“Eles não sabem o que fazem”
Magali Cunha, em O Globo
Um
dos testemunhos mais marcantes de evangélicos brasileiros que sofreram a
repressão da ditadura militar é o de Manoel da Conceição Santos.
Nascido em 1935, no interior do Maranhão, ele está entre os
trabalhadores rurais que sofrem nas mãos dos donos de terras. Tornou-se
membro da Igreja Assembleia de Deus, inspirado pela vida comunitária, a
solidariedade e a valorização dos pequenos. Logo se tornou professor da
Escola Bíblica Dominical e auxiliar do pastor. Também aprendeu com o
Movimento de Educação de Base (MEB) sobre o sentido das injustiças que
sofria e sobre seus direitos como trabalhador. Por isso, exerceu sua
vocação cristã fundando o sindicato dos trabalhadores rurais em
Pindaré-Mirim. Manoel se tornou um grande líder camponês do Maranhão.
Com
o golpe civil-militar de 1964 veio a perseguição. Em 1968, policiais
chegaram atirando em uma reunião no sindicato e Manoel foi ferido na
perna direita. Depois de seis dias na prisão, sem tratamento, parte da
perna gangrenou e teve que ser amputada. Sindicalistas e outros
militantes levantaram recursos que garantiram o tratamento e a colocação
de uma prótese, em São Paulo. Livre, retornou a Pindaré e à causa da
justiça. Preso novamente, foi sequestrado por agentes do DOI-CODI e
levado para o Rio de Janeiro. Na “antessala do inferno” do quartel da
Tijuca (nome dado pelos próprios agentes), a perna mecânica foi
arrancada e ele foi colocado nu na “geladeira”, a solitária, onde era
tratado literalmente a pão e água e torturado. Entre idas e vindas ao
hospital para ser mantido vivo, além das práticas convencionais como
choque elétrico, pau de arara e espancamento, o sindicalista pentecostal
foi pendurado ao teto e teve o órgão sexual preso por um prego em cima
de uma mesa. Manoel só saiu vivo dali para ser julgado, graças à
campanha feita no Brasil e no exterior contra o seu sofrimento. Igrejas
católicas e evangélicas da Europa e dos Estados Unidos protestaram
contra a prisão e desaparecimento do sindicalista, enviando cartas ao
Presidente Médici.
Em
1972, Manoel foi condenado e cumpriu três anos de prisão. Quando
libertado, foi hospitalizado em São Paulo, com a ajuda de D. Aloísio
Lorscheider, D. Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime
Wright. Por causa da tortura, o homem urinava através de sonda e ficou
impotente por anos. Meses depois, a casa onde Manoel estava foi invadida
por policiais, que o levaram para o DEOPS, onde sofreu novas torturas.
Na ocasião, o Papa Paulo VI enviou telegrama ao Presidente Geisel
exigindo a libertação do sindicalista evangélico. No final de 1975, ele
foi finalmente solto e teve o exílio como salvação. Retornou ao Brasil
com a anistia de 1979. Aos 80 anos, Manoel da Conceição continua dando
testemunho de sua vida e de sua fé no Deus da verdade e da justiça.
Ao
assistir às cenas e ler postagens em mídias sociais referentes às
manifestações políticas deste 15 de março, não pude deixar de pensar em
Manoel da Conceição e nos tantos outros como ele. Cristãos que trazem na
pele e na alma marcas da luta pela democracia e pela justiça. Como se
sentem ao verem os pedidos por intervenção militar e volta da ditadura
que ecoaram clara, nítida e fortemente entre as multidões? E a exaltação
àqueles que prestam culto a esse terrível passado recente? Imagino que
estejam repetindo a oração de Jesus, que também foi torturado: “Pai,
perdoa-os, porque não sabem o que fazem”.