Obscurantismo: mazela da incultura
Imaturidade psicológica torna o indivíduo presa fácil da superstição
Tasso Assunção*
Dentre os diversos fatos preocupantes verificados, sobretudo em sociedades culturalmente miseráveis como o Brasil, encontram-se as manifestações obscurantistas, ao que parece, cada vez mais frequentes nestes conturbados tempos de transformações sociais proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico.
Jamais o homem reuniu tanto conhecimento sobre si mesmo e, principalmente, sobre o ambiente e o cosmos, nunca antes a informação foi tão acessível nem transmitida tão rapidamente como nos dias atuais, mas, estranhamente, cresce a ameaça de retrocesso a nova época de domínio de absurdo obscurantismo.
A gravidade da situação se evidencia, por um lado, no recrudescimento da ação terrorista de sei-tas mergulhadas nas trevas de concepções xiitas e, por outro, em abomináveis manifestações racistas, na maioria das vezes contra negros e pobres, emitidas por indivíduos aparentemente de boa formação acadêmica.
Nessa conjuntura, não foi senão com grande perplexidade que deparei certo jovem – pasme-se, com pretensão a jornalista! – mencionar o método científico de modo capciosamente depreciativo, em defesa de um suposto “conhecimento bíblico”, como se soubesse o que isso significa, se é que tem algum significado.
A cena é trágica porque reflete uma mentalidade que concebe a ciência como uma espécie de religião que requeresse um ato de fé, enquanto se sabe que os enunciados científicos, coadunem-se ou não com nossos desejos, constituem-se de conclusões deduzidas de fatos demonstráveis, o que supõe rigoroso critério.
Obviamente, os cientistas também são passíveis de equívocos, quando as explicações aduzidas ainda se encontram na fase das hipóteses e eventuais lacunas remanescentes nos resultados das pesquisas são preenchidas, em caráter provisional, por interpretações que podem vir a ser reforma-das ou substituídas.
De qualquer forma, a validade dos conteúdos estabelecidos não se condiciona à vontade de quem quer que seja nem a interesses particulares, mas ao acerto de suas premissas, baseado em exaustiva observação e experimentação, que se estende à aplicação prática na medicina, nas comunicações, nos transportes etc.
Qualquer estudante de ensino médio sabe que a ciência desempenhou papel fundamental na libertação da sociedade do buraco negro em que havia caído na Idade Média, já que a democratização do saber permitiu o redirecionamento do poder então monopolizado pelos que se arvoravam em donos da verdade absoluta.
No entanto, a crescente complexidade do conhecimento científico o vem tornando inacessível ao senso comum, visto que quanto mais se aprofundam no saber mais os cientistas se afastam das massas e se assemelham a alquimistas medievais, que eram traficantes de magia e ocultismo dota-dos de injustificável poder.
Além disso, identificada com o sistema, a ciência passou a ser alvo frequente de uma percepção que a situa, ironicamente, como ferramenta de manipulação a serviço das elites políticas e econômicas, já que produtos alimentares, farmacêuticos ou eletrônicos, por exemplo, podem concorrer para a construção de fortunas.
Assim, no limbo em que se encontram os que transitam entre a ignorância e os benefícios proporcionados pelo avanço da ciência e da tecnologia, desestimula-se a já árdua tarefa do raciocínio lógico, enquanto prosperam indústrias bilionárias em torno de produtos e serviços avalizados unicamente pela superstição.
O curioso é que tais práticas – estas sim irmãs da magia e do ocultismo – não se afiguram tão maléficas quanto são, uma vez que o enriquecimento dos alquimistas contemporâneos se apresenta tolerável, desde que adornem seu charlatanismo, muitas vezes religioso, com o manto de explicações fáceis de entender.
Os que engarrafam efeito placebo e o vendem a preço de ouro, sobretudo ao revesti-lo de uma capa de sacralidade, não precisam contar com o suporte de princípios lógicos nem de dados sólidos, visto que é cômodo substituir fatos por ficção exatamente porque esta não se constitui tão enigmática quanto a ciência.
Um dos aspectos da postura implicada na opção por promessas fantasiosas é que se trata de uma maneira de desafiar o poder estabelecido, já que este guarda forte conotação negativa, de forma que qualquer um que o questione atrai simpatias e audiência, por mais absurdas e demagógicas que sejam suas posições.
Duvidar do que o "establishment" apresenta como correto é uma atitude desejável, mas que se deve acompanhar de apurado bom senso e criticidade, para que o indivíduo não se entregue cegamente nas mãos do primeiro autoproclamado iluminado que, bem ou mal intencionadamente, pretenda arrebatar as multidões.
Lamentavelmente existe uma forte tendência a se valorizar mais o carisma das pessoas que a qualidade de seus argumentos, situação em que se costuma deixar-se persuadir pela proposta que soe melhor tanto quanto se recusa a entender que a verdade nem sempre assume o aspecto mais atrativo ou agradável.
De mais a mais, não é por acaso que crenças e crendices assumem tamanha preponderância, uma vez que exercem a função de consolo psicológico, arrimo existencial, a que as pessoas se apegam para fugir da insuficiência interior, sem falar dos interesses econômicos e sociais implicados no culto a mitos e lendas.
O fato é que tanto o cético quanto o sectário, cada um no seu extremo, em geral não sabem do que estão falando, visto que se situam igualmente no campo das suposições, quando se trata de questões fundamentais, de modo que convém a ambos se aprofundarem na busca da informação e da verdade científica.
O problema é que, desprovido de maturidade intelectual e, mais ainda, carente de esclarecimento interior, o indivíduo se torna presa fácil da arrogância, incorre com frequência em ilações precipitadas, assume atitudes preconceituosas e, aferrado a convicções inconscientes, concorre para a perpetuação da ignorância.
O caso é que, quando uma criança nasce, não traz um idioma em atividade no cérebro, ou seja, chega ao mundo pura, inocente, incontaminada, com a consciência em estado natural, como um límpido espelho que apenas reflete, fielmente, os fatos que se lhe apresentam aos sentidos, tais como surgem, a cada momento.
Então, a necessidade de comunicação e de habilidade intelectual a leva à assimilação da linguagem, que carrega consigo não somente conhecimentos fatuais, técnicos, práticos, mas igualmente conteúdos ideológicos, inevitavelmente tendenciosos, que acabam por condicionar o indivíduo a determinada cosmovisão.
E é nesse processo que se envenena a mente da criança com a enganosa informação da existência de seres imaginários que, por mais privilegiados que sejam, pintados com as cores do sobrenatural, restringem-se ao campo das ideias, isto é, são entidades fictícias, cuja dissolução requererá sólida educação científica.
A questão é que, apesar de consistir apenas a base – necessária e indispensável – de uma formação cultural consistente, o conhecimento científico supõe o requisito da leitura, da investigação e da reflexão persistentes, missão que à esmagadora maioria, entregue à inércia psicológica, não convém nem interessa.
Ao se considerar, então, a necessidade de se avançar para além das fronteiras da ciência e mergulhar nas águas profundas da investigação epistemológica, descortina-se a extrema distância a que se encontra o senso comum da universalidade cognitiva imprescindível ao posicionamento lúcido ante a existência e o mundo.
De qualquer modo, especialmente nos estratos mais ilustrados e notavelmente nos países europeus mais desenvolvidos, é a evolução cultural que vem dissipando a névoa do obscurantismo e preservando a validade da perspectiva de que a espécie humana se mantenha na trajetória ascendente do processo civilizatório.
*Tasso Assunção é escritor e consultor em produção textual; membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras - AIL. (Artigo publicado originalmente em O Progresso, No 15.229, ano 45, em 8 de fevereiro de 2015.)
Imaturidade psicológica torna o indivíduo presa fácil da superstição
Tasso Assunção*
Dentre os diversos fatos preocupantes verificados, sobretudo em sociedades culturalmente miseráveis como o Brasil, encontram-se as manifestações obscurantistas, ao que parece, cada vez mais frequentes nestes conturbados tempos de transformações sociais proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico.
Jamais o homem reuniu tanto conhecimento sobre si mesmo e, principalmente, sobre o ambiente e o cosmos, nunca antes a informação foi tão acessível nem transmitida tão rapidamente como nos dias atuais, mas, estranhamente, cresce a ameaça de retrocesso a nova época de domínio de absurdo obscurantismo.
A gravidade da situação se evidencia, por um lado, no recrudescimento da ação terrorista de sei-tas mergulhadas nas trevas de concepções xiitas e, por outro, em abomináveis manifestações racistas, na maioria das vezes contra negros e pobres, emitidas por indivíduos aparentemente de boa formação acadêmica.
Nessa conjuntura, não foi senão com grande perplexidade que deparei certo jovem – pasme-se, com pretensão a jornalista! – mencionar o método científico de modo capciosamente depreciativo, em defesa de um suposto “conhecimento bíblico”, como se soubesse o que isso significa, se é que tem algum significado.
A cena é trágica porque reflete uma mentalidade que concebe a ciência como uma espécie de religião que requeresse um ato de fé, enquanto se sabe que os enunciados científicos, coadunem-se ou não com nossos desejos, constituem-se de conclusões deduzidas de fatos demonstráveis, o que supõe rigoroso critério.
Obviamente, os cientistas também são passíveis de equívocos, quando as explicações aduzidas ainda se encontram na fase das hipóteses e eventuais lacunas remanescentes nos resultados das pesquisas são preenchidas, em caráter provisional, por interpretações que podem vir a ser reforma-das ou substituídas.
De qualquer forma, a validade dos conteúdos estabelecidos não se condiciona à vontade de quem quer que seja nem a interesses particulares, mas ao acerto de suas premissas, baseado em exaustiva observação e experimentação, que se estende à aplicação prática na medicina, nas comunicações, nos transportes etc.
Qualquer estudante de ensino médio sabe que a ciência desempenhou papel fundamental na libertação da sociedade do buraco negro em que havia caído na Idade Média, já que a democratização do saber permitiu o redirecionamento do poder então monopolizado pelos que se arvoravam em donos da verdade absoluta.
No entanto, a crescente complexidade do conhecimento científico o vem tornando inacessível ao senso comum, visto que quanto mais se aprofundam no saber mais os cientistas se afastam das massas e se assemelham a alquimistas medievais, que eram traficantes de magia e ocultismo dota-dos de injustificável poder.
Além disso, identificada com o sistema, a ciência passou a ser alvo frequente de uma percepção que a situa, ironicamente, como ferramenta de manipulação a serviço das elites políticas e econômicas, já que produtos alimentares, farmacêuticos ou eletrônicos, por exemplo, podem concorrer para a construção de fortunas.
Assim, no limbo em que se encontram os que transitam entre a ignorância e os benefícios proporcionados pelo avanço da ciência e da tecnologia, desestimula-se a já árdua tarefa do raciocínio lógico, enquanto prosperam indústrias bilionárias em torno de produtos e serviços avalizados unicamente pela superstição.
O curioso é que tais práticas – estas sim irmãs da magia e do ocultismo – não se afiguram tão maléficas quanto são, uma vez que o enriquecimento dos alquimistas contemporâneos se apresenta tolerável, desde que adornem seu charlatanismo, muitas vezes religioso, com o manto de explicações fáceis de entender.
Os que engarrafam efeito placebo e o vendem a preço de ouro, sobretudo ao revesti-lo de uma capa de sacralidade, não precisam contar com o suporte de princípios lógicos nem de dados sólidos, visto que é cômodo substituir fatos por ficção exatamente porque esta não se constitui tão enigmática quanto a ciência.
Um dos aspectos da postura implicada na opção por promessas fantasiosas é que se trata de uma maneira de desafiar o poder estabelecido, já que este guarda forte conotação negativa, de forma que qualquer um que o questione atrai simpatias e audiência, por mais absurdas e demagógicas que sejam suas posições.
Duvidar do que o "establishment" apresenta como correto é uma atitude desejável, mas que se deve acompanhar de apurado bom senso e criticidade, para que o indivíduo não se entregue cegamente nas mãos do primeiro autoproclamado iluminado que, bem ou mal intencionadamente, pretenda arrebatar as multidões.
Lamentavelmente existe uma forte tendência a se valorizar mais o carisma das pessoas que a qualidade de seus argumentos, situação em que se costuma deixar-se persuadir pela proposta que soe melhor tanto quanto se recusa a entender que a verdade nem sempre assume o aspecto mais atrativo ou agradável.
De mais a mais, não é por acaso que crenças e crendices assumem tamanha preponderância, uma vez que exercem a função de consolo psicológico, arrimo existencial, a que as pessoas se apegam para fugir da insuficiência interior, sem falar dos interesses econômicos e sociais implicados no culto a mitos e lendas.
O fato é que tanto o cético quanto o sectário, cada um no seu extremo, em geral não sabem do que estão falando, visto que se situam igualmente no campo das suposições, quando se trata de questões fundamentais, de modo que convém a ambos se aprofundarem na busca da informação e da verdade científica.
O problema é que, desprovido de maturidade intelectual e, mais ainda, carente de esclarecimento interior, o indivíduo se torna presa fácil da arrogância, incorre com frequência em ilações precipitadas, assume atitudes preconceituosas e, aferrado a convicções inconscientes, concorre para a perpetuação da ignorância.
O caso é que, quando uma criança nasce, não traz um idioma em atividade no cérebro, ou seja, chega ao mundo pura, inocente, incontaminada, com a consciência em estado natural, como um límpido espelho que apenas reflete, fielmente, os fatos que se lhe apresentam aos sentidos, tais como surgem, a cada momento.
Então, a necessidade de comunicação e de habilidade intelectual a leva à assimilação da linguagem, que carrega consigo não somente conhecimentos fatuais, técnicos, práticos, mas igualmente conteúdos ideológicos, inevitavelmente tendenciosos, que acabam por condicionar o indivíduo a determinada cosmovisão.
E é nesse processo que se envenena a mente da criança com a enganosa informação da existência de seres imaginários que, por mais privilegiados que sejam, pintados com as cores do sobrenatural, restringem-se ao campo das ideias, isto é, são entidades fictícias, cuja dissolução requererá sólida educação científica.
A questão é que, apesar de consistir apenas a base – necessária e indispensável – de uma formação cultural consistente, o conhecimento científico supõe o requisito da leitura, da investigação e da reflexão persistentes, missão que à esmagadora maioria, entregue à inércia psicológica, não convém nem interessa.
Ao se considerar, então, a necessidade de se avançar para além das fronteiras da ciência e mergulhar nas águas profundas da investigação epistemológica, descortina-se a extrema distância a que se encontra o senso comum da universalidade cognitiva imprescindível ao posicionamento lúcido ante a existência e o mundo.
De qualquer modo, especialmente nos estratos mais ilustrados e notavelmente nos países europeus mais desenvolvidos, é a evolução cultural que vem dissipando a névoa do obscurantismo e preservando a validade da perspectiva de que a espécie humana se mantenha na trajetória ascendente do processo civilizatório.
*Tasso Assunção é escritor e consultor em produção textual; membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras - AIL. (Artigo publicado originalmente em O Progresso, No 15.229, ano 45, em 8 de fevereiro de 2015.)