13 de
maio...
“[...] puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, apenas para
acordar no dia 14 com a enorme ressaca produzida por uma dúvida atroz: o que
fazer com esse tipo de liberdade? [...] discriminados nas esferas da justiça e
do mercado de trabalho, invisibilizados nos meios de comunicação, negados nos
seus valores, na sua religião e na sua cultura. [...]
[...] Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, Julius Nyerere, Jomo
Kenyatta, Léopold Senghor, Wole Soyinka e Sam Nujomo...
“[...] puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, apenas para acordar no dia 14 com a enorme ressaca produzida por uma dúvida atroz: o que fazer com esse tipo de liberdade? [...] discriminados nas esferas da justiça e do mercado de trabalho, invisibilizados nos meios de comunicação, negados nos seus valores, na sua religião e na sua cultura. [...]
[...] Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, Léopold Senghor, Wole Soyinka e Sam Nujomo...
13 de maio, uma mentira cívica
Por Douglas Belchior
5% de nós ainda éramos escravos.
Em nossa maioria, já éramos explorados de bárbaras outras maneiras.
E o que viria, do dia seguinte em diante, está aí, 126 anos depois.
13 de Maio é dia de denúncia, de reflexão e de luta.
E para marcá-lo, reproduzo aqui texto garimpado pelo site da Geledes, em que recuperam o brilhante discurso do mestre Abdias do Nascimento, proferido há 26 anos atrás.
Asè para nossos ancestrais!
Discurso proferido pelo Senador Abdias Nascimento por ocasião dos 110 anos da Abolição no Senado Federal.
De Geledes
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ.
Pronuncia o seguinte discurso.) – Sr. Presidente, Srªs. e Srs.
Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este meu pronunciamento.
Na data de hoje, 110 anos passados, a
sociedade brasileira livrava-se de um problema que se tornava mais agudo
com a proximidade do século XX, ao mesmo tempo em que criava condições
para o estabelecimento das maiores questões com que continuamos a nos
defrontar às vésperas do Terceiro Milênio. Assim, a 13 de Maio de 1888, a
Princesa Isabel, então regente do trono em função do afastamento de seu
pai, D. Pedro II, assinava a lei que extinguia a escravidão no Brasil,
pondo fim a quatro séculos de exploração oficial da mão-de-obra de
africanos e afro-descendentes nesta Nação, mais que qualquer outra, por
eles construída.
Durante muito tempo, a propaganda oficial fez
desse evento histórico um de seus maiores argumentos em defesa da
suposta tolerância dos portugueses e dos brasileiros brancos em relação
aos negros, apresentando a Abolição da Escravatura como fruto da bondade
e do humanitarismo de uma princesa. Como se a história se fizesse por
desígnios individuais, e não pelas ambições coletivas dos detentores do
poder ou pela força inexorável das necessidades e aspirações de um povo.
A tentativa de vender a abolição como produto
da benevolência de uma princesa branca é parte de um quadro maior, que
inclui outras fantasias, como a “colonização doce” – suave apelido do
massacre perpetrado pelos portugueses na África e nas Américas – e o
“lusotropicalismo”, expressão que encerra a contribuição lusitana à
construção de uma “civilização” tropical supostamente aberta e
tolerante. Talvez do tipo daquela por eles edificada em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau, quando a humilhação e a tortura foram
amplamente usadas como formas de manter a dominação física e psicológica
de europeus sobre africano
Na verdade, o processo que resultou na
abolição da escravatura pouco tem a ver com as razões humanitárias –
embora essas, é claro, também se fizessem presentes. O que de fato
empurrou a Coroa imperial a libertar os escravos foram, em primeiro
lugar, as forças econômicas subjacentes à Revolução Industrial,
capitaneadas por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos
manufaturados. Explicam-se desse modo as pressões exercidas pela
Grã-Bretanha sobre o Governo brasileiro, especialmente no que tange à
proibição do tráfico, que acabaria minando os próprios alicerces da
instituição escravista. Outro fator fundamental foi o recrudescimento da
resistência negra, traduzido no pipocar de revoltas sangrentas, com a
queima de engenhos e a destruição de fazendas, que se multiplicaram nas
últimas décadas do século XIX, aumentando o custo e impossibilitando a
manutenção do sistema.
Foi assim que chegamos ao 13 de maio de 1888,
quando negros de todo o País – pelo menos nas regiões atingidas pelo
telégrafo – puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida,
apenas para acordar no dia 14 com a enorme ressaca produzida por uma
dúvida atroz: o que fazer com esse tipo de liberdade? Para muitos, a
resposta seria permanecer nas mesmas fazendas, realizando o mesmo
trabalho, agora sob piores condições: não sendo mais um investimento, e
sem qualquer proteção na esfera das leis, o negro agora era livre para
escolher a ponte sob a qual preferia morrer. Sem terras para cultivar e
enfrentando no mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus,
em geral subsidiados por seus países de origem e incentivados pelo
Governo brasileiro, preocupado em branquear física e culturalmente a
nossa população, os brasileiros descendentes de africanos entraram numa
nova etapa de sua via crucis. De escravos passaram a favelados, meninos
de rua, vítimas preferenciais da violência policial, discriminados nas
esferas da justiça e do mercado de trabalho, invisibilizados nos meios
de comunicação, negados nos seus valores, na sua religião e na sua
cultura. Cidadãos de uma curiosa “democracia racial” em que ocupam,
predominantemente, lugar de destaque em todas as estatísticas que
mapeiam a miséria e a destituição.
O mito da “democracia racial”, que teve em
Gilberto Freyre seu formulador mais sofisticado, constitui, com efeito, o
principal sustentáculo teórico da supremacia eurocêntrica neste País.
Interpretando fatos históricos de maneira conveniente aos seus
propósitos, deturpando aqui, inventando acolá, sofismando sempre, os
apóstolos da “democracia racial” conseguiram construir um sólido e
atraente edifício ideológico que até hoje engana não somente parte dos
dominados, mas também os dominadores. Estes, sob o martelar do slogan,
por vezes acreditaram sinceramente na inexistência de racismo no Brasil.
Podiam, assim, oprimir sem remorso ou sentimento de culpa. Esse mesmo
mito, com denominações variadas, como “raza cósmica” ou “café con
leche”, também contamina as relações de raça na maioria do países da
chamada América Latina, resultando, invariavelmente, na hegemonia dos
brancos – ou daqueles que assim se consideram e são considerados – sobre
os negros e os índios. É assim no México, na Colômbia, na Venezuela, no
Equador, no Peru e nos países da América Central e do Caribe. Disso não
escapa sequer a Cuba socialista, que pude visitar mais uma vez poucas
semanas atrás e onde, a despeito do grande esforço de nivelamento social
realizado pela Revolução, hábitos, costumes e linguagem continuam
impregnados do perverso eurocentrismo ibérico.
Um dos efeitos mais cruéis desse tipo de
ideologia é confundir e atomizar o grupo oprimido, impedindo-o de se
organizar para defender seus interesses. Assim, por exemplo, se denuncia
a discriminação racial de que é vítima, o negro se vê enquadrado nas
categorias de “complexado”, “ressentido” ou mesmo de “perturbado
mental”. Algum tempo atrás, poderíamos acrescentar as de “subversivo” ou
“agente do comunismo internacional”, estigmas que as instituições
repressoras de nosso País tentaram imprimir em minha própria pele e que
me obrigaram a viver no exterior por mais de uma década.
Terríveis na sua capacidade de ocultar o óbvio
ostensivo, todos esses instrumentos de coerção e imobilização não foram
suficientes para impedir que parcelas da população afro-brasileira se
tenham organizado, nesses 110 anos desde a abolição, a fim de lutar, por
todos os meios possíveis, pela justiça e pela igualdade neste País
edificado por seus antepassados. Já tive ocasião de celebrar, aqui mesmo
nesta Casa, o aniversário de fundação da maior dentre todas as
organizações afro-brasileiras deste século, a Frente Negra Brasileira,
que assinalou, ainda na década de trinta, a existência de um pensamento e
de uma ação: negros comprometidos em derrubar as barreiras construídas
com base na origem africana. Transformada em partido político e fechada
com o golpe do Estado Novo, a Frente Negra, em seus acertos e equívocos,
balizou o caminho a ser percorrido pelas futuras organizações
afro-brasileiras.
Em meados da década dos quarenta, criei no Rio
de Janeiro, com ajuda de outros militantes, o Teatro Experimental do
Negro, organização que fundia arte, cultura e política na
conscientização dos afro-brasileiros, e dos brasileiros em geral, para
as questões do racismo e da discriminação, assim como para a valorização
da cultura de origem africana. Apesar dos obstáculos que lhe foram
interpostos, incluindo a clássica acusação de “racismo às avessas”, o
Teatro Experimental do Negro marcou sua trajetória, pelo volume e
qualidade de sua atuação, no meio artístico e cultural daquela década e
do decênio seguinte, como também no cenário político, sendo diretamente
responsável pela primeira proposta de legislação antidiscriminatória no
Brasil, mais tarde neutralizada pela malfadada Lei Afonso Arinos.
Minha militância acabaria me rendendo um
exílio, do final dos anos sessenta ao início da década de oitenta. Pude
então travar contato em primeira mão com toda uma liderança negra, na
África, nos Estados Unidos e na Europa, em luta contra o imperialismo, o
colonialismo e o racismo. As idéias e ações dessa liderança, que
incluía Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, Julius Nyerere,
Jomo Kenyatta, Léopold Senghor, Wole Soyinka e Sam Nujomo, na África;
Malcolm X, Martin Luther King, Amiri Baraka, Stokeley Carmichael e os
Black Panthers, na América do Norte – para citar apenas alguns de seus
mais destacados expoentes -, encontraram eco no Brasil, estimulando a
antiga luta afro-brasileira, agora sob o rótulo de “Movimento Negro”.
Recuperando a tradição das antigas
organizações, a exemplo da República dos Palmares, da Frente Negra e do
Teatro Experimental do Negro, o Movimento Negro logo se espalhou pelo
País, catalisando o idealismo de uma generosa juventude
afro-descendente, com grande incidência dos escassos universitários que
enfrentavam, na busca de se inserirem no mercado de trabalho, as cruéis
contradições de nossa “democracia racial”.
O Sr. Ney Suassuna (PMDB-PB) – V. Exª me permite um aparte?
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) – Ouço V. Exª com muito prazer.
O Sr. Ney Suassuna (PMDB-PB) – Senador Abdias
Nascimento, no dia 13 de maio gostaria de me solidarizar com V. Exª e
com toda a raça da qual V. Exª faz parte, dizendo que a esta raça nós,
brasileiros, devemos muito. Todos nós devemos estar conscientes de que
deve haver cada vez mais igualdade e mais espaço para ela. Juntos
haveremos de construir essa raça brasileira, que é a miscegenação de
todas elas. Muito obrigado.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) – Muito obrigado a V. Exª.
Continuo, Sr. Presidente:
Apesar de todas as dificuldades e
resistências, o Movimento encontrava também o apoio de alguns políticos
importantes. Dentre eles se destaca Leonel Brizola, responsável, como
Governador do Rio de Janeiro, pela mais séria e ousada experiência de
enfrentamento do racismo até hoje empreendida no plano do Estado: a
criação da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações
Afro-Brasileiras, da qual tive a honra de ser o primeiro titular.
Uma das reivindicações do Movimento Negro no
plano das políticas públicas tem sido a adoção da chamada “ação
afirmativa” – que eu prefiro designar como “ação compensatória” -,
objeto, nos últimos tempos, de algumas propostas no âmbito do
Legislativo, incluindo o Projeto de Lei do Senado nº 75, de 1997, de
minha autoria, atualmente tramitando nesta Casa. Trata-se este, na
verdade, de um assunto sobre o qual muito se fala – quase sempre contra –
mas do qual, geralmente, pouco se conhece.
“Ação afirmativa” ou “ação compensatória”, é,
pois, um instrumento, ou conjunto de instrumentos, utilizado para
promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso
à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o Estado, a
universidade e as empresas podem não apenas remediar a discriminação
passada e presente, mas também prevenir a discriminação futura, num
esforço para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação
igualitária de todos os cidadãos. Ao contrário do que costumavam afirmar
seus adversários, a ação compensatória recompensa o mérito e garante
que todos sejam incluídos e considerados com justiça ao se candidatarem a
empregos, matrículas ou contratos, independentemente de raça ou de
gênero. São seus propósitos específicos: 1) aumentar a participação de
pessoas qualificadas, pertencentes a segmentos historicamente
discriminados, em todos os níveis e áreas do mercado de trabalho,
reforçando suas oportunidades de serem contratadas e promovidas; 2)
ampliar as oportunidades educacionais dessas pessoas, particularmente no
que se refere à educação superior, expandir seus horizontes e
envolvê-las em áreas nas quais tradicionalmente não têm sido
representadas; 3) garantir a empresas de propriedade de pessoas desses
grupos oportunidades de estabelecer contratos com o governo, em âmbito
federal, estadual ou municipal, dos quais de outro modo estariam
excluídas.
A ação compensatória na área do emprego
implica o recrutamento ativo de mulheres e membros de grupos
historicamente discriminados, buscando-se candidatos além das redes
convencionais de relacionamento, tradicionalmente dominadas por homens
brancos. Ela estimula, por exemplo, o uso de anúncios públicos de
emprego para identificar candidatos em lugares em que os empregadores
geralmente não iriam procurá-los.
Na área educacional, as medidas de ação
compensatória adotadas em outros países, e que se pretende sejam
adotadas aqui, são muitas vezes acusadas de constituírem preferências
por alunos não-qualificados. Na verdade, porém, também nessa área o
objetivo é recompensar o mérito. Recentes estudos de escores obtidos em
testes e de notas tiradas no curso secundário – os padrões tradicionais e
presumivelmente “objetivos” para mensurar as qualificações de
estudantes – têm posto em questão a precisão desses instrumentos em
predizer o desempenho futuro de todos os alunos, particularmente de
mulheres e de membros de grupos discriminados. Poucos especialistas
sustentariam racionalmente que, por si sós, esses escores e médias sejam
capazes de medir objetivamente a capacidade e o potencial de um
indivíduo. Qual a experiência de vida do candidato? Que obstáculos ele
teve de superar? Quais são suas ambições e esperanças? Menos tangíveis
do que números, esses padrões são mais precisos em prever o futuro
desempenho educacional do que a origem familiar, herança ou outros
atributos do privilégio.
Além do falido argumento meritocrático, também
se costuma brandir contra a ação compensatória – como aconteceu nesta
própria Casa – a tese da inconstitucionalidade. Seria inconstitucional
estabelecer qualquer espécie de “discriminação positiva” – outro
sinônimo de ação afirmativa – porque isso feriria o princípio da
igualdade de todos perante a lei. A primeira resposta a esse argumento
vai contra o seu caráter eminentemente conservador. Como se não
tivéssemos a possibilidade, o direito, o dever, eu diria, de lutar por
mudanças nos dispositivos constitucionais que não nos interessam. Ou
como se a igualdade fosse apenas um princípio abstrato, e não algo a ser
implementado por meio de medidas concretas. A verdade, porém, é que
existem diversos precedentes jurídicos que abrem as portas à implantação
da ação compensatória em favor dos afro-descendentes no Brasil. A
igualdade de homens e mulheres perante a lei não impede, por exemplo,
que estas tenham direito de se aposentar com menor tempo de serviço, nem
que disponham de uma reserva de vagas nas listas de candidatura dos
partidos. Há também a proteção especial aos portadores de deficiência, a
famosa Lei dos Dois Terços – que estipulava uma preferência para
trabalhadores brasileiros no quadro funcional das empresas -, sem falar
no imposto de renda progressivo e na inversão do ônus da prova nas ações
movidas por empregados contra empregadores. Todos casos em que a
igualdade formal dá lugar à promoção da igualdade.
Vale ressaltar, neste ponto, que pelo menos
três convenções internacionais de que o Brasil é signatário – e que
portanto têm força de lei – contemplam a adoção de medidas
compensatórias. Uma delas é a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações
Unidas, cujo art. 1º, item 4, diz o seguinte: “Não serão consideradas
discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo
de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos
(…) que necessitem da proteção que possa ser necessária para
proporcionar(…) igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades
fundamentais (…).”
Teor semelhante tem o art. 2º da Convenção 111
da OIT – Organização Internacional do Trabalho, concernente à
discriminação em matéria de emprego e profissão, pelo qual cada
signatário “compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que
tenha por fim promover (…) a igualdade de oportunidades e de tratamento
em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda
discriminação nessa matéria”. E também o art. IV da Convenção Relativa à
Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, da UNESCO: “Os Estados
Partes (…) comprometem-se (…) a formular, desenvolver e aplicar uma
política nacional que vise a promover (…) a igualdade de oportunidade e
tratamento me matéria de ensino.”
Outra postura contrária vem dos que, dando
como exemplo a experiência de países socialistas, à ação compensatória
costumam contrapor as políticas públicas de combate à pobreza e aos
problemas a ela associados – as chamadas políticas redistributivas. Esse
argumento, em geral oriundo da Esquerda, é duplamente falacioso.
Primeiro porque ninguém, em sã consciência, poderia vislumbrar no
horizonte próximo uma revolução socialista no Brasil – condição
indispensável à adoção de reformas radicais como aquelas que
possibilitaram a alguns daqueles países não acabar com o racismo, mas
reduzir a um nível mínimo as desigualdades raciais (o que é diferente)
nas áreas do trabalho, da educação, da saúde e da moradia. A outra
falácia desse argumento é deixar implícito que se trata de opções
mutuamente excludentes – ou ação compensatória, ou políticas
redistributivas, quando, de fato, necessita-se de ambas. Com certeza, os
afro-brasileiros seriam, por sua inserção social, os grandes
beneficiários de quaisquer ações governamentais voltadas à melhoria das
condições de vida das grandes massas destituídas. E continuariam
precisando de proteção contra a discriminação, bem como de mecanismos
capazes de lhes assegurar a igualdade de oportunidades.
Em entrevista publicada semana passada pela
revista Veja, em que se discute a situação dos negros neste País, o
Presidente Fernando Henrique Cardoso disse não ser contrário ao sistema
de quotas, forma mais incisiva de ação compensatória, que constitui a
essência do meu projeto de lei. O Presidente foi além dessa declaração e
afirmou literalmente: “Havendo duas pessoas em condições iguais para
nomear para determinado cargo, sendo uma negra, eu nomearia a negra”.
Como é curioso, para dizer o mínimo, observar correligionários do
Presidente aqui no Senado manifestando idéias e atitudes absolutamente
contrárias às de seu suposto líder e utilizando, para isso, todo um
arsenal de argumentos ou intempestivos, ou equivocados, ou desinformados
– pois não quero acreditar que sejam maliciosos.
Ao mesmo tempo, pesquisa realizada pelo
prestigioso instituto de pesquisa Datafolha, e publicada à página 46 do
livro Racismo Cordial, revela não apenas que praticamente metade dos
brasileiros de todas as origens étnicas aprova a ação compensatória, mas
que essa aprovação chega a 52% entre aqueles que admitiram ter
preconceito em relação aos negros. Muito significativo em função da
cortina de desconhecimento que cerca o tema, esse resultado indica que o
País está mudando, e mais rapidamente do que se quer admitir. E esta
Casa, cujos membros têm o dever de acompanhar e até mesmo antecipar as
mudanças que o País quer e necessita, não pode ficar se ancorando em
velhos chavões para manter um estado de coisas que a maioria da
sociedade quer ver superado. Sabemos, eu e meus companheiros de luta,
que é árdua a batalha que temos pela frente, no confronto com o
reacionarismo, a ignorância e o atraso. Mas estamos dispostos a levar
nossa luta a todos os foros, nacionais e internacionais, e a conduzi-la,
como alguém já disse, “por todos os meios necessários”.
Assim, neste 13 de Maio, fazemo-nos presentes
nesta tribuna, não para comemorar, mas para denunciar uma vez mais a
mentira cívica que essa data representa, parte central de uma estratégia
mais ampla, elaborada com a finalidade de manter os negros no lugar que
eles dizem ser o nosso. A comunidade afro-brasileira, porém, já mostrou
claramente que não mais aceita a condição que nos querem impingir. Mais
uma prova disso foi dada na madrugada de hoje, quando o Instituto do
Negro Padre Batista, juntamente com dezenas de outras organizações,
realizou em São Paulo a segunda Marcha pela Democracia Racial,
desfraldando a bandeira da igualdade de oportunidades para os
afro-descendentes. Assim, ao mesmo tempo em que denuncia as injustiças
de que é vítima, nossa comunidade apresenta reivindicações consistentes e
viáveis para a solução dos seculares problemas que enfrenta.
Reivindicações, como a ação compensatória, capazes de contribuir para
que venhamos a concretizar, com o apoio de nossos aliados sinceros, a
segunda e verdadeira abolição.
Sr. Presidente, pulei vários trechos para abreviar meu pronunciamento, solicito que a publicação seja feita na íntegra.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
Axé!
Fonte: Senado | Secretaria-Geral da Mesa –
Secretaria de Taquigrafia e Secretaria de Ata | Secretaria de Informação
e Documentação – Subsecretaria de Informações.