O Papa e o estrume do Diabo
Mauro Santayanna
O
Papa Francisco está sendo amplamente atacado na internet, por ter dito,
em cerimônia, em Roma, que “o dinheiro é o estrume do diabo” e que
quando se torna um ídolo “ele comanda as escolhas do homem”.
Acima e abaixo da cintura, houve de tudo.
De
adjetivos como comunista, “argentino hipócrita”, demagogo e outros aqui
impublicáveis, a sugestões de que ele se mude para uma favela, e – a
campeã de todas – que distribua para os pobres o dinheiro do Vaticano.
É
cedo, historicamente, para que se conheça bem este novo papa, mas, pelo
que se tem visto até agora, não se pode duvidar de que daria o dinheiro
do Vaticano aos pobres, tivesse poder para isso, não fosse a Igreja que
herdou dominada por nababos conservadores colocados lá pelos dois
pontífices anteriores, e ele estivesse certo de que essa decisão fosse
resolver, definitivamente, a questão da desigualdade e da pobreza em
nosso mundo. Inteligente, o Papa sabe que a raiz da miséria e da
injustiça não está na falta de dinheiro, mas na falta de vergonha, de
certa minoria que possui muito, muitíssimo, em um planeta em que
centenas de milhões de pessoas ainda vivem com menos de dois dólares por
dia.
E
que essa situação se deve, em grande parte, justamente à idolatria cada
vez maior pelo dinheiro, o estrume do Bezerro de Ouro que estende a
sombra de seus cornos sobre a planície nua, os precipícios e falésias do
destino humano.
Em
nossa época, deixamos de honrar pai e mãe, de praticar a solidariedade
com os mais pobres, com os doentes, com os discriminados e os excluídos,
para nos entregar ao hedonismo.
Os
pais transmitem aos filhos, como primeira lição e maior objetivo na
existência, a necessidade não de sentir, ou de compreender o mundo e a
trajetória mágica da vida – presente maior que recebemos de Deus quando
nascemos – mas, sim, a de ganhar e acumular dinheiro a qualquer preço.
Escolhe-se
a escola do filho, não pela abordagem filosófica, humanística, às vezes
nem mesmo técnica ou científica, do tipo de ensino, mas pelo objetivo
de entrar em uma universidade para fazer um curso que dê grana, com o
objetivo de fazer um concurso que dê grana, estabelecendo, no processo,
uma “rede” de amigos que têm, ou provavelmente terão grana.
Favorecendo,
realimentando, uma cultura voltada para o aprendizado e o
compartilhamento de símbolos de status fugazes e vazios, que vão do
último tipo de smartphone ao nome do modelo do carro do papai e da roupa
e do tênis que se está usando.
O que determina a profissão, o que se quer fazer na vida, é o dinheiro.
Escolhe-se a carreira pública, ou a política, majoritariamente, pelo poder e pelas benesses, mas, principalmente, pelo dinheiro.
Montam-se igrejas e seitas, também pelo poder, mas, sobretudo, pelo dinheiro.
Até
mesmo na periferia, assalta-se, mata-se, se morre ou se vive – como
rezam as letras dos funks de batalha ou de ostentação – pelo dinheiro.
Para
os mais radicais, não basta colocar-se ao lado do capital, apenas como
um praticante obtuso e entusiástico dessa insensata e permanente “vida
loca”.
É
necessário reverenciar aberta e sarcasticamente o egoísmo, antes da
solidariedade, a cobiça, antes da construção do espírito, o prazer,
antes da sabedoria.
É
preciso defender o dindin – surgido para facilitar a simples troca de
mercadorias – como símbolo e bandeira de uma ideologia clara, que se
baseia na apologia da competição individual desenfreada e grosseira, e
de um “vale tudo” desprovido de pudor e de caráter, como forma de se
alcançar riqueza e glória, disfarçado de eufemismos que possam ir além
do capitalismo, como é o caso, do que está mais na moda agora, o da
“meritocracia”.
Segundo
a crença nascida da deturpação do termo, que atrai, como um imã, cada
vez mais brasileiros, alguns merecem, por sua “competência”, viver, se
divertir, ganhar dinheiro. Enquanto outros não deveriam sequer ter
nascido – já que estão aqui apenas para atrapalhar o andamento da vida e
do trânsito. Melhor, claro, se não existissem – ou que o fizessem
apenas enquanto ainda se precise – ao custo odioso de quase 30 dólares
por dia – de uma faxineira ou de um ajudante de pedreiro.
O
capitalismo está se transformando em ideologia. Só falta que alguém
coloque o cifrão no lugar da suástica e comece a usá-lo em estandartes,
colarinhos e braçadeiras, e que em nome dele se exterminem os mais
pobres, ou ao menos os mais desnecessários e incômodos, queimando-os,
como polutos cordeiros, em fornos de novos campos de extermínio.
Disputa-se
e proclama-se o direito de ter mais, muito mais que o outro, de receber
de herança mais que o outro, de legar mais que o outro, de viver mais
que o outro, de gastar mais que o outro, e, sobretudo, de ostentar,
descaradamente, mais que o outro. Mesmo que, para isso, se tenha de
aprender dos pais e ensinar aos filhos, a se acostumar a pisar no outro,
da forma mais impiedosa e covarde. Principalmente, quando o outro for
mais “fraco”, “diverso” ou pensar de forma diferente de uma matilha
malévola e ignara, ressentida antes e depois do sucesso e da fortuna,
que se dedica à prática de uma espécie de bullying que durará a vida
inteira, até que a sombra do fim se aproxime, para a definitiva pesagem
do coração de cada um, como nos lembram os antigos papiros, à sombra de
Maat e de Osíris.
A
reação conservadora à ascensão de Francisco, depois do aparelhamento,
durante os dois papados anteriores, da Igreja Apostólica e Romana por
clérigos fascistas, e da renúncia de um papa envolvido indiretamente com
vários escândalos, que comandou com crueldade e mão de ferro a “caça às
bruxas” ocorrida dentro da Igreja nesse período, se dá também nos
púlpitos brasileiros.
Não
podendo atacar frontalmente um pontífice que diz que o mundo não é
feito, exclusivamente, para os ricos, religiosos que progrediram na
carreira nos últimos 20 anos, e que se esqueceram de Jesus no Templo e
do Cristo dos mendigos, dos leprosos, dos aleijados, dos injustiçados,
proferem seu ódio fazendo política nas missas – o que sempre condenaram
nos padres adeptos da Teologia da Libertação – ressuscitando o velho e
baboso discurso de triste memória, que ajudou a sustentar o golpismo em
1964.
O
ideal dos novos sacerdotes e fiéis do Bezerro de Ouro é o de um futuro
sem pobres, não para que diminua a desigualdade e aumente a dignidade
humana, mas, sim, a contestação aos seus privilégios.
Em
1996, em um livro profético – “L´Horreur Economique”, “O Horror
Econômico” – a jornalista, escritora e ensaísta francesa, Viviane
Forrester, morta em 2013, já alertava, na apresentação da obra, para o
surgimento desse mundo, dizendo que estamos no limiar de uma nova forma
de civilização, na qual apenas uma pequena parte da população terrestre
encontrará função e emprego.
“A
extinção do trabalho parece um simples eclipse – afirmou então
Forrester – quando, na verdade, pela primeira vez na História, o
conjunto formado por todos os seres humanos é cada vez menos necessário
para o pequeno número de pessoas que manipula a economia e detêm o poder
político…
dando
a entender que diante do fato de não ser mais “explorável”, a “massa” e
quem a compõe só pode temer, e perguntando-se se depois da exploração,
virá a exclusão, e, se, depois da exclusão, só restará a eliminação dos
mais pobres, no futuro.
O
culto ao Bezerro de Ouro, ao dinheiro e ao hedonismo está nos
conduzindo para um mundo em que a tecnologia tornará o mais fraco
teoricamente desnecessário.
A
defesa dessa tese, assim como de outras que são importantes para a
implementação paulatina desse processo, será alcançada por meio da
implantação de uma espécie de pensamento único, estabelecido pelo
consumo de um mesmo conteúdo, produzido e distribuído, majoritariamente,
pela mesma matriz capitalista e ocidental, como já ocorre hoje com os
filmes, séries e programas e os mesmos canais norte-americanos de tv a
cabo, em que apenas o idioma varia, que podem ser vistos com um simples
apertar de botão do controle remoto, nos mesmos quartos de hotel –
independente do país em que se estiver – em qualquer cidade do mundo.
As
notícias virão também das mesmas matrizes, em canais como a CNN, a Fox e
a Bloomberg, e das mesmas agências de notícias, e serão distribuídas
pelos mesmos grandes grupos de mídia, controlados por um reduzido grupo
de famílias, em todo o mundo, forjando o tipo de unanimidade estúpida
que já está se tornando endêmica em países nos quais – a exemplo do
nosso – impera o analfabetismo político.
E
o controle da origem da informação, da sua transmissão, e, sobretudo
dos cidadãos, continuará a ser feito, cada vez mais, pelo mesmo MINIVER,
o Ministério da Verdade, de que nos falou George Orwell, em seu livro
“1984”. Estabelecido primariamente pelos Estados Unidos, por meio da
internet, a gigantesca rede que já alcança quase a metade das
residências do planeta, e de seus mecanismos de monitoração permanente,
como a NSA e outras agências de espionagem, seus backbones, satélites, e
as grandes empresas norte-americanas da área, e a computação em nuvem,
identificando rapidamente qualquer um que possa ameaçar a sobrevivência
do Sistema.
O
mundo do Bezerro de Ouro será, então – como sonham ardentemente alguns –
um mundo perfeito, onde os pobres, os contestadores, os utópicos –
sempre que surgirem – serão caçados a pauladas e tratados a chicotadas,
e, finalmente, perecerão, contemplando o céu, nos lugares mais altos,
para que todos vejam, e sirva de exemplo, como aconteceu com um certo
nazareno chamado Jesus Cristo, há 2.000 anos.