Como
os laboratórios globais manipulam insegurança e desemparo quotidianos
para multiplicar vendas — desrespeitando, se necessário, a saúde dos
pacientes
Por Martha Rosenberg, no Alternet | Imagem: Hónoré Daumier, O Doente Imaginário (1856)
Muito
antes da internet e da publicidade direta ao consumidor, a profissão
médica tentava tranquilizar as pessoas sobre suas preocupações de saúde.
Claro, fadiga e dores de cabeça poderiam ser sintoma de um tumor
cerebral; certo, tosse poderia ser um sintoma de câncer de pulmão. Mas a
maioria dos médicos tentava atenuar o medo – ao invés de semeá-lo.
Lembra do “tome duas aspirinas e me ligue pela manhã?”
Projetemos
isso para os “guias de sintomas” online de hoje, testes para ver se
você tem uma determinada doença e exortações para que vá a seu médico,
mesmo que se sinta bem. Desde que a indústria farmacêutica descobriu que
medo de doenças e até a hipocondria vendem drogas, as novas doenças,
sintomas e riscos com que as pessoas precisam se preocupar parecem não
ter fim.
Vender
sintomas para pessoas sugestionáveis tem sido uma mina de ouro para as
grandes transnacionais farmacêuticas desde que começaram a fazer
propaganda diretamente ao consumidor, no final dos anos 1990. Graças a
tal marketing, que na verdade “vende” doenças para construir a demanda,
milhões de pessoas que já estiveram muito bem têm agora alergias de
estação, Gerd (Doença do refluxo gastroesofágico), distúrbio de atenção,
distúrbio de dor e outras “doenças”.
Não
se trata de ignorar sofrimento legítimo. Mas para muita gente, a
relação com os medicamentos prescritos é melhor expressa na camiseta que
diz “Tomo aspirina para a dor de cabeça causada pelo Zyrtec, que uso contra a rinite alérgica que adquiri com o Relenza para a dor de estômago da Ritalina que eu tomo para o déficit de atenção causado pelo Scopoderm, que uso para o enjôo que me dá o Lomotil, que tomo para a diarréia causada pelo Xenical que tomo para perder o peso ganho com o Paxil que tomo para a ansiedade que me dá o Zocor,
que uso para o colesterol alto, porque praticar exercício, boa dieta e
tratamento quiroprático regularmente dão muito trabalho” (uma camiseta
que nem pode ser vestida por gente que usa números pequenos…)
Eis algumas das estratégias que a indústria farmacêutica usa para manter o público comprando drogas.
1. Medo de envelhecer e perder o apetite sexual
As
terapias de de reposição hormonal (TRH), que milhões de mulheres
fizeram até cerca de dez anos atrás, eram oficialmente vendidas para
acabar com as ondas de calor e manter os ossos fortes. Mas,
extraoficialmente, era difundidas como um modo de manter-se jovem e
sexy. Anúncios publicitários de terapia de reposição hormonal precoce
diziam às mulheres que elas tinham “sobrevivido aos seus ovários” e não
se mantinham à altura de seus maridos, que queriam mulheres com
aparência mais jovem. Quando descobriu-se que TRH aumentava o risco de
ataque do coração e câncer (“sentimos muito por isso”), as drogas para
fortalecer os ossos assumiram o papel de portadoras mensagem da
indústria farmacêutica (“não fique velha!”) para as mulheres. Agora a
indústria está dizendo aos homens que eles também necessitam de terapia
de reposição hormonal para sua “baixa testosterona” e para manter sua
potência sexual. A TRH masculina não parece mais segura que a feminina.
2. Medo de sintomas que parecem benignos
Antigamente,
pessoas com azia tomavam Eno, Alka Seltzer ou Sonrisal e juravam não
comer muito. Não se preocupavam se tinham refluxo gastroesofágico
(Gerd), estavam a caminho de um câncer do esôfago; nem tomavam
inibidores de bomba de prótons para o resto de suas vidas. Da mesma
forma, embora a depressão possa causar um sofrimento inimaginável, é
também verdade que a tristeza ocasional – a dor causada por problemas no
casamento, na família, no trabalho, pela situação financeira ou mesmo a
perda de alguém amado – faz parte da vida. Mas o marketing das grandes
farmacêuticas sugerem que você deveria ir correndo ao médico, no
instante que sentir-se mal; e se pendurar em “pílulas da felicidade” por
uma década ou mais. Claro que o grande sucesso da indústria ao produzir
medo em torno de sintomas benignos está convencendo pais e professores
de que crianças saudáveis e muito ativas estão sofrendo de ADHD
(transtorno do déficit de atenção com hiperatividade).
3. Medo de novas doenças
Quem
se lembra da Síndrome do Atraso das Fases do Sono, ou da Síndrome das
24 Horas em dormir, diagnosticadas para pessoas que provavelmente não
dormiam suficientemente? Doenças obscuras sobre as quais a indústria
farmacêutica “aumenta o alerta” não são inventadas – mas elas são tão
raras que não seriam jamais tratadas em publicidade, a menos que a
indústria estivesse tentando criar “demanda” para medicamentos caros –
inclusive porque não há exame de sangue ou de laboratório confirmando um
diagnóstico. Há pouco, a AbbVie, uma empresa farmacêutica
norte-americana, lançou duas campanhas, promovendo drogas de alto custo,
para convencer pessoas com dor nas costas que eles tinham espondilite
anquilosante; as pessoas com diarreia de que tinham insuficiência
pancreática exócrina., replete de sites ajudando-as a discernir que têm a
doença por seus sintomas. Será que as pessoas com sintomas ou doenças
realmente precisam que a indústria farmacêutica lhes diga quando ir ao
médico e o que elas têm?
4. Medo de que seus filhos não sejam normais
O
ADHD (“transtorno do déficit de atenção com hiperatividade”) não é a
única receita da indústria farmacêutica para medicalizar e monetizar a
infância. As birras são agora chamadas “Transtornos de Humor”. Graças à
“psicofarmacologia pediátrica”, as crianças estão cada vez mais
diagnosticadas com transtorno desafiador opositivo (DDO), manias mistas,
fobias sociais, distúrbios bipolares, transtornos de conduta, depressão
e transtornos do “espectro”. Por que a indústria gosta de crianças?
Crianças são pacientes submissos que farão o que seus pais, professores e
médicos mandarem, diz o ex-promotor de vendas da indústria farmacêutica
Gwen Olsen, autor de
Confessions of an Rx Drug Pusher
[“Confissões de um Vendedor de Drogas”]. Eles são os “tipos de paciente
ideal porque representam prescrição contínua, obediente e longeva. “Em
outras palavras, eles vão ser pacientes ao longo da vida e renovar o
estoque de clientes para a indústria. Não é exagero. Além disso, além de
consumirem drogas pesadas e desnecessárias, muita crianças apresentarão
reações que exigirão mais drogas, para tratar dos efeitos colaterais.
5. Medo de que sua droga deixe de produzir efeitos
Desde
que as grandes indústrias farmacêuticas descobriram que era fácil
acrescentar mais drogas a uma droga original — seja para crianças ou
pessoas com doenças mentais –, começou a era das drogas “agregadas” e
das condições “resistentes a tratamento”. Seu remédio pode não
funcionar, dizem novas campanhas do Alility ou Seroquel, porque você
precisa de uma segunda droga para ativar a primeira e torná-la mais
efetiva. A redefinição da depressão, para vender medicamentos, foi
particularmente furtiva. Médicos financiados pela indústria
reclassificaram a doença como uma condição para a vida toda, que requer
uso permanente de drogas. E há mais! Quase sem evidência médica alguma, a
depressão foi considerada “progressiva” — o que, é claro, ampliou seu
potencial de produzir medo. “À medida em que o número de grandes
episódios depressivos aumento, o risco de episódios subsequentes é
previsível”, alertava um artigo denominado “Neurobiology of Depression:
Major Depressive Disorder as a Progressive Illness” [“Neurobiologia da
Depressão: o Grande Distúrbio Depressivo como Doença Progressiva”],
publicado no site médico Medscape, e ladeado por anúncios do
antidepressivo Pristiq.
6. Medo de doenças silenciosas
E
se você não apresentar sintomas e estiver se sentindo bem? Isso não
significa que você não sofre de condições silenciosas, que podem estar
ameaçando sua saída sem que você saiba. Nenhuma pílula, na história, foi
tão bem sucedida como a estatina Lipitor, com sua campanha de TV “Know
Your Numbers” [“Conheça seus Números”] e o medo crescente de ataques
cardíacos relacionados ao colesterol. Milhões de pessoas usam estatinas
para proteger contra o medo de doenças cardíacas silenciosas, embora
recentemente, em alguns estudos, o colesterol tenha sido
excluído,
como risco central de doença cardíaca (ainda bem que a patente do
Lipitor expirou…). Também as campanhas da indústria farmacêutica que
amedrontam as mulheres sobre perda silenciosa de ossos venderam drogas
anti-oesteosporose como Fosamax, Boniva e Prolia, ao convencerem
mulheres que algum dia, sem nenhum aviso, seus ossos em processo de
enfraquecimento irão se partir. A previsão era verdadeira, com um
pequeno detalhe: algumas das mulheres cujos
ossos estalaram estavam usando drogas anti-osteosporose, cujos efeitos colaterais passaram a incluir fraturas.