http://www.cartacapital.com.br/
http://www.cartacapital.com.br/revista/867/era-uma-vez-o-passaralho-6341.html?utm_content=buffer07cab&utm_medium=social&utm_source=plus.google.com&utm_campaign=buffer
Cultura
Cariocas
Era uma vez o passaralho...
O dia em que dois copy-desks do JB eternizaram um sinistro neologismo
por Carlos Leonam
—
publicado
21/09/2015 06h23
Wolfgang Lettl - Die Verwandlung 1977
Naquele tempo não havia internet e, portanto, o Facebook, o Twitter, o Instagram e similares. Quando o gabinete de uma redação caía, fosse no Rio, fosse em São Paulo,
ou algures, o tambor batia, a fumaça subia aos céus e todo mundo, do
Oiapoque ao Chuí, sabia que um passaralho entrara em ação, através de
telefonemas à sorrelfa (celulares ainda eram coisa de quadrinhos do Dick
Tracy). Em geral, sempre um passaralho localizado. Ao contrário do
deste ano da graça de 2015 em que o bicho atacou de forma furiosa,
principalmente a turma da infantaria.
Acho que já escrevi sobre o mais famoso passaralho da imprensa carioca, o do Jornal do Brasil,
no começo dos anos 1970. Atendendo aos pedidos da nova geração,
atingida de maneira brutal nos últimos dois meses, recordo a história
que entrou para a História do nosso jornalismo. Sabemos hoje que a
Guerra do Yom Kippur fez também um grande estrago na Avenida Brasil 500.
A defenestração de Alberto Dines do comando do Jornal do Brasil,
no início de dezembro de 1973, resultou no maior passaralho das
redações nacionais. Em médio prazo, todas as chefias ligadas a Dines e
Carlos Lemos foram caindo, de uma maneira ou de outra – a maioria para
nunca mais voltar e quase todas indo parar, então, na folha de pagamento
de um Inevitável Patrão, na Rua Irineu Marinho, 35; na Praia do
Russel, 434; ou na Rua Lopes Quintas. Agora, porém, ninguém escapou do
bicho – passaralhados aos magotes, globais ou não.
Muito embora o velho JB ainda
permaneça vivo no coração da velha guarda, a verdade é que o grande
passaralho de 1973 foi traumático e, portanto, inesquecível. Naquele
clima de velório, fofocas e insegurança o copidesque do JB produziu um dos melhores textos da imprensa brasileira. Uma obra-prima, pois reúne bom humor, ironia, cultura, informação...
Trata-se do verbete “Passaralho”, que teria sido escrito por Joaquim Campelo e Nilson Vianna, sumidades do copy-desk do JB, com penteadas dos outros redatores:
Passaralho s.m. (brasil). Designação popular e geral da ave caralhiforme, falóide, família dos enrabídeos (Fornicator caciquorum
MFNB & WF). Bico penirrostro, de avultadas proporções, que lhe
confere características específicas, próprio para o exercício de sua
atividade principal e maior: exemplar. À sua ação antecedem momentos
prenhes de expectativa, pois não se sabe onde se manifestará com a
voracidade que, embora intermitente, lhe é peculiar: implacável.
Apesar de eminentemente cacicófago, donde
o nome científico, na história da espécie essa exemplação não vem
ocorrendo apenas em nível de cacicado. Zoólogos e passaralhófitos
amadores têm recomendado cautela e desconfiança em todos os níveis; a
ação passaralhal é de amplo espectro. Há exemplares extremamente
onívoros e de atuação onímoda. Trata-se este do mais antigo e puro
espécime dos Fornicatores, sendo outros, como p. ex., o
picaralho, o birroalho, o catzralho etc., espécimes de famílias espúrias
submetidas a cruzamentos desvirtuados do exemplar. Distribuição
geográfica praticamente mundial.
No Brasil é também conhecido por muitos
sinônimos, vários deles chulos. Até hoje discutem os filólogos e
etimologistas a origem do vocabulário. Uma corrente defende derivar de pássaro + caralho, por aglutinação; outra diz vir de pássaro + alho.
Os primeiros baseiam-se em discutida forma de insólita ave; os outros,
no ardume sentido pelos que experimentaram e/ou receberam a ação dele em
sua plenitude.
A verdade é que quantos o tenham sentido
cegam, perdem o siso e ficam incapazes de descrever o fenômeno. As
reproduções que deles existem são baseadas em retratos-falados e, por
isso, destituídas de validade científica.
Como dizia Christian Morgenstern, “a infelicidade dos franceses é saber escrever bem demais”. No caso do JB,
sua infelicidade foi ter perdido um copidesque que escrevia bem demais,
a ponto de produzir esse texto definitivo sobre o bicho que adora
fornicar jornalistas com ampla diversidade.