quinta-feira, 2 de julho de 2020

A necropolítica de Bolsonaro

Mentalidade doente
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercicio da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo.


Covid-19 versus humanidade


Especial - Dia Mundial do Meio Ambiente
Edição 125 - Publicado em: 11/06/2020

Em homenagem ao “Dia Mundial do Meio Ambiente” e à memória de Randau Marques, criador do jornalismo ambiental no Brasil, a Ecológico reproduz uma síntese do pensamento do também jornalista ambiental e líder indígena mineiro Ailton Krenak, extraída de seus mais recentes livros: "O amanhã não está à venda" e "Ideias para adiar o fim do mundo"
“Parei de andar mundo afora, cancelei compromissos. Estou com a minha família na aldeia Krenak, no médio Rio Doce, entre Minas e o Espírito Santo. Nossa reserva indígena está isolada. Quem estava ausente regressou, e sabemos bem qual é o risco de receber pessoas de fora. Sabemos o perigo de ter contato com pessoas assintomáticas. Estamos todos aqui e até agora não tivemos nenhuma ocorrência.
A verdade é que vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio território há muito tempo, numa reserva de 4 mil hectares – que deveria ser muito maior se a justiça fosse feita – e esse confinamento involuntário nos deu resiliência, nos fez mais resistentes.
Como posso explicar a uma pessoa que está fechada há um mês num apartamento numa grande metrópole o que é o meu isolamento? Desculpem dizer isso, mas hoje já plantei milho, já plantei uma árvore...
Faz algum tempo que nós, na aldeia Krenak, já estávamos de luto pelo nosso Rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro luto. Está todo mundo parado. Quando engenheiros me disseram que iriam usar tecnologia para recuperar o Rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: ‘A minha sugestão é muito dificil de colocar em prática. Pois teremos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida’.
Então, um deles me disse: ‘Mas isso é impossível’. O mundo não pode parar. E o mundo parou.
Tragédia mundial
Vivemos hoje essa experiência de isolamento social em que todas as pessoas têm de se recolher. Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de corpos serem transportados para enterros e incinerações em caminhões.
Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano.
É como se tivéssemos várias crianças brincando e, por imaginar essa fantasia da infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Só que viramos adultos, continuamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e sociedades. Há uma sub-humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela – e isso também foi naturalizado.
Mentalidade doente
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercicio da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo.
E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha. Essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço.
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise.
É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo. Há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário.
Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores do que a Covid-19.
Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam se manter agarrados nessa Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina.
Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, um humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na Terra. Eu não me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído dela.”

Tudo é natureza

“Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas grandes corporações, que são as donas da grana. Agora esse organismo, o vírus, parece ter se cansado da gente. Parece querer se divorciar da gente como a humanidade quis se divorciar da natureza.
Ele está querendo nos ‘desligar’, tirando o nosso oxigênio. Quando a Covid-19 ataca os pulmões, o doente precisa de um respirador, senão ele morre. Quantas máquinas dessas vamos ter de fazer para 7 bilhões de pessoas no planeta? A nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se moverem, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele?
O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio.’ A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento.
Amor aos idosos
Quem dera eu pudesse fazer uma mágica para nos tirar desse confinamento, que pudesse fazer todos sentirem a chuva cair. É hora de contar histórias às nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter medo. Não sou um pregador do apocalipse. O que tento é compartilhar a mensagem de um outro mundo possível. Para combater esse vírus, temos de ter primeiro cuidado e depois coragem.
Vemos algumas pessoas defenderem a manutenção da atividade econômica, dizendo que ‘alguns vão morrer’ e é inevitável. Esse tipo de abordagem afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos, irmãos. Não tem sentido que alguém, em sã consciência, faça uma comunicação pública dizendo ‘alguns vão morrer’.
É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra. Pois alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto de alguém em idade avançada, como de seus filhos, netos e de todas as pessoas que têm afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados, eu também posso.”

O mundo em suspensão

“Desde muito tempo, a minha comunhão com tudo o que chamam de natureza é uma experiência que não vejo ser valorizada por muita gente que vive na cidade. Já vi pessoas ridicularizando: ‘ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha’, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida.
Há muito tempo não programo atividades para ‘depois’. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã. Penso naqueles versos do Carlos Drummond de Andrade: Stop. A vida parou ou foi o automóvel? Essa é uma parada para valer. O ritmo de hoje não é o da semana passada nem o do ano novo, do verão, de janeiro ou fevereiro. O mundo está agora na suspensão.
E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa.
Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem. Ninguém escapa, nem aquelas pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer, igual a todos nós. Com ou sem Land Rover.
Obra profética
Em artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico De Masi cita a obra profética A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado. Ele cita um trecho inteiro do romance em que o personagem diz algo assim: o bacilo que trouxe aquela mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em algum corrimão, janela, poltrona, só esperando o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz.
Tomara que não voltemos à normalidade. Pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso tudo, as pessoas não vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas de colegas num espaço pequeno de trabalho.
As mudanças já estão em gestação. Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros e máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.”

O que é preciso sustentar?

“Como é que, ao longo da história, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso de tamanha violência contra a natureza e o meio ambiente terrestre?
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível.
Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra. Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% dos humanos estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser?
A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.

Foto: Reprodução Facebook
Foto: Reprodução Facebook

Mito da sustentabilidade
Temos de refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Durante muito tempo, fomos embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso, enquanto seu lobo não vem, fomos nos alienando desse organismo vivo de que somos parte – a Terra – e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra.
Os grandes centros do mundo são uma reprodução uns dos outros. Se formos para Tóquio, Berlim, Nova York, Lisboa ou São Paulo, veremos o mesmo entusiasmo em fazer torres incríveis, elevadores espiroquetas, veículos espaciais... Parece que estamos numa viagem com o Flash Gordon.
Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar? O que é feito de nossos rios, florestas e paisagens? Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea, na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania.
Não tem gente mais adulada hoje do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então, para que ter cidadania, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Tudo isso nos dispensa da experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões.”

A minha provocação


Foto: Divulgação Nasa
Foto: Divulgação Nasa

“Davi Kopenawa ficou 20 anos conversando com o antropólogo francês Bruce Albert para produzir uma obra fantástica, chamada A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. O livro tem a potência de nos mostrar como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão. Habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial, em que tudo ganha um sentido.
As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta. Não estou falando do filme Avatar, mas da vida de 20 e tantas mil pessoas que habitam o território Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Esse território está sendo assolado pelo garimpo e ameaçado pela mineração. Pelas mesmas corporações perversas que não toleram esse tipo de cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir.
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar.
O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.
Paraquedas coloridos
Por que nos causa desconforto a sensação de estarmos caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então, por que estamos grilados agora com a queda?
Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.
A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.
Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas o existencial. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades.
Então, vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar. Não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, visões e poéticas sobre a existência.”

O desastre do nosso tempo

“Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo.
Quem disse que a gente já não caiu? Houve um tempo em que o planeta que chamamos Terra juntava geograficamente os continentes todos numa grande Pangeia. Se olhássemos lá de cima do céu, tiraríamos uma fotografia completamente diferente do globo.
Quem sabe se, quando o astronauta Yuri Gagarin disse ‘a Terra é azul’, ele não fez um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser. Ele olhou com o nosso olho, viu o que a gente queria ver. É como se tivéssemos feito um photoshop na memória coletiva planetária, entre a tripulação e a nave, onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável.
É como parar numa memória confortável, agradável, de nós próprios, por exemplo, mamando no colo da nossa mãe: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa, nos alimentando forever. Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, reclama porque não está vendo o seio da mãe. De repente, o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol. Mas como estávamos tão acostumados, a gente só quer mamar...
Todas histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. É a referência de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes em que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.
Coreografia estranha
Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo...
Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela.
Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sendo exterminada. Ela é formada por milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha, são tiradas de cena por epidemias, pobreza, fome, violência.
O simples contágio do encontro entre humanos fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. Não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento. Tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas.
Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI. Assim como estamos vivendo hoje o desastre do nosso tempo.
Que humanidade, enfim, queremos sobre a Terra? Se ainda não sabemos, a natureza parece saber e se atualiza sempre, desde que o planeta foi criado. Não à toa, o novo coronavírus não mata uma única borboleta. Nem a borboleta azul que Hugo Werneck tanto amava. Só humanos!”

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http://revistaecologico.com.br/revista/edicoes-anteriores/edicao-125/covid-19-versus-humanidade/?fbclid=IwAR2hCA_d_j9agTptwMIeAeANdJ02eL3XfgF6hBrdlAPVf4WWvAQCtH1Fg8c 

quarta-feira, 1 de julho de 2020

CIA promove ‘guerras não violentas’ para implodir governos


PCB – Partido Comunista Brasileiro
Ex-agente duplo conta como a CIA promove ‘guerras não violentas’ para implodir governos
26 de novembro de 2015
imagemMarco Weissheimer
Cuba procura normalizar as relações com os EUA. Mas conhece bem o interlocutor com que está a lidar. Esta história é uma de muitas outras possíveis: entre 2004 e 2011, o escritor e professor cubano Raúl Antonio Capote Fernández actuou, a pedido dos serviços de informações cubanos, como agente duplo infiltrado na CIA. Foi contactado muito jovem porpessoas ligadas à agência norte-americana e convidado a participar de um projecto que pretendia criar uma “oposição de novo tipo” em Cuba, capaz de, após o desaparecimento de Fidel Castro, iniciar uma “revolução suave” que acabasse por derrubar o governo de Havana.
Entre 2004 e 2011, o escritor e professor cubano Raúl Antonio Capote Fernández atuou, a pedido da inteligência cubana, como agente duplo infiltrado na CIA. Raúl Capote foi contatado muito jovem por pessoas ligadas à agência de inteligência norte-americana e convidado a participar de um projeto que pretendia criar uma “oposição de novo tipo” em Cuba, capaz de, após o desaparecimento de Fidel Castro, iniciar uma “revolução suave” que acabasse por derrubar o governo de Havana. A sua missão era formar líderes universitários e criar o projeto “Genesis”, com o objetivo de estabelecer em Cuba a estratégia do “golpe suave”, elaborada por autores como Gene Sharp.
Em entrevista ao Sul21, Raúl Capote conta essa experiência, relata como ela fracassou em Cuba e diz que ela já foi aplicada em países como Venezuela, Irã e Líbia e que segue sendo implementada em diversas regiões do mundo. “A ideia da guerra não violenta consiste em ir solapando os pilares de um governo até que ele imploda. O objetivo não é fazer com que um governo renuncie. Se isso acontecer, o projeto fracassou. A ideia é que o governo imploda e que isso cause caos. Com o país em caos, é possível recorrer a meios mais extremos”, assinala.
Raúl Capote veio a Porto Alegre a convite da Associação Cultural José Martí/RS para participar de uma série de encontros e debates. Ele mantém o blog El Adversário Cubano, onde conta outros detalhes sobre essa história e sobre outras “guerras não violentas” em curso no planeta.
Sul21: Como é que você começou a trabalhar com assuntos de segurança em Cuba e sob que circunstâncias se tornou um agente duplo, atuando infiltrado na CIA?
Raúl Capote: Isso começou em 1986. Eu era um jovem inquieto e rebelde que fazia parte de uma organização chamada Associação Hermanos Saiz, que agrupava jovens poetas, pintores e escritores. Esse espírito rebelde para nós era algo muito natural. Fomos ensinados a ser assim. Creio que os serviços especiais norte-americanos confundiram esse espírito de rebeldia com um espírito de possível oposição ao sistema. Eles começaram a se aproximar de nós. Eu vivia em Cienfuegos, no centro-sul de Cuba, uma cidade que tinha uma importância estratégica nesta época porque a revolução queria convertê-la num centro industrial para o país. Havia muitas obras em construção, entre elas uma central Eletronuclear e fábricas de todo tipo. Era uma cidade muito jovem e onde trabalhavam muitos cubanos que tinham se formado na União Soviética e em outros países do campo socialista. Creio que essa conjuntura de ser uma cidade jovem e industrial, com muitos jovens interessados em temas da cultura, da política e da economia, chamou a atenção da CIA.
Eles começaram a se aproximar de nós por meio de organizações não-governamentais. A primeira pessoa que veio falar conosco foi Denis Reichler, um jornalista freelancer da revista Paris Match, que para nós era uma espécie de ídolo do jornalismo esportivo. O que admirávamos nele era sua atuação como jornalista que havia estado na África e em muitos outros lugares. Era uma referência positiva para se aproximar de um grupo de jovens tão rebelde. Ele nos colocou em contato com organizações não-governamentais que, supostamente, estavam interessadas em financiar projetos artísticos em Cuba. Nos colocou em contato com pessoas que começaram a planejar ajuda econômica e a trabalhar conosco, em um processo de aproximação que buscava ganhar a nossa confiança. Éramos jovens e estávamos começando a fazer literatura ou artes plásticas. Ainda não tínhamos nenhuma obra, só tentativas.
Era um processo de aproximação feito com muita cautela e sem pressa. Neste período, a Segurança de Estado cubana entrou em contato comigo, me explicou o que estava acontecendo, que aquelas pessoas não pertenciam, de fato, a organizações não governamentais e quais eram as suas reais intenções. Isso me dava três possibilidades. A primeira era seguir trabalhando com eles. A segunda era interromper o trabalho e o contato com eles. E a terceira possibilidade, que me foi proposta pela segurança cubana, era seguir trabalhando com eles, converter-me em um agente da segurança cubana e tratar de decifrar quais eram os planos dessas pessoas no mundo da cultura e das artes, especialmente junto à juventude.
Sul21: Esse contato com a agência de segurança cubana e o trabalho que se seguiu daí aconteceram ainda em 1986?
Raúl Capote: Sim, em 1986. Para mim era algo extraordinário. Nos anos 80, existia na sociedade cubana toda uma mística sobre o trabalho da segurança cubana, que sempre foi muito popular. Havia uma história legendária sobre ela, que tinha frustrado planos da CIA contra Cuba. Pertencer a essa organização me pareceu algo maravilhoso. Não avaliava, então, o quão complicado seria o trabalho que eu teria que enfrentar nem a quantidade de renúncias que eu teria que fazer. Eu tinha 20 anos quando comecei esse trabalho. Foi um longo processo. Houve um momento em que ocorreu uma interrupção desse movimento de aproximação feito pelos inimigos de Cuba. Em 1987, houve uma grande denúncia pública. Mais de 30 agentes da segurança cubana expuseram o trabalho de quase 96 oficiais da CIA que estavam atuando dentro do país.
Isso fez com que a CIA se tornasse mais cautelosa e tomasse algumas precauções. Passaram-se então alguns anos de contato muito leve por meio de algum jornalista ou de um representante de uma ong. Em 1994 eu fui morar em Havana e passei a trabalhar como organizador do sindicato de trabalhadores da cultura na cidade. Era uma mudança radical em muitos sentidos. Até então eu trabalhava com um universo de 3 ou 4 mil jovens e passei a dirigir 40 mil trabalhadores da cultura. Isso me tornou um alvo ainda mais interessante para a CIA. Eu era líder de um sindicato onde estavam praticamente todos os trabalhadores da cultura – artistas, músicos, escritores. Era um sindicato muito forte. Aí os contatos voltaram.
Eles passaram a me visitar com um plano mais complicado. Começaram a falar em dar informações sobre como se movia esse mundo da cultura, sobre como os jovens viam a Revolução naquele momento, etc. Esse processo vai se incrementando com o passar dos anos até 2004. Neste período, entramos em contato com associações e fundações mais vinculadas com o governo dos Estados Unidos como a Usaid e a Fundação Panamericana para o Desenvolvimento. Em 2004 começou então o processo do meu recrutamento pela CIA. Neste ano, conheci muitos oficiais da agência, inclusive aquele que seria meu chefe mais tarde.
Sul21: Conheceu esses oficiais da CIA em Cuba mesmo?
Raúl Capote: Sim, em Cuba. Em 2004, então, eles me recrutam e eu me converto em um agente da CIA com uma tarefa muito específica. Minha tarefa não era fazer espionagem, até porque eu não tinha acesso mesmo a informações muito importantes, ou praticar ações encobertas ou atos terroristas, como normalmente faziam em Cuba. O meu trabalho era promover a guerra cultural, a guerra no terreno das ideias, que eles definem muito bem ao chamar de guerra cultural. Nós usamos expressões complicadas para isso como subversão político-ideológica ou algo do gênero. Eles simplificam. É guerra cultural mesmo. O que eu não imaginava era chegar a conhecer o quanto de verdade havia no controle real que a CIA tem sobre os meios de comunicação e a indústria cultural nos Estados Unidos e no mundo inteiro. Descobri que isso existe de fato, não é teoria da conspiração como alguns acreditam.
A CIA utiliza o cinema, as rádios, as televisões os jornais e outros canais a partir de um plano prévio. A agência criou um departamento que se especializou neste tipo de guerra cultural. Eu entrei neste mundo e conheci muitas pessoas que trabalhavam nele. Em 2005, eu me converti em chefe de um projeto específico da CIA em Cuba, chamado de Projeto Gênesis.
Sul21: Você chegou a ir aos Estados Unidos para fazer algum tipo de treinamento especial ou para reuniões?
Raúl Capote: Sim, tive contato direto com eles. O Gênesis era um projeto muito bem pensado e que me permitiu conhecer também como a CIA estava trabalhando na América Latina com a mesma ideia de guerra cultural. Esse projeto não foi uma novidade cubana, mas sim o resultado de um trabalho realizado pelos Estados Unidos em muitas regiões da América Latina. Ele começou a ser implementado no processo de transição democrática na América Latina, no Chile e em muitos outros lugares. Essa experiência partiu da constatação de que as universidades latino-americanas tinham sido nas últimas décadas um foco de insurreição e de formação de militantes de esquerda. Eles decidiram mudar isso e converter a universidade latino-americana em um centro de produção do pensamento da direita e não da esquerda. Eles pensavam que o fato de essas universidades terem atravessado um período de repressão muito grande, quando muitos professores e estudantes militantes de esquerda foram mortos, facilitava um pouco esse trabalho de conversão.
Assim, começaram a implementar em toda a América Latina um milionário plano de integração acadêmica. Muitos estudantes e professores foram fazer esse intercâmbio nos Estados Unidos, onde realizaram diversos cursos, entre eles o famoso curso de liderança. A ideia era criar uma nova classe dirigente dentro das universidades e, por consequência, nos seus respectivos países. A quantidade de líderes mundiais hoje que são fruto desses programas é impressionante. Esse processo foi aplicado na Venezuela, por exemplo, com uma ênfase muito forte, a partir de 2009.
Entre 2003 e 2004 se enviava, mensalmente, um grupo de dez estudantes com um professor para cursos de formação e liderança na antiga Iugoslávia, atual Sérvia, sob a coordenação do antigo grupo de resistência sérvio, onde estava Srdja Popovic e uma série de jovens que contavam a experiência da derrubada de Milosevic.
Participavam desses cursos também o Instituto Albert Einstein, o Instituto de Luta pela Guerra Não Violenta, criado pelos sérvios, o multimilionário húngaro George Soros que colocou muito dinheiro neste projeto, e o Instituto Republicano Internacional que recebia fundos do governo norte-americano e o aplicavam nestes cursos. Aí se formaram muitos dos líderes da chamada Primavera Árabe e muitos líderes da oposição síria. Criou-se toda uma estrutura para fomentar o uso da chamada luta não violenta e do golpe suave. Estudantes venezuelanos, acompanhados de alguns professores, começaram a fazer esses cursos de forma periódica. O objetivo era repetir esse processo em Cuba, para formar ativistas especializados no manejo da guerra não violenta.
Eu recebi uma preparação intensa de como se organiza um golpe suave para derrubar um governo, quais são as medidas fundamentais para construir essa estratégia. É claro que, dentro de Cuba, seria muito mais difícil fazer essa formação. A alternativa encontrada foi usar o sistema de bolsas de estudo para promover o intercâmbio de estudantes. A ideia era propor, por exemplo, uma bolsa de estudos de seis meses ou mais em Jerusalém para um estudante de história ou ciências sociais. Ou então oferecer para uma jovem estudante de arte uma bolsa em Colônia, na Alemanha. Escolheu-se universidades muito pontuais, que não fossem norte-americanas e que pudessem ser atrativas para determinadas áreas de interesse. Mas os cursos oferecidos nestas universidades não eram exatamente sobre arte ou sobre história, mas sim sobre formação de lideranças, com cursos de inglês, cursos de táticas de guerra não convencional, sobre como funcionavam as organizações democráticas. O objetivo era que, mais tarde, esses estudantes se transformassem em elementos de mudança em Cuba.
Sul21: E os estudantes que recebiam essas bolsas, sabiam da real natureza desse intercâmbio?
Raúl Capote: Não sabiam. O truque da bolsa era que, em geral, oferecia um curso de seis meses. As pessoas supunham que o curso era relacionado com a sua especialidade. Por que não passar seis meses em Jerusalém, Colônia ou outro local, com tudo pago, recebendo um curso de inglês, entre outras coisas? – pensavam. A agência estimava que, se cada dez estudantes, um se convertesse em um futuro opositor, já seria um grande lucro.
Esse plano começou a ser implementado em Cuba com muita força a partir de 2005, 2006, sem muitos resultados. Para surpresa da CIA, não houve muitos interessados pelos cursos, que não tiveram o impacto esperado junto aos jovens cubanos. Além disso, eu é que estava dirigindo a operação…Era possível que não tivesse êxito…(risos). Outro plano envolvendo a minha atuação como agente era fazer com que eu ocupasse uma posição elevada dentro do Ministério da Educação. Pretendiam me dar todo o apoio possível para tanto, apoio acadêmico e inclusive monetário. A ideia era me converter em uma pessoa imprescindível no sistema de educação cubano por minhas relações e contatos no mundo acadêmico.
Uma das coisas mais importantes para eles nesta época era o tempo que lhes restava. Estavam muito preocupados com essa questão temporal, pois aguardavam o momento do desaparecimento de Fidel. Avaliavam que muitos dos líderes históricos da Revolução Cubana não estariam mais em condições de assumir o posto de comando quando isso acontecesse. Trabalhavam com um período de dez ou quinze anos, no qual se formaria em Cuba uma nova oposição, que não teria nada a ver com a oposição anterior, que eles próprios consideravam desprestigiada e sem base social. Queriam criar uma oposição de novo tipo.
Sul21: Como pretendiam fazer isso?
Raúl Capote: A estratégia utilizada em Cuba se diferenciou um pouco daquela usada em outros lugares. Eles queriam formar uma oposição de esquerda, pois avaliavam que uma oposição de direita não teria êxito em Cuba, pelo enraizamento da tradição e do pensamento revolucionário e também pelo fato que a direita nunca teve uma posição muito significativa junto ao povo cubano. Passaram a tentar criar, então, organizações que fossem supostamente de esquerda. Essa era a estratégia central do projeto Genesis. Para nos auxiliar nesta tarefa, nos deram acesso a modernos meios eletrônicos de comunicação que nos permitiram acessar a internet, as redes sociais e outros espaços. A ideia era nos dotar de uma grande capacidade de mobilização e começar a gerar conteúdo dentro do país. Isso tudo seria feito em segredo, em baixo perfil, nos treinando no uso dessas novas tecnologias.
Em 2007, me entregaram um equipamento de comunicação que se conectava por satélite com o Departamento de Defesa e que não podia ser rastreado. Esse equipamento permitia que eu tivesse comunicação direta com meu chefe em Washington e também criar uma rede em Cuba indetectável. De forma concomitante com isso, se começou outro projeto por meio do qual começaram a introduzir telefones celulares no país. Em função do bloqueio imposto pelos Estados Unidos, Cuba não tinha muitos celulares. Eles começaram a distribuir celulares de maneira gratuita, por diferentes meios, e criaram o programa ZunZuneo, que pretendia ser uma espécie de twitter cubano.
Essa rede começou a distribuir mensagens de texto principalmente e notícias relacionadas ao esporte, à cultura e às artes. A ideia era criar dentro do país um hábito de consultar essa rede e fazer com que as pessoas confiassem nela. Assim, no momento necessário, ela começaria a enviar mensagens para mobilizar ações contra a revolução. Fizeram alguns testes no país, em determinados momentos, que não deram resultado, mas seguiram implementando o projeto. Mais tarde, fizeram alguns aperfeiçoamentos e criaram outro sistema que se chamou Piramideo, parecido com o ZunZuneo, mas com alguns acréscimos fruto de experiências no Oriente Médio, especialmente no Irã, onde foi utilizado como ferramenta de mobilização em determinadas situações dentro do país.
Sul21: Qual foi o impacto dessas iniciativas na sociedade cubana, especialmente junto à juventude? Elas tiveram visibilidade?
Raúl Capote: Tudo era feito pensando em um determinado momento no futuro de Cuba onde deveria ocorrer uma mudança de governo. Eles pensavam que isso ocorreria entre 2015 e 2016, que é exatamente o momento que estamos vivendo agora. Neste momento, segundo o planejamento feito, já deveria estar formada uma oposição social de novo tipo, saída da universidade e integrada principalmente por estudantes e professores, mas também por artistas, pequenos comerciantes e representantes de outros setores que apoiassem essa ideia. O surgimento público desse novo movimento político se daria através do lançamento da organização Fundação Genesis para a Liberdade, que deveria se dar em um ano em que ocorressem eleições em Cuba (que ocorrem a cada cinco anos).
Essa organização até poderia ser considerada uma fundação, mas de “genesis” não tinha nada e de liberdade muito menos. Em primeiro lugar, porque o líder da organização, eu no caso, era um agente da CIA. Em segundo lugar, eu não podia tomar nenhuma decisão sem ouvir o grupo consultivo que era constituído por oficiais da CIA. Então, de liberdade não tinha nada. Por meio dessa fundação, se esperava criar um ou mais de um partido político supostamente de esquerda. O discurso desse novo partido consistiria em dizer que era preciso reformar e modernizar o socialismo cubano. A nossa principal palavra de ordem era esta: modernizar. “Precisamos colocar o socialismo à altura do tempo”, “a época heroica já passou”, “ninguém mais faz isso no mundo”…diríamos coisas assim.
Eles acreditavam que, com o desaparecimento de líderes históricos carismáticos da Revolução como Fidel, esse novo movimento político teria um grande impacto na sociedade cubana levando inclusive a uma fratura na unidade interna do país. O nascimento da Fundação Genesis como organização seria acompanhado por uma grande campanha midiática. Haveria uma coletiva de imprensa com alguns dos mais importantes meios de comunicação do mundo. O passo seguinte seria organizar ações de rua, manifestações, ocupação de espaços públicos de maneira pacífica com o objetivo de causar impacto na sociedade.
Sul21: Qual era a meta principal dessa tática?
Raúl Capote: Em resumo, aplicar a cartilha de Gene Sharp, teórico do golpe suave. A ideia da guerra não violenta consiste em ir solapando os pilares de um governo até que ele imploda. O objetivo não é fazer com que um governo renuncie. Se isso acontecer, o projeto fracassou. A ideia é que o governo imploda e que isso cause caos. Com o país em caos, é possível recorrer a meios mais extremos. A meta em Cuba era esta: causar um caos tal no país que fizesse desabar todos os pilares da revolução. Neste cenário, várias possibilidades eram consideradas, entre elas, uma “intervenção humanitária” dos Estados Unidos no país. Outra era a instalação de um governo de transição que levasse a um governo de direita.
O truque fundamental do projeto Genesis era que tinha supostamente um discurso de esquerda, mas as propostas reais que defendia consistiam em privatizar praticamente tudo, inclusive a saúde e a seguridade social. Era um socialismo anti-socialista e anti-social, com terríveis medidas de austeridade. Eles diziam para não nos preocuparmos, pois o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a comunidade cubana no exterior iriam apoiar a “reconstrução do país”. Mas esse projeto nunca conseguiu ter base social nem conseguiu formar estudantes como pretendia…
Sul21: E você, na condição de agente duplo, se esforçava na implantação do projeto ou trabalhava contra ele?
Raúl Capote: Fazia tudo o que podia para que não tivesse resultado. Era um jogo de xadrez muito interessante. Eu tinha que fazer com que eles acreditassem que estava funcionando e, na prática, fazer com que não funcionasse. Era bem difícil. Mas o projeto tinha muitos pontos débeis. Um deles era a crença de que a revolução dependia de uma única pessoa. Acreditar que a Revolução Cubana é Fidel é um erro. Outro erro era acreditar que os cubanos são pessoas ingênuas.
Em 2006, Fidel anunciou que estava se afastando de suas funções por problemas de saúde e que seria substituído por Raul (seu irmão, Raul Castro). Esse era um momento propício para aplicar a estratégia da Fundação Genesis e eles precipitaram um conjunto de ações. Acreditavam que poderia ocorrer um levante no centro de Havana.
Para tanto, usaram um médico chamado Darsi Ferrer, um contrarrevolucionário desconhecido. No dia 13 de agosto de 2006, data de aniversário de Fidel, ele deveria provocar um levante em Havana e convocar uma coletiva para dizer que o país estava mergulhado no caos, que havia militares sublevados e que a população não queria Raul no governo. Planejaram gravar em um estúdio, de modo muito parecido com o que fizeram na Líbia onde filmaram ações que, na verdade, não estavam acontecendo. O plano era filmar cenários de repressão como se os militares cubanos estivessem reprimindo a população, e transmitir essas imagens para todo o mundo. A mim me surpreendeu muito que um oficial da CIA em Cuba tivesse o poder de pautar e subordinar os mais importantes meios de comunicação do mundo. Era isso que estava se planejando ali.
Sul21: E qual era o seu papel neste plano?
Raúl Capote: Quando essas imagens do “caos” em Cuba tivessem sido transmitidas ao mundo, eu deveria convocar uma coletiva de imprensa e pedir uma intervenção militar dos Estados Unidos para conter as violações de direitos humanos. Eu não era um contrarrevolucionário ou opositor, mas um professor e acadêmico conhecido no país. A credibilidade da minha aparição seria maior. Fiquei com um grande conflito interno neste período. Eu jamais iria fazer aquele pedido de intervenção militar dos Estados Unidos.
Sul21: O que aconteceu, então?
Raúl Capote: As coisas começaram a dar errado para eles muito rapidamente. Depois do anúncio do afastamento de Fidel, passaram-se alguns dias e não houve nenhum caos no país, que seguiu funcionando normalmente. Não houve manifestações, protestos, nada. As pessoas seguiram com suas vidas. O outro problema que ocorreu é que o médico escolhido para desencadear o levante ficou sabendo que os principais canais de Miami estavam dizendo que um opositor cubano chamado Darsi Ferrer iria se imolar pela democracia. Aquilo foi uma surpresa total, pois não estava em seus planos colocar fogo no próprio corpo e morrer. Ele ficou convencido que iam matá-lo e, no dia 13 de agosto, ao invés de ir ao lugar escolhido para a execução do plano, sai de casa e inventa uma desculpa para não ir até lá. E o projeto fracassa.
Sul21: Quando você abandona a condição de agente duplo?
Raúl Capote: Em 2010, quando a Líbia entrou em situação de guerra civil, o governo cubano me pediu para participar de uma denúncia pública para que as pessoas ficassem sabendo como esse tipo de golpe é tramado. Era uma decisão muito difícil, pois trazia riscos para mim e para minha família. Mas aceitei a proposta e começamos a gravar um conjunto de programas chamado “As razões de Cuba”, onde um grupo de agentes como eu vai à televisão contar o que tinham vivenciado. O programa foi dividido em capítulos. O meu foi ao ar em 4 de abril de 2011, onde contei tudo isso na televisão.
Sul21: Fora de Cuba, se fala muito da situação de restrição de acesso à internet e às redes sociais na ilha, que haveria controle e a população não teria livre acesso à rede. Qual é mesmo a situação do acesso à internet em Cuba?
Raúl Capote: Sim, constantemente se acusa o governo cubano de não permitir o livre acesso à internet. É uma grande mentira. Se formos olhar os discursos de Fidel nos anos 90, veremos que a revolução cubana sempre defendeu o acesso livre à internet. O problema é que os donos da internet são os norte-americanos, Cuba está cercada de cabos submarinos de fibra ótica, mas não pode usá-los por causa do bloqueio. Cuba não tem acesso à tecnologia necessária para garantir o acesso à internet para todos os seus cidadãos por que as empresas são proibidas, pelos Estados Unidos, de negociar com Cuba. Em função desse quadro, o acesso à internet tornou-se muito caro para Cuba. E ela é lenta porque é preciso uma infraestrutura que garanta que o sinal chegue em todos os lugares do país. Nós acreditamos que a internet é uma ferramenta para defender e propagar a revolução. Os Estados Unidos não querem que Cuba tenha livre acesso à internet, porque sabem isso significaria que poderíamos divulgar muito mais nossas ideias também.
É impossível no mundo hoje que uma sociedade se desenvolva sem a internet. Nós temos a Universidade de Ciências Informáticas, que é uma das maiores da América Latina e forma todos os anos milhares de engenheiros criadores de softwares e técnicos nesta área. É uma universidade que se auto-financia com a venda desses softwares. Temos escolas técnicas em todas as províncias que formam milhares de jovens para o uso das redes sociais e das novas tecnologias. Apesar do alto custo que ainda representa, a acesso e uso da internet em Cuba tem aumentado enormemente, apesar de todos os bloqueios que ainda sofremos.
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26 DE NOVEMBRO DE 2015
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