House of Cards, retrato de nossa época?
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– ON 28/03/2014
Ao revelar dramaticamente como a política distanciou-se dos cidadãos, seriado retrata tempo em que vivemos e assume um certo caráter shakespeariano
Por Daniel D’Addario, na Salon | Tradução Cauê Seignemartin Ameni
“Bem antes de o Episódio 1 ter sido escrito, o seriado nos foi apresentado como se você fosse Lady Machbeth de Ricardo III”
Assim Robin Wright, astro de House of Cards, usou grandes referências inglesas para descrever a série de TV – e seu relacionamento com o personagem de Kevin Spacey – em recente mesa-redonda com jornalistas. Essa comparação é tão antiga quanto a própria trajetória do seriado, que estreou como uma série de TV britânica adaptada posteriormente no canal Netflix. Spacey, que encenou como Ricardo III em 2011 e 2012, afirmou que o ponto central da série está totalmente relacionado com a peça de Shakespeare.
Molly Parker, que interpreta um parlamentear recém-eleito, na segunda temporada, disse na mesa-redonda: “sinto que o seriado tem um quê shakespeariano, é um tipo de Ricardo III – e refere-se, na temática a Macbeth”.
Isso parece, à primeira vista, risível. House of Cards foi indicado para Emmys e Globos de Ouro, mas compará-lo com a arte mais duradoura do cânone ocidental é um exagero — assim como comparar The Wire a um romance de Charles Dickens, o que também acontece com frequência.
House of Cards é de pequeno calibre, em certo sentido. Mostra-nos as maquinações políticas, mas ninguém percebe que a nação será significativamente diferente se tudo o que o pensamento de Frank Underwood maquina ocorrer. De certa forma, porque suas posições politicas parecem em grande parte destinadas a preservar seu poder. As negociações com o sindicato dos professores e as tramas com os governos estaduais aparecem como enredos menores, o que revela o efeito do poder sobre a alma mas não, exatamente, o que o poder pode realizar.
Mas isso não se encaixa, de certa forma, com o espirito do nosso tempo? De uns anos para cá, House of Cards parece uma encenação histórica sobre nossa época, prenunciando a completa desconexão entre os governos e os cidadãos. Suas fendas – o grau em que, numa série sobre política, os políticos são tão irreais – ilustra bem a baixíssima confiança nos governos. “Esse tipo de poder é muito transparente e muito shakespeariano, pois está relacionado a ganância”, disse Wright sobre o poder político. Na verdade, o seriado não descreve o efeito corrosivo do poder sobre uma nação, mas sobre uma única pessoa. Talvez, como Shakespeare, os roteiristas de House of Cards tenham capturado seu tempo de uma maneira em que as futuras gerações possam estudar.
E a alma corroída no centro do seriado, se não digna de Shakespeare, também não é um mero derivativo dele. Há algo em jogo que o escritor reconheceria. O personagem Frank Underwood é um arquétipo que não muda, mas vai se tornando mais complexo no decorrer do seriado, relevando novas faces ao público. Mas Ricardo III, um personagem maquiavélico, não é o único arquétipo na obra de Shakespeare. Portia, [a heroína de O Mercador de Veneza] é, no fundo, boa. Romeu é apaixonado e dramático. Hamlet, indeciso. Shakespeare foi um mestre das personalidades por ter sido o primeiro a pesquisá-las tão profundamente. Os tipos que ele usou parecem familiares quando comparamos a pureza manipuladora e a sede de poder de Frank Underwood, com o tipo bom e simples que ele aparenta ser.
No tempo de Shakespeare, seu trabalho era tão popular quanto o jogo mais sofisticados da época. House of Cards não esta inventando a concepção moderna da humanidade, como Shakespeare fez. Isso só pode ser feito uma vez. Nessa obra de arte popular, à qual flores ou tomates serão lançados, via Twitter, temos algumas verdades óbvias e elementares através de um enredo complexo, projetado para manter a audiência pelo maior tempo possível. A linguagem mudou, mas o método – tornar visível a realidade, por meio de personalidades especificas – nem tanto. CompararHouse of Cards com Shakespeare não é pretensioso. Na verdade, deveríamos comparar mais coisas com Shakespeare. Se a obra do escritor é tão grandiosa, deveríamos procurar suas digitais em todos os lugares, e nos alegrar quando entendemos por que um seriado da TV é tão envolvente, a ponto de sacrificarmos um longo final de semana para nos empanturrarmos dele.
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