Desconstruindo o discurso de Fernando Holiday
março 27, 2015 11:33
Eliane Oliveira e Silvio de Almeida, estudiosos da questão
negra no Brasil, confrontam as declarações dadas pelo estudante em
vídeos que repercutiram nas redes
Por Anna Beatriz Anjos
Os vídeos de Fernando Holiday, integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), espalharam-se pelas redes na última semana. Nas gravações, ele faz críticas intensas a diversas pautas do movimento negro no Brasil, sobretudo, às cotas raciais.
As falas do rapaz, muitas vezes agressivas, geraram polêmica. Enquanto negras e negros tentavam desconstrui-las, inúmeras pessoas brancas as utilizaram para justificar o combate a medidas que tenham como objetivo a igualdade racial.
Ninguém conhece o racismo e as lutas dos negros brasileiros como eles próprios. São, consequentemente, os únicos que podem ser protagonistas na discussão dessas questões. Por isso, Fórum entrevistou dois negros estudiosos do tema, que avaliaram o discurso de Fernando em um de seus vídeos mais assistidos (veja abaixo).
Por Anna Beatriz Anjos
Os vídeos de Fernando Holiday, integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), espalharam-se pelas redes na última semana. Nas gravações, ele faz críticas intensas a diversas pautas do movimento negro no Brasil, sobretudo, às cotas raciais.
As falas do rapaz, muitas vezes agressivas, geraram polêmica. Enquanto negras e negros tentavam desconstrui-las, inúmeras pessoas brancas as utilizaram para justificar o combate a medidas que tenham como objetivo a igualdade racial.
Ninguém conhece o racismo e as lutas dos negros brasileiros como eles próprios. São, consequentemente, os únicos que podem ser protagonistas na discussão dessas questões. Por isso, Fórum entrevistou dois negros estudiosos do tema, que avaliaram o discurso de Fernando em um de seus vídeos mais assistidos (veja abaixo).
“O rapaz reproduz um discurso racista porque, no fim das
contas, ele é uma vítima do racismo. Sua própria visibilidade é o
resultado de uma sociedade racista e que só dá espaço para jovens negros
que estejam dispostos a ratificar o pensamento dominante e se comportar
de acordo com certas expectativas”, explica o advogado Silvio de
Almeida, professor das universidades Presbiteriana Mackenzie e São Judas
Tadeu e presidente do Instituto Luiz Gama.
Para Eliane Oliveira, mestre em Ciências Sociais e
pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros
(NEIAB) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), há contraponto para
as opiniões de Holiday. “Em tempos passados, provavelmente seria de fato
um problema, mas os espaços acadêmicos estão cada vez mais pretos, ou
seja, pessoas com esse tipo de discurso irão encontrar pela frente
alguns opositores. Ele ganha visibilidade, mas nossa luta também, é no
embate que mostramos nossas armas, escancaramos para a sociedade a
ferida aberta que é o racismo brasileiro”.
Cotas
“O governo se demonstra
preconceituoso no momento que institui as cotas raciais, porque está
admitindo que eu, por ter um pouco mais de melanina, preciso roubar
vagas dos outros. Isso não é justo. Não preciso roubar vaga de
ninguém!”, aponta Fernando Holiday no vídeo em questão. Este é um dos
principais argumentos que emprega para defender que cotas seriam
desnecessárias.
“É um argumento que parte de uma premissa mentirosa, pois
só se ‘rouba’ de alguém que é proprietário. Ninguém é dono de uma vaga
em universidade pública porque é branco ou ‘bem nascido’”, diz Silvio
de Almeida. “É uma falácia que desconsidera o fato de que, quando nos
referimos às vagas em universidades, estamos falando de algo que é
público, mas que historicamente tem sido apropriado por critérios
raciais e de renda. Isso é antirrepublicano, e o mais engraçado é que no
fundo também é um discurso antiliberal, porque defende a perpetuação de
privilégios.”
“As cotas são políticas públicas que visam a justamente
romper os privilégios raciais que nitidamente pautam o acesso ao ensino
superior e a todas as instâncias de poder. Portanto, o que foi dito nem
chega a ser um argumento; não passa de uma bobagem”, adiciona.
Na mesma linha argumenta Eliane Oliveira. “Não é tirar
vaga de ninguém, é dar aos sujeitos que ficaram por anos fora desse
espaço a possibilidade de acesso. Democratizar o ensino superior é
buscar a equidade entre os sujeitos”, explica.
Como muitos críticos da política de cotas, Holiday
questiona seu viés racial, defendendo que ela deveria adotar, na
verdade, um critério que levasse em conta as classes sociais. “Por que
negro pobre precisa de mais benefício do que branco pobre? Ah, entendi. O
governo está falando que o preto é mais burro do que o branco”, declara
no vídeo. Por que essa afirmação é equivocada?
“Não precisa ser nenhum pesquisador para perceber essa necessidade [de que cotas tenham viés racial],
basta fazer o teste e olhar para os lados. Um país onde pouco mais da
metade da população se autodeclara negra, mas vemos os negros, em maior
número, em funções socialmente degradadas exige essa reparação
histórico-social”, pontua Oliveira. “Nossa sociedade é profundamente
racista, o mito da democracia racial só existe nos textos acadêmicos.
Quando eu entrar numa sala de aulas e metade dos estudantes for negra,
aí vou considerar que as cotas [raciais] não são necessárias.”
Meritocracia
Ainda em relação às cotas raciais, Holiday apela à questão da meritocracia para deslegitimá-las. “O negro não precisa roubar vaga de ninguém, a gente consegue entrar por mérito”, considera.
“Meritocracia é um discurso que visa justificar
privilégios raciais e de classe. Não há ‘mérito’ possível num contexto
de profunda desigualdade. A meritocracia nada mais é do que um discurso
racista para colocar negros e negras como responsáveis pelas injustiças
que sofrem”, assinala Silvio de Almeida.
“O que é espantoso nesse discurso é que ele retira
qualquer perspectiva histórica dos problemas. Há algumas décadas um
jovem negro, por mais brilhante que fosse, jamais poderia estudar numa
universidade simplesmente pelo fato de ser negro, independente do mérito
que pudesse ter. Foi a luta do movimento negro que abriu espaço para
que os negros pudessem estudar. Se há ‘mérito’ a ser avaliado é porque
antes houve luta de milhares de negros e negras que ficaram pelo
caminho”, relembra o advogado.
Na avaliação de Oliveira, “uma concepção que fomenta a
competição entre desiguais irá beneficiar aquele sujeito cujo capital
cultural e financeiro está em superioridade em relação a muitos outros
que não tiveram as mesmas oportunidades na vida. Não é medindo o esforço
individual, numa sociedade desigual, que devemos avaliar o acesso ao
ensino superior”.
Zumbi dos Pamares x Adolf Hitler
Uma das declarações que mais chocou no discurso de
Fernando Holiday é a analogia entre Zumbi dos Palmares, um dos maiores
símbolos da resistência negra no Brasil, e Adolf Hitler, o ditador
alemão que exterminou cerca de 6 milhões de judeus durante o Holocausto.
“Um dia da Consciência Negra para homenagear Zumbi é a mesma coisa que
criar um dia da ‘Consciência Branca’ para homenagear Hitler”, diz.
“Zumbi e Hitler no mesmo patamar é algo que não consigo
conceber na fala de qualquer pessoa, independente da cor da pele.
Contextos históricos e políticos distintos. Um negro não considerar
Zumbi um mártir, tudo bem, mas daí a colocá-lo no mesmo pé de igualdade
com as atrocidades cometidas por Hitler, não sei se considero falta de
conhecimento, ingenuidade ou má fé”, aponta Oliveira. “Existem grandes
historiadores que relatam a atuação de Zumbi, um pouco de interesse leva
a boas leituras.”
Já para Almeida, a afirmação do estudante tem intenção
evidente. “Fica claro que o único objetivo da comparação é ofender
negros e negras atacando o símbolo máximo da resistência contra o
sistema escravista, que é Zumbi dos Palmares”, destaca. “Não passa,
portanto, de uma formulação grosseira, mal educada e pouco inteligente,
diga-se.”
Machismo
No vídeo, Holiday vai além do debate sobre racismo, cotas e
o papel do negro na sociedade, do qual é protagonista. Quis tratar
também sobre mulheres, desrespeitando os limites de seu lugar de fala. O
resultado foi uma série de colocações misóginas e ofensivas. “Se é
assim, então vamos fazer cotas para ‘gostosa’, porque existe na
sociedade o preconceito de que toda ‘gostosa’ é burra. Então vamos fazer
cotas para ‘gostosa’, porque tem muito lugar aí que está faltando. A
FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP] que o diga: se fosse assim, não seria aquele zoológico, aquele pulgueiro.”
Eliane Oliveira, também feminista, vai no ponto ao
analisar o discurso machista do rapaz. “Se a pessoa não problematiza o
racismo, sendo o negro, não irá dimensionar a problemática do machismo.
Problematizar racismo e machismo é mais que ponderar privilégios, é
colocar em prática a alteridade. Colocar-se no lugar do outro só é
possível quando você conhece a si mesmo. Neste caso, diante do discurso
apresentado, acredito não ser possível tal exercício”, assinala.
Fórum entrou em contato com Fernando Holiday, mas não obteve resposta.