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Internacional
Entrevista - Domenico Losurdo
A luta de classes explica o mundo
por Claudio Bernabucci
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publicado
12/06/2015 04h24
O historiador italiano Domenico Losurdo analisa a atualidade do conceito
 marxista em um momento em que a renda está sendo redistribuída a favor 
das classes privilegiadas
Nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos cresce o abismo entre ricos e pobres
Historiador da 
filosofia e professor emérito da Universidade de Urbino, na Itália, 
Domenico Losurdo está em São Paulo em junho para um seminário intitulado
 Cidades Rebeldes e para o lançamento, pela Editora Boitempo, de seu Luta de Classes.
 Na entrevista a seguir, o acadêmico, um dos estudiosos italianos mais 
traduzidos no mundo, fala do novo livro, da ascensão dos emergentes e do
 marxismo, e contesta o historiador britânico Niall Ferguson, expoente 
liberal.
CartaCapital: Vivemos 
em uma época em que o neoliberalismo é hegemônico e age sem fronteiras. A
 política, ao contrário, continua presa às estreitas visões nacionais. A
 escassez de concepções globais da história que aflige o pensamento 
contemporâneo depende desse limite?
Domenico Losurdo: Temos de 
considerar que, no fim do século passado, com a derrota das experiências
 socialistas na União Soviética e na Europa Oriental, assistimos a uma 
colossal mudança histórica. Ao mesmo tempo, a afirmação dos países 
emergentes e em particular da China como potência mundial representa um 
choque que é normal não ser imediatamente sistematizado no pensamento. 
Meu trabalho consiste na tentativa de superar esses limites.
CC: Como o senhor definiria, de um ponto de vista histórico-político, a atual situação internacional?
DL: Nos 
principais países de capitalismo avançado ocorre um enorme processo de 
redistribuição de renda a favor das classes privilegiadas. Ao mesmo 
tempo, de um ponto de vista global, podemos observar uma redistribuição a
 favor das nações emergentes, aquelas que completam a revolução 
anticolonialista. Nesse duplo processo, quem coerentemente apoia um 
projeto de emancipação da humanidade deveria agir para contrastar, em 
nível nacional, a concentração de riqueza em mãos privilegiadas e, em 
nível global, favorecer a redistribuição a favor dos países menos 
favorecidos.
CC: O senhor lê tais processos como umas das várias configurações da luta de classes. É correto?
DL: Exatamente. Para 
entender minha leitura, temos de lembrar que Marx fala de lutas de 
classe, sempre no plural. A forma de luta de classes na qual se prestou 
mais atenção é aquela entre burguesia e proletariado, mas é preciso 
evidenciar que, sobretudo Engels, mas também Marx, indicou na opressão 
da mulher a primeira forma de luta de classes. Uma terceira forma é a 
continuidade da batalha anticolonialista. Na segunda metade do século 
passado, ela tomou a forma de disputa pela libertação nacional e agora 
persiste como um embate econômico entre países que querem realizar 
plenamente sua própria autonomia.
- O professor emérito de Urbino vem a São Paulo para o lançamento de seu mais recente livro sobre o tema
 
CC: A luta de classes, 
sobretudo após a derrota do socialismo real, foi recusada como possível 
interpretação da história contemporânea. Qual é sua resposta a esse tipo
 de argumentação?
DL: Nesse aspecto, eu 
polemizo abertamente com Niall Ferguson, considerado hoje o historiador 
de referência do Ocidente liberal. Ele afirma que no século XX a luta 
racial teve importância central, enquanto a luta de classes não teve 
relevância alguma. Vejamos os acontecimentos principais do século 
passado na Europa e na Ásia. Como demonstram os seus chamados discursos 
secretos, Heinrich Himmler, um dos principais chefes do nazismo, 
manifestou com total clareza a vontade do Terceiro Reich de realizar um 
novo regime escravista. A derrota da União Soviética era a premissa para
 recrutar escravos, no sentido literal do termo, que, afirmou Himmler, 
poderiam “encontrar ali e dos quais precisamos para trabalhar e servir a
 nossa raça”. É correto então afirmar que a luta contra a tentativa de 
escravizar as chamadas raças inferiores foi uma luta de classes. Um 
processo análogo aconteceu na Ásia, com a tentativa do império japonês 
de submeter e escravizar os chineses, imitando assim os alemães no 
escravismo, maneira mais brutal de colonialismo. Mao Tsé-tung, em torno 
de 1938, com muita lucidez, afirmou que naquelas condições a luta de 
classes coincidia com a luta nacional. Tal coincidência se verificou 
obviamente também na Europa contra Hitler. Muitos historiadores, não só 
eu, afirmam hoje que a resistência da União Soviética contra a Alemanha 
nazista na Europa e a resistência chinesa na Ásia contra o imperialismo 
japonês foram as maiores guerras coloniais da história. Como tais, elas 
foram os maiores exemplos de luta de classes no século XX, uma batalha 
que sempre assume características novas e peculiares. A história do 
século passado é a confirmação da leitura marxista da história como luta
 de classes.
CC: A luta de classes resulta útil para interpretar e transformar a realidade contemporânea?
DL: Na época atual, não 
existem mais as colônias no sentido clássico, pois é evidente que a luta
 anticolonial chegou ao fim em nível planetário. Esse avanço é, sem 
dúvida, o resultado de um processo iniciado com a Revolução de Outubro, 
quando Lenin conclamou “os escravos das colônias a quebrarem o jugo da 
dominação colonial”. O mundo era propriedade de poucas grandes potências
 colonialistas, da Ásia à América Latina. Hoje o quadro é outro, mas ela
 continua como luta anticolonialista: não é mais pela independência 
nacional, mas assume a forma de disputa econômica. Uma citação de Mao 
Tsé-tung torna-se útil outra vez. Na véspera da proclamação da República
 Popular da China, em 1949, ele avisou: “Se, depois da conquista do 
poder, não tivermos em conta que os Estados Unidos querem que a China 
continue dependendo do trigo americano, a China continuará sendo 
substancialmente uma colônia no plano econômico. Nesse caso, a 
independência política será meramente formal”. Mao entendeu claramente 
que o processo de libertação do colonialismo passou da fase 
político-militar para a político-econômica. Dessa maneira, podemos 
entender o que acontece nos dias de hoje com a China: uma das formas da 
luta de classes vigente é a tentativa de quebrar o monopólio ocidental 
da alta tecnologia. Isso vale também para a América Latina, que se 
liberou definitivamente da Doutrina Monroe, mas continua a batalha pela 
independência econômica e pelo desenvolvimento autônomo.
CC: 
Ilustres prêmios Nobel de Economia evidenciaram que também nos países 
emergentes o processo de bifurcação entre ricos e pobres aumenta. Como o
 senhor avalia essa contradição?
DL: Em 
nível mundial, o capitalismo continua dominante. Portanto, também nos 
países emergentes vê-se uma acumulação de riqueza a favor dos setores 
privilegiados, e quase sempre a distância econômica e social entre 
riqueza e pobreza se acentua. No Brasil como na China, as três formas de
 luta de classes estão contemporaneamente ativas, não existe só a forma 
clássica entre burgueses e trabalhadores. É sempre preciso fazer a 
análise concreta da situação concreta. Cada momento histórico é 
caracterizado pelo entrelaçamento entre as três diferentes lutas de 
classes e, a depender dos contextos específicos, determina-se a 
prevalência de uma forma sobre as outras.
CC: Como definir a experiência chinesa, que adotou um sistema de partido único e a economia capitalista?
DL: Se por
 capitalismo entendemos o sistema em que o poder é exercido pela 
burguesia, certamente a China não é um país capitalista, pois o poder 
está estritamente nas mãos do Partido Comunista. A expropriação política
 da burguesia foi realizada completamente, enquanto a econômica não, 
pelo fato de suas capacidades empreendedoras terem sido consideradas 
úteis, nessa fase histórica, para perseguir os objetivos de interesse 
geral. Portanto, sugiro aceitar a autodefinição que os dirigentes locais
 adotaram: a China se encontra no estágio primário do socialismo, que 
acabará em 2049, centenário da República Popular. Admito ter 
compartilhado as ilusões do passado, quando as certezas alimentadas pela
 filosofia da história garantiam a inevitável vitória do socialismo. 
Agora não acredito mais nisso, mas afirmar que na China o capitalismo 
venceu para sempre é uma colossal besteira. Palavra de historiador.