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Bétulas crescendo em livros apodrecidos, em Detroit Disassembled [Detroit Desmontada] (2010). Andrew Moore
Ao
retratar a decadência urbana e a crise ecológica, a imagética da ruína
mostra as pessoas e os lugares que o capitalismo deixou para trás
Por
Dora Apel,
Jacobin | Tradução
Maria Cristina Itokazu
As imagens do abandono e da decadência urbana produzidos pela
desindustrialização e pelo desinvestimento estão em toda parte. E
nenhuma cidade é tão retratada em livros, exposições, web sites, filmes e
mídias populares quanto Detroit. Ainda que as paisagens desindustriais
estejam espalhadas por todo o mundo, notadamente nos centros que
costumavam liderar a produção fabril, Detroit tornou-se o exemplo mais
evidente de decadência urbana, a metáfora global para o declínio
capitalista e o epicentro de um gênero fotográfico: a imagética da ruína
desindustrial.
Ao ressaltar a pobreza, a deterioração urbana e as crises econômica e
ecológica, a imagética da ruína acentua o fato de que a sociedade
capitalista é incapaz de proteger os seus cidadãos e as suas cidades.
Enquanto os imperativos econômicos nacionais colidem com as demandas do
capital globalizado, a decrepitude de cidades como Detroit, Buffalo e
Cleveland, nos EUA, alimenta um pessimismo cultural ubíquo que prevê a
desintegração violenta e o colapso — seja através de um vírus pandêmico,
da destruição ecológica, da guerra ou da desindustrialização.
Daí o apelo paradoxal da imagética da ruína: conforme a fé num futuro
melhor se desgasta, a beleza da decadência nos ajuda a lidar com o
terror de um declínio apocalíptico. No imaginário cultural, a ideia de
Detroit veio servir de repositório para o pesadelo do declínio urbano
num mundo onde a maioria das pessoas vive em cidades.
A imagética da ruína em Detroit também tem outra função — ela
circunscreve geograficamente e isola a ansiedade do declínio, fazendo
dessa cidade predominantemente afro-americana uma espécie de zona
alienígena. As onipresentes fotos de arranha-céus, igrejas, escritórios e
casas dilapidados, de fábricas abandonadas como a da Packard — a maior
ruína do país — são frequentemente comparadas com zonas de guerra,
destroços de furacão e com o resultado de uma explosão nuclear.
Os efeitos do arruinamento são certamente eloquentes: em 2014, a taxa
de desemprego em Detroit foi a mais alta entre as 50 maiores cidades e
mais de três vezes maior do que a média nacional, enquanto a taxa de
educação superior ficou abaixo da média. Os serviços públicos na cidade
são lentos e inadequados mas os impostos territoriais são altos, o que
para os residentes mais pobres representa uma ameaça permanente de
execução de hipoteca e para a cidade significa mais casas dilapidadas e
abandonadas. Quase 40% da população da cidade vive abaixo da linha da
pobreza. Mas as fotos de bairros em desintegração, por natureza,
explicam muito pouco a respeito das complexas causas desse declínio ou
das ramificações do arruinamento para o futuro da cidade ou mesmo do
país. Ao contrário, a cidade, tal como produzida através das imagens,
assume diferentes significados em diferentes contextos. Na imaginação
popular, Detroit é vista como exemplo de decadência urbana e como uma
cidade singularmente mal administrada.
Como ex-líder da produção manufatureira no mundo e, atualmente,
como cidade debilitada predominantemente pobre e negra, Detroit é
construída ao mesmo tempo como resultado de tendências econômicas
irresistíveis e como uma cidade altamente racializada que causou seu
próprio declínio por causa de líderes incompetentes ou corruptos.
Detroit é considerada uma demonstração tanto do declínio inescapável
quanto de sua própria história de irresponsabilidade. Desse modo, o
resto do país é levado a acreditar que a espiral descendente de Detroit é
merecida, ou inevitável, ou uma combinação das duas coisas.
Essas concepções a respeito da cidade permitem que os verdadeiros
agentes da degeneração — as corporações e o Estado capitalista — fujam
da responsabilidade e justifiquem o controle da cidade pelo Estado, a
falência forçada da cidade, o ataque às aposentadorias dos
trabalhadores, a privatização dos serviços urbanos e outras medidas de
austeridade.
Elas servem também como alerta para cidades e municípios em
dificuldades do Maine à Califórnia. Atribuindo o ônus da dívida às
pessoas pobres, negras e trabalhadoras sem responsabilizar ninguém, nem a
própria cidade, por essas iniquidades, Detroit e suas representações
assumem um papel fundamental na definição do futuro da vida nas cidades
americanas.
Um tropo padrão na imagética da ruína é a sugestão da eterna luta
entre natureza e cultura. As fotos de Andrew Moore, em Detroit
Disassembled [Detroit Desmontada], ou Yves Marchand e Romain Mefre, em
The Ruins of Detroit [As Ruínas de Detroit], são exemplos conhecidos
focados na regeneração pastoral do ambiente construído.
Birches Growing in Decayed Books, Detroit Public Schools Depository
[Bétulas Crescendo em Livros Apodrecidos, Depósito das Escolas Públicas
de Detroit], de Moore, mostra mudas de árvores que crescem num carpete
de livros podres e apontam para o céu através de uma abertura no teto do
antigo depósito de livros. A perspectiva diagonal ascendente e a luz
morna criam um senso de renovação na adversidade, evocando o ciclo
aparentemente natural que vai das árvores aos livros e de volta às
árvores. Com suas cores vibrantes, a foto oferece um tributo
comemorativo ao ressurgimento da natureza.
As fotos de Marchand e Meffre foram tiradas em situações nebulosas e
obscuras. Frias e sem vida, elas sugerem um lamento melancólico por um
estado de rigidez irreversível e mortal. A última imagem do livro mostra
os próprios fotógrafos: duas silhuetas diminutas percorrendo uma ruela
entre os prédios abandonados do complexo industrial da Packard. A ruela
parece terra devoluta e as instalações desertas são uma metonímia para a
cidade que, por implicação, também estaria vazia e abandonada. A imagem
oferece uma despedida fúnebre, ainda que celebre a aparência pitoresca
da cidade.
Parte Sul, fábrica da Packard Motors (2009) em As Ruínas de Detroit (2010).
Yves Marchand e Romain Meffre
São os dois lados de uma mesma estratégia estética. A foto de
Marchand e Meffre lamenta o declínio da cidade como deserto
desindustrial mesmo quando encontra beleza na decadência, enquanto a
foto de Moore embarca em devaneios românticos sobre a luta entre
natureza e cultura e vê a mesma beleza na decadência.
A metáfora da natureza retomando a idade, seja em termos negativos ou
redentores, neutraliza os processos reais que têm um impacto tão
destrutivo sobre a cidade: um racismo virulento, o antissindicalismo e a
reestruturação industrial. Essa neutralização é agravada pelo fato de
que a maior parte das imagens raramente mostra a multidão urbana —
muitos observadores se surpreendem ao saber que Detroit ainda tem quase
700.000 residentes.
Em dezembro de 2013, o New York Times publicou três fotos de Marchand
e Meffre para ilustrar um artigo de primeira página anunciando a
decisão de uma corte federal que autorizava Detroit a declarar falência
sem proteção para as aposentadorias municipais.
A foto superior mostrava a Estação Central de Michigan, uma estrutura
cívica grandiosa cujo abandono serve como símbolo do fracasso urbano.
Abaixo, imagens do antes luxuoso salão de baile do Lee Plaza hotel, com
seu teto finamente pintado e um piano caído de lado, e da sala de aula
de uma antiga escola católica.
A
primeira página do NYT de 4 de dezembro de 2013, com destaque para três
fotos de locais abandonados retratados por Yves Marchand e Romain
Meffre
Omitindo a presença ativa das pessoas na cidade e a resposta local de
luta contra a decisão judicial, o trio de fotos de primeira página
sugeria uma cidade já morta e mumificada. Isso era reforçado pela
legenda em negrito, “Visões de uma cidade perdida”, que por sua vez dava
suporte ideológico para o corte nas aposentadorias dos servidores
municipais: se a cidade já está perdida, não é preciso se preocupar com
milhares de pessoas que lutam para sobreviver ou proteger suas magras
aposentadorias (em média apenas $19.200 por ano).
Se as vítimas do declínio da cidade desaparecem, o discurso do
arruinamento se torna um discurso sobre a arquitetura, a paisagem e a
inevitável “retomada” da cidade pela natureza, o que pode significar
tanto um retorno a um estado pré-civilizado quanto a reemergência de um
novo idílio ecológico. Fotos que se concentram apenas na beleza da
decadência na arquitetura afastam o observador dos efeitos dessa
decadência sobre as pessoas e obscurece a crise da pobreza e desemprego
que está em curso.
Esse apagamento da população também reflete e reforça sua
invisibilidade para as corporações e o Estado capitalista, que ajudaram a
criar os padrões de pobreza segregada e racializada que há muito
prevalecem na cidade e ao mesmo tempo se isentaram de qualquer
responsabilidade.
A questão não é sugerir o que artistas e fotógrafos deveriam ou não
deveriam retratar; ao invés disso, é importante examinar o trabalho
cultural realizado pela imagética da ruína e o uso político a que ela se
presta. A narrativa romântica sobre a beleza da decadência presente na
imagem da ruína produz prazer por conter e controlar a ansiedade do
declínio através da segurança e da distância da representação.
Essa é a função cultural da imagética da ruína; o domínio mental
daquilo que nos apavora é sua natureza e propósito. Ainda que ela
evidencie os efeitos desastrosos do capitalismo, quanto mais
esteticamente refinada e agradável for a imagem mais efetivo é o
distanciamento.
Não é de surpreender que a proliferação de imagens da ruína tenha
ativado um debate sobre a “pornografia da ruína”, expressão que
questiona se tais fotos deveriam ser desconsideradas por serem
voyeurísticas e abusivas ou se elas dão visibilidade a algo que de outra
forma poderia ficar escondido da história. A crítica da pornografia da
ruína depende de uma dicotomia entre os “de dentro” e os “de fora”,
entre aqueles que se veem como leais à cidade, cuja vida e trabalho são
afetados pela cidade (e portanto adquiriram o direito de lucrar com
ela), e aqueles que estão apenas “de passagem”.
Para muitos dos moradores pobres de Detroit, as imagens de ruínas na
mídia nacional são uma fonte de desmoralização e constrangimento —
independentemente de quem fez a foto — e existem muitos fotógrafos
locais que registram a paisagem decadente. Eles temem a marginalização
irreversível da cidade e a indiferença de uma nação que vê a cidade a
partir de uma posição de fascinação estetizada, a uma distância
confortável.
Essa sensação de impotência evoca sentimentos de raiva e
ressentimento — não contra as condições da cidade diretamente, mas
contra as imagens que retratam essas condições. Elas parecem agravar
essas condições por divulgá-las, fazendo a cidade parecer estranha e
patética e, talvez o pior de tudo, estimulando a compaixão como resposta
despersonalizada ao “sofrimento longínquo”, como acontece com as fotos
de crianças famintas na África.
Mas a história está repleta de cenas de desastre e decadência que
atraem fotógrafos e repórteres de fora, e eles são responsáveis tanto
por um sem número de imagens indeléveis quanto pela história escrita.
Retratar a miséria sempre carrega um risco de abuso, mas as imagens
também são testemunhas da história. Como todas as testemunhas, são
subjetivas e imperfeitas. Ainda assim, elas oferecem perspectivas que de
outra forma não estariam disponíveis.
A “pornografia da ruína” é, portanto, uma ferramenta de análise
crítica altamente problemática, porque o apetite pelas imagens da ruína
só cresce conforme o abandono e a decadência se espalham, e porque os
moradores da cidade não têm “direito de propriedade” sobre as ruínas. As
ruínas de Detroit, como as de Baltimore ou St Louis, são ruínas dos
EUA.
Essa imagética intensifica visualmente a realidade da deterioração
econômica e cultural. Esses efeitos devastadores ficam tão cruamente
visíveis nos serenos retratos da decadência que eles induzem uma série
de emoções, desde o prazer até a inquietação. Assim como a arte e a
literatura românticas, que criticavam as pretensões imperiais do
império, a imagética da ruína contemporânea também funciona como uma
crítica implícita do status quo doméstico americano. A estética da
decadência serve como um aviso de declínio na medida em que as imagens
participam, conscientemente ou não, da construção da narrativa dominante
a respeito de Detroit.
Essas imagens podem lamentar, elogiar ou celebrar a decadência que
representam; podem criticar implicitamente as forças ou os efeitos do
declínio; podem acolher a beleza ou a melancolia desses efeitos; mas não
podem disfarçar o impasse do progresso que as ruínas representam.
Conforme o medo do declínio aumenta, o limiar do prazer estético
compensatório também cresce, exigindo mais imagens de deterioração e
desastre pós-apocalíptico para alcançar uma sensação de segurança. Desse
modo, a imagética da ruína se investe de um poder cultural ainda maior.
Não é de surpreender que a fascínio das ruínas urbanas de Detroit
tenha se intensificado no momento em que a cidade negociava sua
falência. E apesar da narrativa que busca marginalizar e isolar a cidade
como responsável por seu próprio declínio, Detroit se tornou um símbolo
das cidades fragilizadas em qualquer lugar.
Ainda assim, ao desafiar a lógica do neoliberalismo e do Estado
capitalista como um protetor efetivo dos seus cidadãos e uma fonte de
progresso e racionalidade, a imagética da ruína também nos desafia a
considerar como as nossas decadentes cidades podem ser recuperadas e
reimaginadas.
Ela nos convida a pensar sobre a reorganização econômica e o
planejamento democrático, partes importantes da construção de uma
sociedade igualitária baseada em necessidades e não no lucro — onde as
cidades obedecem os requisitos de sua população, fornecendo as bases
para a realização individual e ajudando a preservar o meio ambiente.