata, havia concordado em abrigar o marxista russo.
A carreira de Rovio, um homem grande e 
imponente, havia dado uma guinada improvável e extraordinária. 
Socialista de longa data, ele também era, agora, chefe de polícia de 
Helsingfors. Como exatamente ele conseguiu conciliar esse papel com a 
militância revolucionária é algo incerto. Sobre o hóspede que, poucos 
anos antes, havia defendido manter reservas de “bombas, pedras etc. ou 
armas químicas” para jogar contra seus colegas, o chefe de polícia Rovio
 disse: “Nunca conheci um camarada tão amistoso e encantador”.
A única exigência de Lenin – e nisso ele 
era inflexível – era que Rovio devia conseguir jornais russos todos os 
dias e dar um jeito de entregar secretamente as cartas que ele trocava 
com seus camaradas do partido. Isso o anfitrião fez até mesmo quando sua
 esposa retornou e Lenin teve de se mudar para o apartamento de um casal
 socialista, os Blomqvists, próximo a Telekatu.
Percorrendo rotas arriscadas, subindo a pé 
pela floresta até a fronteira, Krúpskaya visitou o marido mais de uma 
vez. O próprio Lenin passeava por Helsingfors com uma liberdade fora do 
comum. “Para me pegar”, disse com prazer, na mesa da cozinha dos 
Blomqvists, enquanto lia sobre a caçada do governo, “é preciso ser 
rápido, Keriénski.”
Acima de tudo, ao longo de agosto, assim 
como havia feito em julho e faria em setembro, Lenin escrevia. 
Mensagens, cartas e instruções aos camaradas, e outra longa obra. Já no 
primeiro dia em que o hospedou, Rovio encontrou Lenin adormecido na 
escrivaninha, com a cabeça sobre os braços e um caderno cuidadosamente 
escrito diante de si. “Tomado pela curiosidade”, relatou Rovio, “comecei
 a virar as páginas. Era o manuscrito de O Estado e a revolução.”
O livro é uma extraordinária e vigorosa 
negociação entre o antiestatismo implacável e a necessidade temporária 
do “Estado burguês sem a burguesia”, sob o domínio do proletariado. O 
texto histórico, descrito por Lucio Colletti como “a maior contribuição 
de Lenin à teoria política”, foi escrito em cima de um tronco às margens
 de um lago infestado de mosquitos e, depois, na mesa de um policial. E 
não estaria concluído quando as circunstâncias mudaram e Lenin pôde 
retornar à Rússia. O texto termina com um famoso resumo: “É 
mais prazeroso e útil passar pela experiência da revolução do que 
escrever sobre ela”.
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade:  OutrosQuinhentos