Linchamentos e a peste da violência 
No primeiro dia o médico viu um rato morto na frente da sua casa e achou
 isso estranho (insólito). No segundo dia, mais três. Nos dias 
seguintes, muitos. Em seguida surgem incontáveis doentes com os mesmos 
sintomas: inchaços, erupções cutâneas e delírios; em menos de 48 horas 
todos começaram a morrer. Centenas de milhares de pessoas efetivamente 
morreram. As autoridades negam dizer a verdade, enquanto podem. Chamam 
os que denunciam a calamidade de alarmistas e inconsequentes. Ninguém 
quer mencionar o nome do fenômeno. Não se pode deixar a opinião pública 
em pânico. Ela é sagrada. Mas negar os fatos não muda a realidade. Nem 
mudar o seu nome (chamando de desafio o que, na verdade, é um problema).
 Quando a desgraça se espalhou por toda cidade, então foi necessário 
revelar o seu nome: a peste. Meses depois foi feito o anúncio 
oficial do fim da tragédia. O médico, no entanto, não quis participar da
 comemoração. Por quê? Porque ele sabia que a euforia da multidão 
ignorante era passageira, posto que “o bacilo da peste não morre nem 
desaparece nunca” (isso foi escrito em 1947, por Albert Camus, no seu 
livro A peste, citado por Riemen, no livro O eterno retorno do fascismo, 2012, p. 11-12).
 
 
A tragédia da peste da violência, que está incubada na nossa sociedade 
(a tortura está na alma do brasileiro, dizia Darcy Ribeiro), fez mais 
uma vítima: Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dona de casa, em Guarujá 
(SP). Foi linchada por moradores da cidade e vizinhos, depois de um 
boato de que sequestrava crianças. O linchamento é uma das manifestações
 mais bárbaras de um povo. Era comum na Idade Média. A infundada 
suspeita e acusação contra a vítima foi mais um uso irresponsável da 
mídia (que hoje é escrita, falada, televisada ou compartilhada). A pior 
utilização da mídia é a que estimula a violência, o justiçamento com as 
próprias mãos. Mas isso, no Brasil, está sendo disseminado há muitos 
anos. Da Idade Média chegamos na Idade Mídia, com as mesmas atrocidades,
 crueldades e barbáries. 
 
 
Quem são os responsáveis pela peste da violência? Os perturbados sociais
 executores do linchamento, os que induziram a esse ato, os que 
estimulam a violência no país, incluindo a mídia, a falência das 
instituições (justiça, política e Estado), o desaparecimento dos valores
 positivos, os governantes que deixam o povo indignado praticando suas 
indignidades, a sociedade ressentida (rancorosa, odiosa) intolerante, 
que já não suporta tanta injustiça, gerada pela histórica desigualdade 
individual e social. Quando vamos compreender que o comunismo fez 
política de esquerda sem saber fazer políticas econômicas (aliás, foi um
 desastre)? Quando vamos acordar e perceber que o capitalismo 
extremamente desigual sabe gerar capital (e o bem-estar de uma pequena 
parcela da população), mas não sabe fazer políticas sociais de inclusão 
da classe trabalhadora (cujos salários vêm sendo impiedosamente 
arrochados no mundo todo)? 
 
 
Com tanta informação hoje disponível, como é que não vemos que o 
primeiro (o comunismo) quis repartir bem-estar aos trabalhadores, mas 
não soube produzir? Que o segundo sabe produzir, mas não quer repartir? 
Quem ainda não percebeu que o primeiro se tornou insustentável e morreu 
em praticamente o mundo todo? E que o segundo se transformou numa 
fábrica de conflitos infinitos, linchamentos e violências, porque a 
desigualdade é essencialmente um problema de estabilidade e de 
segurança? (J. Villalobos, El País 8/5/14, p. 37). Com o 
obscurantismo nunca vamos chegar à emancipação. Temos que começar a 
pensar o Brasil seriamente e urgentemente (uma vida preservada da 
barbárie já justifica o esforço).