ATÉ AONDE VAI A SUA DIALÉTICA?
Engana-se
quem considera muito fácil utilizar o método dialético, e que para
defender o marxismo basta ideologizar tudo o que se pretende transformar
em objeto de investigação. Somente através da dialética pode-se
perceber as contradições, seja no capitalismo, seja na educação sob este
modo de produção. Vejamos dois exemplos.
A
professora, graduada em filosofia, com mestrado em educação na UFRGS,
Lízia Helena Nagel é detentora de teses polêmicas. Em entrevista ao site
Germinal, em junho de 2013 ela determinou quatro processos históricos
que impedem a emancipação humana, são eles:
a) O dogma da fé relativo à
crença na democracia burguesa;
b) O entendimento de poder
descolado da noção de classes sociais;
c) A propaganda como
gerenciadora da formação do indivíduo consumista, competitivo, inculto, narciso;
d) A educação para a
tolerância como matéria básica do conteúdo e da prática escola!
E vai mais longe. Ela criticou o
silêncio sobre a atual escravidão branca em discursos sobre a injustiça
da escravidão negra e o discurso coeso escolar que encaminha a todos
para o empreendedorismo. A entrevista estava pautada na relação entre educação
e emancipação humana, tema constante nas obras marxianas. No entanto ela fez
críticas ao nível de discursos, majoritariamente, como eu quis chamar
atenção através do excerto acima. Fez ataques com as mesmas armas do inimigo,
mas estaria sendo condizente com o materialismo histórico e dialético?
Marx e Engels |
Para
NAGEL, Marx aprofundou e radicalizou suas teses materialistas a partir
de 1844 com os Manuscritos Econômicos e Filosóficos. A falta de leituras
dessas e outras obras fazem ditos marxistas defenderem bandeiras
burguesas, restringindo seus julgamentos a comportamentos democráticos
ou antidemocráticos.
Agora
um parêntese meu a partir desta entrevista. Em nota, Marx foi citado,
aonde declarou a essência de sua obra máxima que foi O Capital:
Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capitalista e as suas correspondentes relações de produção e circulação. Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este é o motivo por que tomei como principal ilustração de minha exposição teórica.
Neste
prefácio de 1867, Marx declarou que o modo de produção capitalista é
seu objeto de estudo nesta obra. Ora, O Capital não foi sua única obra.
Quando afirmamos que Marx estudou o capitalismo, estamos errando. Marx
estudava a formação social européia, em O Capital estudara o capitalismo
inglês. José Paulo Netto e Olavo de Carvalho erraram quando defenderam
que Marx estudava o capitalismo, já que Marx também estudou o feudalismo
europeu, os socialismos europeus, e outras temáticas européias: ele e
Engels deram muito pouca importância para outros lugares, e quando os
estudaram, foi em relações com a Europa para entender as suas
especificidades (Luis Vitale fez o mesmo quanto a América Latina, Caio
Prado Junior e Nelson Werneck Sodré quanto ao Brasil). Este modo de
produção era o mais desenvolvido e altamente civilizador, para ambos.
NAGEL pareceu não perceber que as defesas de bandeiras burguesas também
são recorrentes no marxismo originário, já que há
historicização/relativismo em seus estudos sobre a formação social
européia e a sua criação que foi o capitalismo. Sim, a dialética de
NAGEL foi até aí, durante a entrevista ela não percebeu o uso de
bandeiras burguesas enquanto contradição, já que no Brasil o capitalismo
se desenvolve em tempos diferentes.
Esta
falha é compreensível. Nossa posição ideológica muitas vezes nos impede
de entender tudo dialeticamente, ou de ser respeitador com aquilo que
detestamos, como sugeria Nietzsche. Karl Marx ao atacar Simon Bolívar
pouco usou a sua tão defendida dialética histórica, nem abstraiu as
lutas americanas pela independência em relação ao Império Espanhol em
termos de lutas de classe. [1]
O
outro exemplo é Paulo Ghirardelli Junior, que em “O que é pedagogia”,
defendeu a tese de que as pedagogias modernas são burguesas, todas elas
produtos do “mundo moderno”, que surgiu da decadência do mundo medieval e
feudal. Todas as pedagogias atuais são vertentes da pedagogia moderna. O
pioneiro desta pedagogia foi Martinho Lutero, passando por Comênio (um
dos mestres de Piaget) e Rousseau. No século XIX, na Alemanha, nasceu a
pedagogia herbartiana, que consistia em cinco passos (preparação,
apresentação, associação, generalização e aplicação). Esta pedagogia
passou a ser considerada nos Estados Unidos como tradicional e
antiquada. Opondo-se a pedagogia herbartiana, a pedagogia de Dewey foi
divulgada no mundo todo. Esta nova pedagogia também consistia em cinco
passos (atividade, problema, dados, hipótese, experimentação) e, por sua
vez, foi criticada por diversos intelectuais, entre eles, Gramsci,
Lênin, Moacir Gadotti, Dermeval Saviani e Newton Duarte.
Paulo
Ghirardelli Junior fez uma excelente historicização, portanto, das
tendências pedagógicas, apontando a pedagogia tradicional brasileira
como predominante até 1932 e mesclando idéias estadunidenses, alemãs e
jesuíticas; escolhendo como marco o ano de 1932, quando as teses da
Pedagogia Nova foram transmitidas no Brasil com a publicação do
“Manifesto dos pioneiros da educação nova”, assinado por intelectuais da
educação de diferentes campos políticos, do liberalismo até o
comunismo. Todas as pedagogias existentes durante a vigência do modo de
produção capitalista no Brasil são realmente burguesas? Ou a pedagogia
também é lugar de contradições, inclusive em termos de classes? Sim, há
referências marxistas no livro analisado aqui deste autor, mas fez falta
a dialética. Não basta regurgitar chavões de que a educação escolar se
limita a reprodução do capitalismo, parafrasear aleatoriamente frases de
Karl Marx! Fazer propaganda dos seus livros objetivamente aumentará os
lucros das editoras e livrarias, não indo além!
Apontamos
como antítese a Lízia Helena Nagel os próprios fundadores do marxismo
originário. E quem serviria de antítese as idéias ingênuas de Paulo
Ghirardelli? Moacir Gadotti, que em “Educação e poder. Introdução à
Pedagogia do Conflito”, propôs uma pedagogia a partir de suas
experiências em sala de aula, e por não defnir ainda uma nomenclatura, a
chamou provisoriamente de “pedagogia do conflito”. Usando o conceito de
ideologia, enquanto uma “falsa consciência”, se colocou como
“contra-ideológico”, dividindo este livro da seguinte forma: “Por uma
filosofia crítica da educação”, “Introdução à pedagogia do conflito” e
“Ideologia e contra-ideologia na educação brasileira contemporânea”.
Esta foi a tese central para o seu texto “Revisão crítica do papel do
pedagogo na atual sociedade brasileira”:
Tese central: a história da educação brasileira é a história da educação do colonizador. A pedagogia do colonizador forma gente submissa, obediente ao autoritarismo do colonizador. Nessa pedagogia, o educador tem por função policiar a educação para que não se desvie da ideologia do dominador.Numa pedagogia oposta à pedagogia do colonizador (que na falta de melhor expressão chamamos de pedagogia do conflito), o educador reassume a sua educação e seu papel eminentemente crítico: à contradição (opressor-oprimido, por exemplo) ele acrescenta a consciência da contradição, forma gente insubmissa, desobediente, capaz de assumir a sua autonomia e participar na construção de uma sociedade mais livre (GADOTTI, 1985, p. 53).
Neste livro, Gadotti propôs que uma
pedagogia do conflito deve ser elaborada no lugar de uma pedagogia do
diálogo e discordou da necessidade de pedagogia para o seu tempo, pois
no sentido clássico “pedagogia” significada a “condução de crianças”:
“’Conduzir as crianças’, hoje, é papel do motorista de ônibus escolar e
não do professor, do pedagogo”, portanto é uma noção inadequada. Se,
para Freire, a educação começa com a ignorância[2], para Gadotti, inicia
com a desobediência e o desrespeito, inclusive em relação as teorias de
educação existentes, principalmente contra a “escola ativa”, um modelo
trazido por especialistas estadunidenses, desde 1966, através de um
acordo entre o MEC e a United States Agency for International
Development (USAID). Gadotti fez, neste livro, elogios a pedagogia do
oprimido de Paulo Freire, a identificando com a mesma tese central que
defende, de que nenhuma pedagogia é neutra. No esforço de repensar a
educação, defendeu que as pedagogias centradas no estudante, ou
não-diretivas, como a pedagogia do diálogo, nada fizeram além de
esconder o problema principal da educação escolar brasileira. A tarefa
do pedagogo é, para Gadotti, essencialmente, incomodar, ativar conflitos
para a superação da educação do colonizador. A sala de aula é o lugar,
por excelência, da assunção das contradições inerentes a sociedade
dividida em classes sociais. Mais de uma vez concordando com Paulo
Freire, defendeu que a prática educativa deveria fundamentar-se em uma
determinada ética. Em uma visão dialética, chegou na mesma conclusão em
que chegou o professor Dermeval Saviani, ao analisar a relação
sociedade-escola: a educação escolar não reproduz integralmente a
sociedade da qual depende, em outras palavras, não existe sociedade,
entendendo a escola como parte de uma totalidade que é a sociedade,
totalmente conservadora ou libertadora. Por outro lado, contraria
frontalmente uma das teses de Saviani ao entender que a “transmissão de
uma cultura existente (ciência, valores, ideologia), [...] é a tarefa
conservadora da educação”, por isso, a tarefa de uma educação
revolucionária é a “criação de uma nova cultura”. Logo, o que diferencia
uma escola conservadora de uma escola progressista ou revolucionária,
para Gadotti, também é o conteúdo que ensina.
Embasado
em Gramsci e na mesma direção que Saviani, Gadotti defendeu que o
professor deveria ser um dirigente, por isso criticou as pedagogias não
diretivas que primam pelo espontaneísmo. Em um entendimento diverso de
Paulo Ghirardelli Junior, para quem a pedagogia dominante defende a
ideologia dominante, Gadotti caracterizou a educação como um espaço de
luta entre várias tendências e grupos, aonde nenhuma ideologia poderia
dominar plenamente. Em razão desta visão, admitiu que há espaço para
alguma autonomia dentro das escolas, ainda que elas sejam condicionadas
por legislação, normas, programas ou paradigmas. O conteúdo e o ensino
deveriam ser politizados, em uma pedagogia fundamentada na existência da
luta de classes, ao preocupar-se mais com o contexto aonde se ensina do
que com o conteúdo e com a forma. A escola deveria ser um local de
debates, aonde os estudantes e os docentes deveriam constituir um grupo
político, uma associação, pois a valorização da profissão de educador
implicaria diretamente em uma educação melhor. Gadotti, para quem o “ato
de desobediência [...] é eminentemente pedagógico”, afirmou, sobre a
relação ordem-desordem:
A educação é obra transformadora, criadora. Ora, para criar é necessário mudar, perturbar a ordem existente. Fazer progredir alguém significa modificá-lo. Por isso, a educação é um ato de desobediência e de desordem. Desordem em relação a uma ordem dada, uma pré-ordem. Uma educação autêntica re-ordena. E por essa razão que ela perturba, incomoda. É nessa dialética ordem-desordem que se opera o ato educativo, o crescimento espiritual do homem. Precisamos de certa incoerência para crescer. Educar-se é colocar em questão, reafirmar-se constantemente em relação ao humano, em vista do mais humano para o homem (GADOTTI, 1985, p. 89).
O mundo deve ser problematizado em suas contradições. A especificidade do ato da educação é a formação de consciência crítica:
Notas:
Uma docência limitada à transmissão de conhecimentos vira um supermercado de idéias. A pesquisa é essencial à própria docência. Entendo aqui por pesquisa o seu sentido original de busca, de constante inquietação, de dúvida. Um professor que transmitisse sempre o mesmo conteúdo, significa que ele cessou de buscar, instalando-se em verdades prontas, adquiridas, pré-fabricadas. Nesse sentido as Universidades (principalmente as particulares) têm pecado justamente por considerarem atividade escolar apenas as aulas dadas. Nós realmente não temos nenhuma tradição de pesquisa. Por isso somos culturalmente dependentes dos centros que produzem saber e não se contentam apenas em transmiti-lo. Não vejo possibilidade de separação entre o saber adquirido, o saber conquistado e o saber novo. Aqui também acuso a única tradição que é a tradição humanista da nossa universidade mais preocupada em transformar as consciências através de sermões, do verbo, do que pelo trabalho, pela pesquisa. Proponho uma metodologia diferente para a formação da consciência crítica: o trabalho, a produção. O crescimento da consciência não se dá na contemplação, na pura reflexão, mas no trabalho. É pela transformação do mundo que eu tomo consciência do mundo. O professor preocupado em “dar” essa consciência engana-se. A atitude paternalista do professor que quer ensinar a verdade, como se ele fosse o dono dela, querendo dar a consciência crítica como se ele fosse o único possuidor, só pode tornar o aluno impotente para o ato pedagógico, para aquisição dessa consciência crítica (GADOTTI, 1985, p. 91).
Tendo
em vista as considerações acima, entende-se melhor por que a base de
sua pedagogia é a incoerência, a desordem e a desobediência, enfim, a
dialética. São idéias que fazem parte de um todo, idéias centrais
desenvolvidas em várias das publicações do freirista Gadotti. Na
importância conferida a pesquisa e atualização constante do professor
está a proximidade mais explícita com o pensamento de Paulo Freire.
Sem
a dialética, a ciência histórica anda para trás. A educação, incluindo a
escolar, é uma causas complexas que entrelaçam-se no estágio atual de
nossa História[3]. Sendo assim, para finalizar, faço minhas as palavras
da professora Lízia Helena Nagel:
O marxista, para avançar em sua proposta social, em sua utopia emancipatória, tem de ter sensibilidade e coragem para conscientizar-se da atual redução, no indivíduo, da sua capacidade de estabelecer relações para além das fenomênicas dicotomias apreendidas espontaneamente. Precisa examinar, com rigor, as incongruências e incoerências (inclusive, as suas), ao invés de regurgitar chavões, reproduzindo a sociedade de consumo que faz da propaganda o exercício sistemático da negação das contradições.
Notas:
[1] Vale para os casos de lutas de libertação contra o
império espanhol na América, quando Simon Bolívar e outros caudilhos tiveram sua
importância histórica, a mesma análise realizada por Sodré sobre o Segundo
Império do Brasil, de circulação de elites no poder. Marx rejeitou em seu
verbete sobre Simon Bolívar qualquer interpretação dialética em qualquer evento
em que Bolívar participou.
[2]Uma ignorância que nunca é total, conforme Paulo
Freire, “A
educação tem caráter permanente. Não há seres educados e não educados. Estamos
todos nos educando. Existem graus de educação, mas estes não são absolutos. O
homem, por ser inacabado, incompleto, não sabe de maneira absoluta. Somente
Deus sabe de maneira absoluta. A sabedoria parte da ignorância. Não há
ignorantes absolutos. Se num grupo de camponeses conversamos sobre colheitas,
devemos ficar atentos para a possibilidade de eles saberem muito mais do que
nós. Se eles sabem selar um cavalo e sabem quando vai chover, se sabem semear,
etc., não podem ser ignorantes (durante a Idade Média, saber selar um cavalo
representava um alto nível técnico), o que lhes falta é um saber sistematizado
(FREIRE, 2011, p. 14)”.
[3] Noção de dialética influenciada por Nelson Werneck
Sodré, que em “Panorama do segundo império” teorizou: “As etapas sucessivas, no
entrelaçamento das causas complexas, marcavam um ritmo cada vez mais acelerado.
O império se desfazia, pouco a pouco, num processo de desagregação, por vezes
claríssimo, silencioso, opaco, obscuro, por vezes (SODRÉ, 1998, p. 311)”.
Referências bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. São Paulo:
Paz e terra, 2011.
GADOTTI, Moacir. Educação e poder. Introdução à
Pedagogia do Conflito. 6ª ed. São Paulo: Autores associados/Cortez, 1985.
JUNIOR, Paulo Ghirardelli. O que é pedagogia. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
MARX, Karl. Simón Bolívar por Karl Marx. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama
do segundo império. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1998.
Alvorada/RS, 11 de maio de 2014.
Rafael Freitas. Graduado
em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos
Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História
Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e
radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w.
|