A Falsidade do ativista
Texto de Luiz Fernando Pondé
Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.
Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas.
O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos.
Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.
A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16.
Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los.
Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância.
Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor.
Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard.
O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.
A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade.
Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história.
"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.
Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.
Observação: Eu tento não gostar de Pondé e seguir a linha de pensamento que diz que ele próprio não passa de um intelectual fantasioso e hipócrita. Eu juro, eu tento, mas cada texto que eu leio, concluo que ele é mais perfeito. A bem da verdade, durante as ondas e manifestos que ocorreram nos últimos tempos em nosso país e toda aquela corja de adolescentes e afins (chamo afins aqueles supostos adultos ) publicando no Facebook o cliché: "Basta, o gigante acordou" quebrando lojas, apedrejando uns aos outros com o desculpa esfarrapada de luta contra a corrupção, me fatigou imensamente. Coisas assim me faz desconfiar dessa benevolência mascarada, que aliás, as mulheres (principalmente as mulheres) dominam planamente: o dom de fazer todos se sentirem culpados pelo triste destino de ser mãe e mulher. Por detrás dessa "realidade" feminina está a vaidade de se ser santificada, crucificada, de se ser santa. Não obstante, os homens parecem ter aprendido, mas de uma forma mais máscula, operante. Nada como ser um ativista e exercer a violência, a vaidade mascarado com o bem estar social. A luta pelas massas. Nós, seres humanos, somos todos iguais, baixamente dominados pela vaidade, ainda que ela venha em forma de crucificação moderna. Todos nós, intelectuais, prostitutas, advogados, médicos....todos fazem parte do mesmo nível penoso das mazelas humanas. O que muda, a bem da verdade, é a forma com que cada um consegui dissimular suas próprias mazelas. Alguns são tão astutos que conseguem se passar de Cristo, outros se passam de intelectuais equilibrados, outros de Madre Tereza de Calcutá. Mas todos no mesmo nível de miserabilidade, sendo que o que muda na verdade, é apenas a forma de cada um de se dissimular.
9 comentários:
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Quando você comenta, me deixa muito feliz! Sua opinião é muito importante.
Tanto que vou até cantar uma canção: Você é lindo (a), mais que demais, você é lindo (a) sim, onda do mar.... (lá, lá, lá, láaaaaaa)
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Delícia de texto, esse do Pondé... fiquei chapado.
Alguns trechos impactantes:
Pondé
“- Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.”
“- A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo.”
“- A verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.”
“- Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.”
Sabrina
“- Nós, seres humanos, somos todos iguais, baixamente dominados pela vaidade, ainda que ela venha em forma de crucificação moderna. Todos nós, intelectuais, prostitutas, advogados, médicos... todos fazem parte do mesmo nível penoso das mazelas humanas.” Essa foi a melhor.
Esse texto me fez lembrar e sentir profunda saudade da obra “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Nesta obra, VH demonstra de maneira primorosa como todos nós, independentemente da classe social ou nível cultural, somos afetados pela miséria. Ele sugere que “ser santo é exceção; a regra é ser justo. Errem, pequem, caiam em tentação, mas sejam justos”.
Rousseau, em “Discurso Sobre A Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”, também sugeriu essa condição vaidosa apontada no texto do Pondé, destacando que as posições moralistas do homem organizado em sociedade promoveram, com o passar dos séculos, não a perfeição do indivíduo, como sempre se acreditou, mas sim, “outros tantos passos para a decrepitude da espécie”.
Sinto medo só de pensar que estou cercado de pessoas que acreditam piamente estarem do lado “certo” da força, confiantes de que sua fé as liberta do “mal”, e crentes de que todo aquele que pensa de modo diferente certamente será um dia “condenado”.
Mas sinto muito mais medo em considerar que eu, de alguma forma, e apesar de todo meu esforço de libertação, por vezes sou dominado pelo espírito vaidoso, e me separo da massa por considerar que estou em uma “condição melhorada de entendimento”.
Todos somos miseráveis, e aqueles que creem cegamente na própria salvação pautada em uma posição excessivamente moralista, estes são ainda mais miseráveis, creio eu.
Obs.: Sabrina, eu também resisto bastante ao pensamento do Pondé, o criticismo dele às vezes é irritante... mas admito que concordo com muitas ideias que ele divulga.
Mineirinha terrível, seu blog é delicioso. Parabéns. Beijos.
Muito obrigada pelo comentário Isaqueal e fico imensamente feliz de encontrar pessoas que comungam com o mesmo pensamento que eu, uma vez que eu tenho mais facilidade de conhecer pessoas que são totalmente alheias ao que eu penso e digo.
Sua atenção é apaixonante e guardo suas observações com profundo carinho.
Um abraço forte!
Nunca confiei em pessoas que se dizem certas, santas ou o que for. Não tenho nada a dizer depois desse texto perfeito, então vou acabar meu comentário por aqui. Só queria dizer que estou adorando seu blog, e sempre que entro aqui viajo de postagem em postagem procurando mais.
Abraços!
É sempre bom ler textos desses caras, porque eles sabem muitíssimo e mesmo quando a opinião deles é bem divergente da nossa, sempre aprendemos e retiramos proveito. Eu amooo muito tudo isso! :)
Você pode até gostar do meu blog, mas aposto que gosto mais dos seus comentários! kkkkkk
Bjo linda!