O sistema capitalista vigente, potencializou os espaços urbanos e as
desigualdades sociais. A cidade industrializada, transforma o espaço
físico, as multidões aglomeradas, trazem doenças, perigos eminentes,
caos, desordem. A medicina sanitária, trabalha nos polos urbanos,
contendo as epidemias, contaminações, causadas pelo meio geográfico,
moradia.
No Brasil, temos ‘A Revolta da Vacina’, movimento fruto da medicina
higienista e sanitário- urbanística. Os meios de controle social emergem
na cidade a partir de então, a ‘ameaça’ está a solta, por conta demanda
e oferta de trabalho ser desigual, formas alternativas de trabalho
começam a surgir nos centros urbanos, a criminalidade. Evidentemente, o
alienismo associa loucura e crime, tais práticas como vagabundagem, o
jogo, vícios e a prostituição são condenadas e consideradas anti-socias.
A prole pobre e urbanizada precisa ser disciplinada, a instituição
asilar, visa regenerar, curar, disciplinar e moralizar os degenerados.
Mas afinal qual é o lugar do louco em nossa sociedade? Quem é
considerado louco? Existe uma construção social em torno do manicômio,
pois o louco não poderia ficar perambulando pelos espaços da cidade. É
ameaçador.
O imaginário da loucura no Juquery pelos internos é um lugar de prisão,
infernal, habitação do diabo, lugar de malucos. O que chama atenção numa
instituição que teoricamente deveria ‘cuidar’ e ‘zelar’ pelos
pacientes. A denúncia está posta, a trajetória da luta antimanicomial a
fim de transformar o imaginário social sobre a loucura.
Ao ser internado no hospício, o interno só era diagnosticado
posteriormente, nesse sentido, os considerados ‘loucos’ eram um público
variado: imigrantes, homossexuais, presos políticos, alcoólatras,
prostitutas, negros, drogados e vagabundos.
A loucura é produto de associações de devaneios, o que se distancia
da realidade, mero produto da imaginação, ausência da razão. Diversas
modificações acerca do conceito da loucura, foram feitas, desde então.
Ao final do século XIX, a loucura estava vinculada com o incumprimento
das normas sócias, ou seja, o indivíduo que não se adequasse aos moldes,
era considerado insano e perigoso. Relacionada a um desequilíbrio
mental, numa percepção distorcida da realidade, a demência.
Em uma sociedade burguesa vitoriana, no final do século XVIII, o lugar
do louco era longe das pessoas ‘sadias’. Nesse sentido, aprisionar,
anular e criar espaços para sua reclusão, os hospícios, o lugar social
do louco a partir de então.
O Hospital Psiquiátrico do Juquery, foi inaugurado e, 1898, sob a
administração do médico psiquiatra Francisco Franco da Rocha,
instituição ligada ao governo do Estado de São Paulo. Na época, o mais
novo e famoso hospital psiquiátrico do Brasil. Enfrentou sucessivas
crises e na década de 1930, as denúncias relativas aos direitos humanos:
condições de higiene dos internos, violência, práticas abusivas,
alimentação, condições de moradia, falta de funcionários e precariedade
das instalações.
O Hospício dos Alienados, a psiquiatria recorrente ortodoxa, com
práticas severamente criticadas no Ocidente. A violência asilar, o uso
da psiquiatria para reprimir e torturar em prol do governo totalitário,
durante a ditadura militar no Brasil.
A ‘banhoterapia’, consistia em manter o paciente amarrado a uma
cadeira embaixo da ducha gelada, funcionando melhor no frio e as vezes
era utilizado pedras de gelo. O ‘boticão’ era o método em que o dentista
arrancada de uma vez, os dentes dos internos, para evitar mordidas. O
ECT – eletroconvulsoterapia, o tratamento de choque, feito no porões do
Juquery ,quando o paciente recebia a carga de eletricidade,
estrebuchavam e se contorciam perdendo a capacidade de controlar suas
funções fisiológicas, babavam e após o término dormiam e acordavam
enfraquecidos.
“ Aquele lugar parecia uma maçã podre. Por fora, a casca era bonita e
reluzente, com prédios e construções que eu nunca tinha imaginado que
veria na minha vida. Do lado de dentro, a polpa estava pobre e carcomida
por vermes famintos. Um amontoado de homens pelados ou maltrapilhos com
a cabeça raspada passava o dia perambulando pelas galerias e corredores
e povoava cada um dos pátios.” ( O Capa Branca – Farias, Walter e Sonim
Daniel Navarro– pag 35)
O lugar de fala dos ‘loucos’, apesar das inúmeras tentativas de
apagar, aniquilar sua presença, os relatos e registros incorporam e
denunciam as práticas cruéis e desumanas, a resistência. Os oprimidos
tem nome, um rosto, uma história.
Pois bem, o modelo de sociedade disciplinada tem relação com o
alienismo, produto de uma instituição higienista, o hospício. Lugar que
foi criado e pensado para ‘curar’ a loucura. Em meados do século XIX, a
sociedade burguesa, ambientou lugares de isolamento e exclusão social
para indivíduos pobre e doentes.
O alienismo está a desserviço da instituição, para ‘curar’ os indivíduos
degenerados e desempenhar um papel social, de disciplina e controle
mental.
A questão dos crescimento urbano enfatiza as práticas alienistas, na
Europa e consequentemente no Brasil. Em São Paulo os hospícios surgem,
numa arquitetura moderna contrastando com edifício e fábricas em meio a
cidade, o ‘progresso’.
O hospício a partir de então, surgem respectivamente nas cidades
brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo (1852), Recife (1861), Salvador
(1874) e Porto Alegre (1884).
Os ‘deslocados sociais’ dentro da cidade urbana e industrializada são
marginalizados, os negros, foram postos de lado nos setores
industriais, residentes de uma trabalho compulsório manual, do antigo
sistema, vivem na pobreza extrema, em subempregos. Os velhos, menores,
mulheres, doentes mentais e deficientes serão considerados improdutivos e
inferiores para sociedade.
O Hospital Psiquiátrico Juquery em 1901- comportava 590 internos,1904
esse número cresce para 823 internos e 48 pencionistas, de 1907 – 1928
feitas devidas ampliações o número de internos é absurdamente grande –
1.900, fora os pensionistas. A área distribuída em quatro pavilhões
masculinos, cinco femininos e a um para as crianças.
Apesar as superlotação, milhares de pessoas aguardavam para serem
internados vindas de todo o Estado.
O trabalho é visto como meio de moralização e como instrumento
terapêutico, segundos princípios do alienismo, de Pinel à Freud. Longe
de constituir um meio de cura, o trabalho era recomendado para os
doentes sem possibilidade de reintegração social, os internos do
Juquery, apenas do sexo masculino praticavam atividades manuais
agrícolas e pecuárias, como procedimento terapêutico, a laborterapia.
Todos os alojamentos demonstram a característica falta da
individualidade e privacidade, lugar de recolhimento, isolamento social,
como remédio para a loucura. A resistência dos internos dá-se por
tentativas de recuperar a identidade perdida.
Quando chegam ao hospício central, os internos seguem uma ‘carreira
asilar’, após o diagnóstico, são submetidos as ‘terapias modernas’:
banho gelados ou quentes alternadamente, banheiras em ‘duchas
circulares’, causador frequente de afogamentos, terapia de choque,
drogas e outros formas. E lá permaneciam até o resultado sair, sendo
negativo ou positivo. Os internos ditos ‘incuráveis’ eram encaminhados
para as ‘colônias’, grandes pavilhões com espaços externos, cercados por
muralhas e guardas.
Evidentemente o hospício assume seu papel disciplinador, um sistema
que convence o interno da sua prisão, e vende a imagem de uma ‘falsa
liberdade’, onde o interno poderia sair quando quisesse, porém ‘os
loucos’, não poderiam achar que estavam presos, era conveniente que o
asilo demostrasse a aparência de liberdade perante a sociedade.
Contudo, inegavelmente o hospício se assemelha à prisão: grades, muros,
guardas no corredores, severidade. Foram poucos os internos que
usufruíram das colônias agrícolas, dispunham essa aparência de
‘liberdade’, habitações coletivas sem grades, muros ou segurança,
jornadas de trabalho, posse de animais, a laborterapia, destinada apenas
aos homens.
Um cenário nada animador, o lugar cheirava a excrementos, urina e
vômito, os internos deitavam nos colchões finos e esburacados
apodrecendo, as marcas de escaras infeccionavam e as moscas pousavam
sobre os ferimentos expostos. Os capas brancas limpavam e higienizavam o
local, cuidavam dos internos, dando banho, medicamentos e comida.
O padrão de tratamento do alienismo supera o senso comum, o próprio tabu
da internação, das práticas terapêuticas. O sistema disciplinador
atuando em internos: fujões, suicidas, libidinosos, recusadores de
alimentos e criminosos, o uso da camisa de força. A diferença sexista é
inerente, os homens são considerados perigosos, devem usar a força no
trabalho, na produtividade para ‘curar’ a loucura. Os considerados
furiosos, eram amarrados à cama, isolados, confinados nas celas, se
debatiam e acabam sedados ou recebiam ECT.
“(...) As mulheres permaneciam toda a noite com os pés e mãos
amarrados – os pés unidos e as mãos atadas ao leito -, havendo registros
de óbito por asfixia. (...)” ( O Espelho do Mundo - Cunha, Maria
Pereira Clementina)
Enquanto as mulheres, a terapia destina outros trabalhos,
domésticos, manuais, condizentes com ‘a normalidade feminina’. As
mulheres sobretudo, as solteiras, que viajam sozinha, independentes, que
optaram por não serem mães, com vida sexual ativa, indícios de
‘problema’, são reprimidas, vigiadas constantemente, em relação a
sexualidade, à má conduta, a masturbação, era considerada ‘indecente’ e
vergonhosa. Dessa forma, eram internadas no Juquery, por distúrbios
relativos a questão da sexualidade, lasciva, pré-determinados por papéis
sociais: boa filha, mãe e mulher, a loucura histérica.
A postura corporal dos internos: olhares apáticos cabisbaixos, ombros
caídos, passividade e melancolia. Jovens ou velhos, esqueléticos ou
gordos, alguns tinha dificuldade de andar, se arrastavam no chão. No
pátio os ruídos e grunhidos dos internos, entre conversas paralelas,
berros, canções, gritos e palavrões.
Apesar de serem cercados por todos os lados, constrangidos
constantemente, houveram entre os internos o movimento de resistência:
“(...) Cago nas suas artes de curar(...) eu fico com a minha loucura.’
Muitos internos organizavam a jogatina, apesar de proibido, o ‘dinheiro,
que só tinha valor dentro do hospício, circulava na forma de escambo,
onde eram trocadas mercadorias: cigarros, comida, roupas, bebida e mesmo
o empréstimo de dinheiro com juros.
Comumente eram encontrados relatos nas anotações dos internos, que
desejavam sair do asilo, voltar para casa, para a sociedade. Uma forma
de manter o contato com o mundo exterior, sem tv, rádio, era por
intermédio das cartas, que sofriam censura e pouquíssimas eram entregues
ao destinatário. Há, dessa forma, elementos do discurso alienista, que
padronizam os instrumentos usados em pacientes de classe social popular,
o proletariado é produto de procedimentos discriminatórios e
excludentes. Nesse sentido, como fenômeno social, a loucura coletiva, se
torna uma ameaça a ser combatida pela ciência.
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