REGIME DE DESPOVOAMENTO (Verbete)
A
chegada dos europeus para a América Latina provocou mudanças. A
principal alteração foi a transformação da vida para a morte, locais até
então povoados para semidesertos. A violência europeia foi contra os
negros, e também contra as sociedades originais americanas. A sociedade
incaica, por exemplo, às vésperas da invasão “ascendia a 10 milhões e
[...] em três séculos de domínio espanhol, desceu a um milhão”
(MARIÁTEGUI, 2010, p. 72). Isso significa dizer que houve uma profunda
interferência na nossa História com a chegada dos europeus.
Os conquistadores não se privaram de massacrar muitas pessoas, destruir cidades, templos e palácios e escravizar as sociedades originais na América. |
Essa
relação foi extremamente violenta, principalmente na região aonde
viviam os incas e os astecas. O seu desenvolvimento impôs um modelo
seguido em outras regiões de colonização, conhecido como regime de
despovoamento:
Quando Cortez e Pizarro pisam a terra nova o que se lhes depara é uma civilisação adeantada, com características definidas. Havia, naquelles dois pontos, em que o hespanhol surgiu, um agrupamento humano seguro do seu destino e cônscio da sua força. Para dominal-o e, sobre as ruínas dessa civilisação, edificar uma nova civilisação, a adventícia, explorando todos os recursos da conquista, seria necessária a lucta sem tréguas, a destruição implacável, o anniquilamento. O inca, como o azteca, jamais seria escravo do invasor, jamais seria assimilado pela sua fúria depredadora e cobiçosa. Para dobral-os, seria preciso vencel-os. E a penetração se escreveu, a ferro e fogo (SODRÉ, 1940, p. 21)
Os
europeus aqui vieram como invasores. Não vieram convidados via pacto
colonial, ou qualquer nome que seja dado a algum acordo em condições
igualitárias. O despovoamento em forma de regime de colonização
representou um atraso histórico para a América, um regime incapaz de
repetir as relações de trabalho que vicejavam na metrópole, pois não
havia a necessária compreensão das economias americanas pelos europeus.
Os negros vieram para diminuir a carência de população humana, e por
conseqüência, de mão de obra na América. Os europeus promoveram mortes
em massa das populações indígenas, já que nem todos resistiram com a
audácia dos mapuches. A consolidação da mão de obra escravizada negra
comprova o genocídio indígena, o despovoamento da América Latina. A
História nos mostra que nenhum ser humano é adaptável ao trabalho
escravo, seja negro, indígena, europeu. Na América, desenvolveu-se de
modo desigual, um governo europeu altamente desumano para a sua
população autóctone. Tamanha desumanidade obrigou o fim do trabalho
escravo como mão de obra predominante através de abolições, sem as
transições econômicas ocorridas na Europa. Os europeus governaram
despovoando:
A prática de extermínio da população indígena e de destruição de suas instituições- muitas vezes em contraste com leis e providências da metrópole- empobrecia e dessangrava o fabuloso país ganho pelos conquistadores para o rei da Espanha, numa medida tal que esses não eram capazes de perceber e avaliar. Formulando um princípio da economia de sua época, um estadista sul-americano do século 19 devia mais tarde dizer, impressionado pelo espetáculo de um continente semideserto: “Governar é povoar”. O colonizador espanhol, infinitamente afastado desse critério, implantou no Peru um regime de despovoamento (MARIÁTEGUI, 2010, p73).
Qual
foi a conseqüência deste regime de despovoamento? Entre a tara feudal e
a tara escravista, nas regiões aonde havia modo de produção, como no
Peru, aconteceu a desorganização através do extermínio de população
autóctone. Um novo modo de produção surgia após a importação de mão de
obra, africanos escravizados. Os indígenas que cultivavam uma economia
coletora, nômade, resistiram com mais êxito. O regime de despovoamento
não permitiu a repetição, em lugar algum da América Latina, do modo de
produção feudal, que foi exclusivo da Europa. Produziu a tradição
guerrilheira, viva até hoje. Produziu o racismo.A divisão em classes
sociais como forma predominante de organização social em toda a América.
Uma luta distribuída pela América Latina de organizar-se de um jeito
análogo ao que José Carlos Mariátegui chamou de “comunismo incaico- que
não pode ser negado nem diminuído por ter se desenvolvido sob o regime
autocrático dos incas” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 71).
Serve
como dica: quando os livros de História conservadores caracterizam o
povoamento de qualquer lugar da América reduzindo esta lorota a vinda
dos civilizados europeus, estão escondendo o concomitante regime de
despovoamento. Por sorte, através da História, a verdade poderá vir a
tona.
REFERÊNCIAS
CASAS,
Frei Bartolomé de las. Brevíssima
relação da destruição das índias. O paraíso destruído. A sangrenta
história da conquista da América espanhola. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1984
HOBSBAWM,
Eric. Era dos extremos. O breve século XX 1914- 1991. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995
.
KOSHIBA,
Luiz. O índio e a conquista portuguesa. 5 ª ed. São Paulo: Atual, 1994.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. 2 ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4 ª Ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SCHWARTZ, Stuart B,; LOCKART, James. América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
SODRÉ, Nelson Werneck Sodré. História da literatura brasileira. Seus fundamentos econômicos. 2 ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.
VITALE, Luis. Historia social comparada de los pueblos de America Latina volume I Pueblos originários y colônia. Chile: Atali, 1997.
Rafael Freitas. Graduado
em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos
Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História
Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no jornal "A Folha" de Alvorada, RS.
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