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Política
Editorial
Eterno golpismo
Miúda reflexão sobre impeachment, democracia e Estado de Direito no país da casa-grande
por Mino Carta
—
publicado
18/09/2015 06h25
Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
Na esteira do Cruzado 1, em outubro de 1986 José Sarney
cometeu estelionato eleitoral logo após a vitória peemedebista nas
eleições para os governos estaduais, Congresso e Assembleias, ao lançar o
Cruzado 2 e arrastar o País para uma crise econômica de grande porte. A
situação, complicada pelo fracasso da moratória do começo de 87,
perdurou até o fim do mandato de Sarney.
Nem por isso se cogitou, em momento algum, do impeachment do ex-vice-presidente tornado presidente pela morte de Tancredo Neves, em claro desrespeito a qualquer regra do jogo pretensamente democrático.
Ao lançar o olhar além-fronteiras, temos o exemplo recente de Barack Obama,
atingido em cheio pela explosão da bolha financeira de 2008, a
mergulhar os Estados Unidos em uma crise de imponentes proporções.
Obrigado a enfrentar a queda progressiva do valor do dólar, assoberbado
pelas habituais pressões e ameaças das agências de rating, vítima
de índices de aprovação cada vez mais rasos, Obama acabou sem o apoio
da maioria parlamentar. Nem por isso sofreu o mais pálido risco de impeachment, mesmo porque hipóteses a respeito seriam simplesmente impensáveis aos olhos dos parlamentares americanos, mesmo republicanos.
Se a ideia já teve no Brasil razão de vingar, ao menos de ser aventada, foi em relação a Fernando Henrique Cardoso:
comprou votos para se reeleger e comandou privatizações que assumem as
feições inequívocas das maiores bandalheiras-roubalheiras da história
pátria, realizadas às escâncaras na certeza da impunidade. Praticante
emérito do estelionato eleitoral, fez campanha para a reeleição à sombra
da bandeira da estabilidade para desvalorizar o real 12 dias depois da
posse para o segundo mandato.
FHC é recordista, conseguiu quebrar o
Brasil três vezes. Ao cabo, entregou a Lula um país endividado até a
raiz dos cabelos e de burras vazias. Ao longo da sua trajetória
presidencial, jamais se imaginou a possibilidade do seu impeachment.
O príncipe dos sociólogos,
outrora encarado como elemento perigoso por quantos hoje o veneram,
tornou-se xodó da mídia nativa e dos senhores da casa-grande. Favor
irrestrito e justificado: nunca houve alguém tão capacitado para a
defesa dos interesses do reacionarismo na sua acepção mais primitiva.
Hoje em dia, FHC
arca com o papel de oráculo da política brasileira com invulgar
destemor. Tudo dentro dos conformes, a desfaçatez, a hipocrisia e o
oportunismo tucanos não têm limites. O enredo é típico, assim como já é
clássico o caso de Fernando Collor, que se retirou antes de sofrer impeachment. Exemplar entrecho, de todos os pontos de vista, que vivi de perto por mais de dois anos, quando dirigia a redação de IstoÉ.
Para mim a história começa 25 anos atrás. O então repórter da IstoÉ
Bob Fernandes tocaia por dois meses o operador do presidente, PC
Farias. Chega a hospedar-se por algum tempo no apart-hotel, onde em São
Paulo vive o tocaiado. Enfim a revista publica uma reportagem de capa
sobre as façanhas do PC, em que se relata tudo aquilo que o irmão de
Collor diria a Veja um ano e meio depois, com exceção dos supositórios de cocaína.
Eis aí, neste roteiro, um aspecto ineludivelmente
brasileiro. Quando da reportagem, a mídia cuidou de não lhe dar eco e
seguimento, ao contrário do que se daria em qualquer país democrático e
civilizado.
Até então, a casa-grande suportava que o
presidente cobrasse pedágios elevadíssimos em relação a obras feitas e
ainda assim o imaginava adequado ao cargo de propiciador de benesses.
Fora a Veja, aliás, que popularizara a definição de Collor como “caçador de marajás”.
Com o tempo, a cobrança collorida passou a
ser considerada insuportável e se entendeu que valeria submeter o
cobrador a um aperto sério, embora comedido. Foi a hora da entrevista do
irmão, esta sim imediatamente repercutida.
A CPI convocada para cuidar do caso moeu meses de sessões inúteis à falta de provas. Não fosse IstoÉ,
daria em nada. A sucursal de Brasília da revista, dirigida por João
Santana, foi capaz de demonstrar a ligação entre a Casa da Dinda e o Palácio do Planalto, e o encaminhamento do impeachment foi inevitável.
A Globo prontificou-se a chamar para as
praças manifestações bastantes parecidas àquelas que pipocam de dois
anos para cá, frequentadas, sobretudo, por burguesotes festeiros,
enquanto a Veja ganhava o Prêmio Esso de Jornalismo, remota
invenção alienígena destinada a consagrar o jogo corporativo, festival
do compadrio da mídia nativa.
Há quem diga que estamos a transitar por uma conjuntura
similar àquela, e se engana, está claro, por hipocrisia ou ignorância. O
impeachment de Dilma
Rousseff é totalmente impossível à luz da Constituição. Se quiserem
mandar as aparências às favas, seria golpe mesmo, conforme conhecimento
até do mundo mineral. Mas golpismo é inerente ao país da casa-grande.
Editoriais, colunas, artigos e reportagens dos jornalões recordam, cada
vez mais, os textos de 51 anos atrás.