TEXTO-AULA DIDÁTICO-PEDAGÓGICO:
OBSCURANTISMO NO SÉCULO XXI – ANÁLISE, CRÍTICA E PROPOSIÇÕES
Autor: Professor Negreiros, Deuzimar Menezes
Formato: Aula-expositiva
dialógica em primeira pessoa
Tema: As raízes e os mecanismos do obscurantismo intelectual
contemporâneo e estratégias de resistência epistemológica e política.
INTRODUÇÃO:
À Guisa de Antelóquio – O PARADOXO DO SÉCULO
Vivemos o paradoxo mais perverso da história humana: nunca tivemos
tanto acesso ao conhecimento e nunca estivemos tão vulneráveis à ignorância
organizada. Enquanto a ciência desvenda o genoma, simula
buracos negros e cria inteligências artificiais, uma parte significativa da
população global retrocede a estágios pré-críticos de pensamento. Não se trata
de mera falta de informação. Trata-se de um projeto
político-epistemológico que substitui a dúvida metódica
pela certeza dogmática, a evidência pelo feeling/sentimento, a complexidade
pelo maniqueísmo.
Hoje, diante de vocês, não venho como portador de verdades
absolutas, mas como cérebro em ato de escrita que se recusa a
silenciar. Escrevo a partir das feridas abertas da democracia, das cicatrizes
deixadas pelo negacionismo científico e do fogo ainda ardente dos livros
queimados — sim, eles continuam sendo queimados, mesmo que digitalmente.
1. AS RAÍZES DO OBSCURANTISMO CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE
TRANSDISCIPLINAR
1.1.
A CRISE DA RAZÃO INSTRUMENTAL
O século XX nos deixou um legado ambíguo: a razão que prometia
emancipação tornou-se instrumento de dominação (Horkheimer, Adorno). A ciência
esvaziada de ética gerou monstros: bombas atômicas,
alterações climáticas irreversíveis, algoritmos que controlam desejos. A
desilusão com a promessa iluminista abriu espaço para o ressentimento
epistemológico — se a razão nos trouxe até aqui, voltemos
ao mito, ao instinto, ao líder salvador.
1.2
A ECONOMIA POLÍTICA DA IGNORÂNCIA
A ignorância não é acidental; é commodity/mercadoria (Proctor
& Schiebinger, 2008). Think tanks financiados por corporações produzem
dúvidas sobre mudanças climáticas. Plataformas digitais monetizam a indignação.
A desinformação
vale mais do que a informação no mercado da atenção.
Enquanto isso, a educação pública é sistematicamente desinvestida — não por
incompetência, mas por projeto.
1.3
A NEUROPOLÍTICA DO MEDO
Nosso cérebro límbico — herança evolutiva — é hackeado por
algoritmos que exploram viéses cognitivos:
i.
Viés de confirmação: buscamos o que confirma nossas crenças;
ii.
Efeito Dunning-Kruger: quanto menos sabemos, mais
confiantes somos;
iii.
Pensamento tribal: "nós contra eles" como mecanismo de identidade.
A extrema-direita não inventou esses mecanismos; aprendeu a
industrializá-los.
1.4
A ESPIRITUALIDADE DO CAPITALISMO TARDIO
O neoliberalismo não é
apenas economia; é teologia [da
prosperidade, do domínio] (Harvey, 2005). Seu dogma: o
mercado resolve tudo. Seu inferno: a dependência do Estado. Seus santos: os
empreendedores. Seus demônios: os "privilegiados" que "vivem às
custas dos outros". Nesse caldo, o fascismo não é acidente, é sintoma —
a metástase de um sistema que substitui o bem comum pelo sucesso individual.
2/OS MECANISMOS DE FUNCIONAMENTO: COMO SE PRODUZ O
OBSCURANTISMO
Mecanismo
1: A EPISTEMOLOGIA DO FEELING/SENTIMENTO
"Eu sinto, logo é verdade". A experiência subjetiva
substitui a evidência. Quando um líder diz "tenho um feeling" sobre
tratamentos médicos ou mudanças climáticas, está sacralizando a
ignorância. É o anti-Iluminismo: não pense, sinta; não
questione, obedeça.
Mecanismo
2: A INFANTILIZAÇÃO DO PÚBLICO
A comunicação política tornou-se pedagogia do
ódio. Frases curtas, repetições exaustivas, inimigos claros,
soluções simples. O cidadão é tratado como criança irritadiça — e muitos
aceitam esse lugar, porque a complexidade cansa.
Mecanismo
3: A CORROSÃO DA LINGUAGEM
Palavras perdem significado. "Liberdade" vira direito de
não usar máscara. "Patriotismo" vira culto a símbolos.
"Deus" vira garoto-propaganda de projetos de poder. Quando a
linguagem definha, o pensamento crítico definha junto.
Mecanismo
4: A NOSTALGIA FABRICADA
Um passado que nunca existiu é vendido como paraíso perdido.
A saudade
do futuro roubado é redirecionada para um passado
idealizado. Enquanto isso, o presente é esvaziado de possibilidades
transformadoras.
3/O CASO BRASILEIRO: O FASCINAZISMO BOLSONARISTA COMO
LABORATÓRIO
Analiso aqui não como observador neutro, mas como cérebro
brasileiro em estado de alerta máximo. O bolsonarismo não é
cópia; é inovação perversa no obscurantismo:
3.1
A ALQUIMIA DO ÓDIO
Transformou:
i.
Educação em doutrinação;
ii.
Ciência em opinião;
iii.
Memória em esquecimento;
iv.
Luto em fraude;
v.
Vida em estatística.
3.2
A TEOLOGIA DA PROSPERIDADE [do domínio] ARMADA
Deus português, Bíblia americana, fuzil israelense. A trindade
necropolítica que justifica:
i.
A boiada passando sobre direitos indígenas;
ii.
O desmate como "progresso";
iii.
A bala como argumento.
3.3
O CULTURA DO MARTÍRIO REVERSO
Os opressores se apresentam como vítimas. Os censores choram
"censura". Os que incitam violência gritam "perseguição". É
a psicopatia
política institucionalizada.
4/PROPOSIÇÕES CORRETIVAS: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA
EPISTEMOLÓGICA
Não basta denunciar; é preciso construir. Eis minhas proposições,
fruto de um cérebro que se recusa a parar de esperançar:
PROPOSIÇÃO
1: RECONSTRUIR A EDUCAÇÃO COMO ATO POLÍTICO-RADICAL
i.
Educação não como transmissão, mas como problematização (Freire
vivo!)
ii.
Currículos transdisciplinares que
conectam física a filosofia, biologia a ética;
iii.
Formação docente como formação de intelectuais orgânicos;
iv.
Escolas como territórios de democracia radical — onde
se aprende discordando.
PROPOSIÇÃO
2: CRIAR ECOLOGIAS DE SABERES
i.
Superar a hierarquia entre conhecimento científico e saberes
tradicionais;
ii.
Fóruns permanentes de diálogo entre cientistas, indígenas,
quilombolas, artistas;
iii.
Políticas públicas baseadas em evidências, mas informadas por
saberes plurais.
PROPOSIÇÃO
3: DESINTOXICAÇÃO DIGITAL COLETIVA
i.
Alfabetização midiática como disciplina obrigatória;
ii.
Cooperativas de plataformas — redes sociais
não-extrativistas;
iii.
Direito à desconexão — resistência à economia da atenção.
PROPOSIÇÃO
4: RECUPERAR A LINGUAGEM COMO CAMPO DE BATALHA
i.
Glossários públicos de reconceitualização —
redefinir democracia, liberdade, pátria;
ii.
Poesia como resistência — a beleza como antídoto ao
discurso de ódio;
iii.
Tradução militante — tornar acessível o conhecimento complexo.
PROPOSIÇÃO
5: CONSTITUIR REDES INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO EPISTÊMICA
i.
Alianças Sul-Sul de pesquisadores sob ataque;
ii.
Sistemas alternativos de revisão por pares fora do
circuito comercial;
iii.
Bolsa-refúgio para intelectuais perseguidos.
5. COM QUEM CONTAR? A GEOGRAFIA DA ESPERANÇA
5.1
OS SUJEITOS HISTÓRICOS EMERGENTES
i.
Juventude climática que processa governos;
ii.
Mulheres indígenas defendendo território-corpo-terra;
iii.
Cientistas-militantes que saem dos laboratórios
para as ruas;
iv.
Artistas que recusam o entretenimento vazio;
v.
Professores que ensinam apesar de tudo.
5.2
AS INSTITUIÇÕES A RECONQUISTAR
i.
Universidades públicas como espaços de pensamento
livre;
ii.
Sindicatos como organizadores da esperança;
iii.
Mídias comunitárias como contra-narrativa;
iv.
Sistema de Justiça como último dique contra a barbárie.
5.3
AS ALIANÇAS NECESSÁRIAS
i.
Frente ampla epistêmica — da academia às periferias;
ii.
Internacionalismo solidário — o obscurantismo é global,
a resistência também;
iii.
Gerações em diálogo — os que viram fascismos anteriores e os que herdam seu
legado.
À GUISA DE CONCLUSÃO: UM MANIFESTO DO CÉREBRO QUE RESISTE
Concluo esta aula como comecei: como cérebro em
ato de escrita. Um cérebro que sabe:
i.
Que pensar dói — exige desapego de certezas,
confronto com a complexidade;
ii.
Que dizer a verdade é perigoso — os donos do
poder preferem confortáveis mentiras;
iii.
Que defender a vida é radical — num sistema que
lucra com a morte.
Mas este cérebro também sabe:
i.
Que a ignorância não é invencível — ela é frágil,
porque tem medo da pergunta;
ii.
Que a beleza é arma — uma poesia, um teorema, uma
canção podem desarmar ódios;
iii.
Que a esperança é verbo — não sentimento, mas
ação persistente.
Não repetiremos os anos 1930. 1920.
1910. Anos 60/70. Não porque o perigo seja menor, mas porque temos suas lições
escritas na carne da história. Temos Auschwitz como advertência. Temos Marielle
como promessa. Temos a Amazônia como prova de que ainda há vida para defender.
Meu cérebro, hoje, escreve para seu cérebro. Para dizer: nenhum
obscurantismo dura para sempre. Porque por trás das trevas, há
sempre um fósforo, uma palavra, um gesto de solidariedade pronto a acender.
A aula termina. A luta continua. Pensemos
juntos. Lutemos juntos. Prevaleçamos juntos.
FONTES PESQUISADAS/CONSULTADAS (BASE INTELECTUAL DESTA
REFLEXÃO)
1.
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do
Esclarecimento. 1947.
2.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 1968.
3.
PROCTOR, Robert & SCHIEBINGER, Londa. Agnotologia:
A Fabricação da Ignorância. 2008.
4.
HARVEY, David. Breve História do Neoliberalismo. 2005.
5.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 2003.
6.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias
do Sul. 2010.
7.
KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque. 2007.
8.
DAVIS, Angela. A Liberdade é Uma Luta Constante. 2015.
9.
FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. 1984.
10. QUIJANO,
Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina.
2000.
11. Relatórios do
IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
12. Pesquisas do
Digital Democracy Institute sobre desinformação.
13. Documentos do
Tribunal Penal Internacional sobre crimes ambientais.
14. Produções do
movimento Extinction Rebellion.
15. Articulações
da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) durante
a pandemia.
Este texto-aula é, ele mesmo, um ato de resistência epistêmica.
Que sirva não como ponto final, mas como vírgula — pausa para respirar antes da
próxima frase da história que, juntos, ainda podemos reescrever.
Negreiros Deuzimar Menezes
Cérebro em ato, professor em luta, escrevente consciente.