quinta-feira, 26 de março de 2015

ISSO E' VERDADE

Empreiteiras já roubavam na ditadura

Quem faz o orçamento são as empreiteiras – Adib Jatene.


O professor Pedro Henrique Pedreira Campos. / UFRRJ
Numa singela colaboração ao implacável Dr Moro, aquele que que só pega tucano morto, amiga navegante Marília sugere a leitura dessa importante entrevista:

“PAGAMENTO DE PROPINA NA PETROBRAS TRANSCENDE O PT E O PSDB”


Nem durante o Governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, como disse a presidenta Dilma, nem no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, como afirmou o delator da Lava Jato Pedro Barusco. Nenhum dos dois partidos foi pioneiro quando o assunto é corrupção na Petrobras, segundo Pedro Henrique Pedreira Campos, professor do departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).


Campos é autor do livro ‘Estranhas Catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar’ (Editora da UFF, 2014), que mostra como as mesmas construtoras que hoje estão no banco dos réus da operação Lava Jato já pagavam propinas e se organizavam em cartéis durante o regime militar. E até antes.

O título, ele explica, é uma referência a “Vai Passar”, gravada por Chico Buarque em 1994, que cita as “estranhas catedrais” erguidas no país das “tenebrosas transações”.


Pergunta. Com a Lava Jato há um debate sobre a origem da corrupção na Petrobras. Quando começou a corrupção na estatal?
Resposta. Existe um jogo de empurra para ver de quem é a culpa, e isso fica muito à mercê dos conflitos políticos atuais. O problema transcende as principais siglas partidárias, PSDB e PT. A prática de pagamento de propina na Petrobras vai além disso. Pode ser que tenha surgido no governo do FHC e do Lula um esquema para financiamento de campanha. Este tipo específico de procedimento talvez tenha sido criado nestes governos, com o envolvimento de diretores da estatal e repasse para partidos. Mas isso é apenas um indicativo de quão incrustadas na Petrobras estão estas construtoras. Muitas dessas empresas prestam serviço para a estatal desde 1953, e existem registros de que essas práticas ilegais já existiam nesta época.


P. A corrupção é a exceção ou a regra no mercado das construtoras?
R. A impressão que tenho, e temos indícios disso, é de que a prática de cartel é institucionalizada no mercado de obras públicas. As vezes existem conflitos, mas o que impera é o acordo, os empresários não querem uma luta fratricida, porque isso reduziria as taxas de lucro deles, então eles tentam dividir os serviços. E isso remonta há muito tempo, desde a década de 50, quando o mercado de obras publicas no Brasil começa a se firmar.


P. Qual era a situação das grandes construtoras antes ditadura?
R. Na segunda metade da década de 50, com a construção de Brasília no Governo de Juscelino Kubitschek e a as obras de infraestrutura rodoviária, as empresas começaram a prosperar. Antes de JK elas tinham apenas alcance local e regional: eram empreiteiras mineiras, paulistas e cariocas que realizavam obras em seus respectivos Estados. Naquele período elas não tinham sequer o domínio sobre técnicas para obras hidrelétricas, por exemplo.


P. Como era a relação das empreiteiras com os militares?
R. Elas foram sócias da ditadura. Nisso a Camargo Corrêa se destaca. O dono era muito próximo do regime, e ela financiou a Operação Bandeirante, que perseguiu militantes de esquerda no país. As empreiteiras tiveram uma participação importante no golpe de 1964, que foi um golpe civil-militar. Várias associações de empresários foram antessalas do golpe, que contou com uma participação intensa do setor de construção. E depois elas colheram os frutos deste apoio.


P. Qual construtora que mais cresceu durante a ditadura?
R. A Odebrecht, que hoje é uma gigante do mercado, era muito periférica antes da ditadura. Era uma pequena empreiteira nordestina, bastante secundária. Não participou das obras do plano de metas do JK, nem das rodovias, mas ela cresce de maneira impressionante durante o período de exceção. Em grande parte porque ela tinha uma presença muito forte junto à Petrobras, que na época tinha muitas obras no Nordeste. Quando a estatal começou a crescer, a Odebrecht foi junto. E à partir daí ela conseguiu o contrato do aeroporto do Galeão (RJ).


P. O que deu força às empreiteiras brasileiras na ditadura?
R. O decreto presidencial 64.345 de 1969 estabeleceu uma reserva de mercado paras empresas brasileiras, que caiu como uma luva para elas, que não tinham como concorrer com as estrangeiras. [Segundo o texto, “só poderão contratar a prestação de serviços de consultoria técnica e de Engenharia com empresas estrangeiras nos casos em que não houver empresa nacional devidamente capacitada”] O decreto facilita a formação de cartel entre elas, a aumentou muito o volume de recursos e obras que as construtoras passaram a obter de contatos públicos. Com esse dinheiro elas vão adquirir tecnologia para realizar outras obras, como aeroportos supersônicos, as usinas nucleares, etc. Com o decreto elas passaram a tocar as obras do chamado ‘milagre econômico’ da ditadura, o que permitiu que elas obtivessem lucros altíssimos e aprofundassem as práticas de cartel e corrupção no Governo.


P. Não havia investigação destas práticas irregulares na ditadura?
R. [Essas práticas] não eram coibidas. Muitas vezes obras eram contratadas sem concorrência, isso era muito comum na época. As investigações sobre práticas de cartel eram raras, os mecanismos de controle estavam amordaçados, não havia Ministério Público e a imprensa era censurada.


P. Existe algum indício de que durante a ditadura haviam pagamentos de propina?
R. Naquele período vinham menos denúncias a público, mas isso não quer dizer que não houvesse corrupção. Há indícios que havia um sistema de propina institucionalizado naquela época. Documentos do Serviço Nacional de Informação indicam que haviam pagamentos irregulares, e que alguns agentes públicos seriam notórios recebedores de propina e comissões. Isso era muito comum e corriqueiro no período. Com o fim da ditadura isso passa a vir mais a público.

P. Com a democratização, o modus operandi das empreiteiras mudou?
R. Houve uma mudança bastante pronunciada, que segue a mudança da organização do Estado. Durante a ditadura as atenções das empreiteiras estavam voltadas para o poder Executivo – ministérios e empresas estatais, principalmente. E quando o país se abre para a democracia a correlação de forças muda, e elas tentam se adaptar. Elas passam a atuar junto às bancadas e aos partidos políticos, porque o Legislativo ganha força. Elas passam a ser ativas para obter emendas parlamentares e verba para obras. Existe inclusive no Congresso uma bancada da infraestrutura, e eles são bastante afinados com o desenvolvimento das empresas.


P. Existe um mito de que durante a ditadura a corrupção era menor. Isso se comprova factualmente?
R. Eu diria que a corrupção era mais difundida e generalizada, pela falta de mecanismos fortes de fiscalização.


P. As empreiteiras ainda influenciam as decisões do Estado?
R. Acho que sim, elas são muito poderosas. Estamos vivendo um momento singular, elas estão bastante acuadas, mas elas são muito importantes no Parlamento, no processo eleitoral e para pautar as políticas públicas. Vimos no governo Lula a retomada de vários projetos que foram concebidos durante a ditadura, como a transposição do rio São Francisco e a construção de Belo Monte, por exemplo. E isso remete ao poder que esses empresários continuam tendo no Governo. “Quem faz o orçamento da republica são as empreiteiras”, disso o então ministro da Saúde Adib Jatene em 1993. O fato é que os empresários fizeram uma transicão de muito sucesso para a democracia. Elas haviam se apropriado de parte do Estado durante a ditadura, e continuam lá na democracia.

P. Os acordos de leniência que o Governo quer assinar com as empresas da Lava Jato são uma ferramenta que pode mudar a maneira das empreiteiras atuarem?
R. Historicamente elas já estiveram envolvidas em vários escândalos. E a lógica da política brasileira é colocar panos quentes e continuar adiante. A linha do governo é clara: estão na defesa declarada dessas empresas. Para mudar a relação do Estado com as empresas no Brasil seria preciso uma mudança profunda, repensando o sistema de financiamento eleitoral, e criando alternativas às empreiteiras privadas no país.

do Conversa Afiada

“Pela primeira vez, os corruptores estão pagando”

Sebastião Salgado: “Pela 1ª vez, os que estão no governo não são os mesmos que dominam os meios de comunicação”

março 25, 2015 09:35
Sebastião Salgado: “Pela 1ª vez, os que estão no governo não são os mesmos que dominam os meios de comunicação”
Para o fotógrafo, esse é o motivo pelo qual hoje há informações sobre corrupção; “Pela primeira vez, os corruptores estão pagando”
Por Redação
Pouco antes de uma palestra em Belo Horizonte no início deste mês, o fotógrafo Sebastião Salgado, de 71 anos, afirmou que os casos de corrupção que estão vindo à tona nos últimos tempos se devem ao fato de que o governo federal não é mais comandado por pessoas ligadas aos monopólios de comunicação. As informações são da CartaCapital.
“Pela primeira vez, os que estão no governo não são os mesmos que dominam os meios de comunicação e por isso há informação sobre corrupção. Pela primeira vez, os corruptores estão pagando. Antes, só alguns intermediários eram acusados de corrupção”, falou em entrevista, momentos antes de participar do projeto Sempre um Papo, que leva escritores e artistas para conversarem com o público na capital mineira.
“O Brasil já é um grande País e está cada vez mais sério”, completou.
No encontro, Salgado, que com sua esposa mantêm o Instituto Terra – responsável pelo plantio de mais 2 milhões de árvores em Aimorés, no interior de Minas Gerais – falou também sobre a questão ambiental no país.
“Matamos os nossos rios e as nossas florestas, e não há partido ou político que vá resolver isso sozinho”, afirmou, explicando ainda os motivos que, na sua opinião, levaram à situação atual de falta d’água.
“Depois do segundo governo do PT, há um acesso de 40 milhões de pessoas à classe média. Isso nunca aconteceu e é positivo, mas gera demanda de água”, analisou.
Foto: Cristine Rochol/PMPA

Os norte-americanos agem na Venezuela de acordo com sua estratégia de 'mudança de regime'

Por trás das sanções da Casa Branca contra a Venezuela

Os norte-americanos agem na Venezuela de acordo com sua estratégia de 'mudança de regime', que não passa necessariamente pela via eleitoral...
A fação que tenta impedir a normalização das relações entre Washington e Caracas tem poder no Departamento de Estado e no Pentágono, afirma Mark Weisbrot. Foto US Army/Flickr
Desde que o Governo Obama decidiu impor novas sanções à Venezuela, muitas pessoas, incluindo jornalistas, perguntam-se sobre o que teria motivado Washington a tomar tal atitude. Alguns estão intrigados com a aparente incongruência entre este movimento e a decisão da Casa Branca, em dezembro, de iniciar o processo de normalização das relações com Cuba. Outros perguntam-se por que o governo americano faria algo que obviamente enfraquece a oposição na Venezuela, pelo menos no curto prazo. O principal grupo de oposição, a Mesa da União Democrática (MUD), emitiu um comunicado em que afirma não apoiar as sanções: "A Venezuela não é uma ameaça para ninguém", dizia, em resposta à afirmação absurda da Casa Branca de que a Venezuela representava uma "ameaça extraordinária" à segurança nacional dos EUA. Finalmente, há o problema do isolamento de Washington no hemisfério, que certamente só se agrava com esta última decisão.

A contradição entre as sanções à Venezuela e a abertura a Cuba é, provavelmente, mais aparente do que real. A maior parte dos principais atores da política externa dos EUA queria normalizar as relações com Cuba desde, pelo menos, a década de 1990. Tanto pelo dinheiro que se pode ganhar lá, como pelo facto de que a maioria dos interessados em livrar-se do governo cubano acredita – com ou sem razão – que a tarefa será mais fácil com as relações comerciais com os EUA restabelecidas. Assim, a retoma das relações com Cuba é, de forma geral, coerente com a estratégia mais ampla de oposição à Venezuela e a outros governos de esquerda que vêm sendo eleitos e reeleitos desde 1998.
As sanções só parecerão incoerentes para quem enxergar na abertura a Cuba o início de uma mudança na estratégia global dos EUA para a região, que procure aceitar a enorme mudança política hemisférica que ocorreu no século XXI – às vezes chamada de "segunda independência" da América Latina. O presidente Rafael Correa, do Equador, expressou sucintamente a desaprovação dos governos regionais com as últimas sanções, afirmando que estas "nos lembram dos momentos mais sombrios de nossa América, quando fomos invadidos tivemos ditaduras impostas pelos imperialistas." Em seguida, perguntou: "Será que não percebem que a América Latina mudou?" A resposta curta para a pergunta é não. Washington ainda está a uma longa distância de algo equivalente no hemisfério ao que representou a viagem de Nixon à China em 1972, que não marcou apenas o início de um processo de abertura de relações diplomáticas ou comerciais, mas a aceitação de que uma "China comunista" e independente era uma realidade nova, mas permanente.
Mesmo com o processo de normalização das relações com Cuba, a Casa Branca planeia continuar a financiar programas de "promoção da democracia" no país – assim como em muitos outros na região.
A explicação sobre o que a Casa Branca – ou quem quer que os tenha influenciado – espera destas sanções é menos óbvia. Durante a presidência de Obama, tem havido desacordo sobre a política do país para a América Latina entre diversos setores do governo. Por exemplo, quando o presidente Obama quis restabelecer relações diplomáticas com a Venezuela em 2010, foi sabotado por congressistas da direita e, provavelmente, os aliados destes no Departamento de Estado. Em meados do ano passado, o governo deu um passo em direção ao estabelecimento de plenas relações diplomáticas com a Venezuela ao receber um adido comercial da embaixada venezuelana – um degrau abaixo do embaixador. O encontro também foi recebido com alguma resistência e tentativas da direita de prejudicar as relações, a fim de dinamitar o progresso natural em direção às plenas relações diplomáticas.
"As sanções representam a vitória da fação política que quer impedir a normalização das relações diplomáticas com a Venezuela. Embora a opinião mais audível deste setor venha da extrema direita do Congresso – como Marco Rubio no Senado ou Ed Royce na Câmara dos Deputados – há importantes aliados dentro do próprio governo, em lugares como o Departamento de Estado e o Pentágono."
É sob esta luz que devem ser analisadas tanto as últimas sanções como aquelas aprovadas em dezembro. Elas representam a vitória da fação política que quer impedir a normalização das relações diplomáticas com a Venezuela. Embora a opinião mais audível deste setor venha da extrema direita do Congresso – como Marco Rubio no Senado ou Ed Royce na Câmara dos Deputados – há importantes aliados dentro do próprio governo, em lugares como o Departamento de Estado e o Pentágono. O apoio de Washington ao golpe militar de 2009 em Honduras foi, talvez, o mais importante dos muitos exemplos desta força, pois não resultou de pressão da direita no Congresso, tendo vindo, ao contrário, de dentro da administração Obama.
Estes setores jogam um jogo de longo prazo, e parecem dispostos a sacrificar algum capital político (em Caracas bem como Washington), a fim de tentar deslegitimar o governo da Venezuela. Assim como boa parte da oposição local, não estão comprometidos com a via eleitoral do poder. Embora a Venezuela esteja enfrentando problemas económicos agora, ninguém sabe quando os preços do petróleo irão recuperar, ou quando o governo poderá corrigir os seus mais importantes problemas económicos. Mesmo que a oposição ganhasse a maioria nas eleições legislativas nacionais, em dezembro, isto não daria a ela o controle do governo, da mesma forma que o controle atual do Congresso pelos republicanos nos EUA não os permite controlar o governo americano. Por isso, a linha dura quer agir agora, na esperança de fazer avançar sua estratégia de "mudança de regime".
Os governos latino-americanos compreenderam esta estratégia, vista como uma grave ameaça à democracia na região; daí a resposta rápida e a feroz oposição às sanções. Assim como os republicanos pensaram que eram gestos inteligentes convidar o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu para discursar no Congresso americano ou enviar uma carta do Senado americano ao governo do Irão, os arquitetos desta nova política de sanções descobrirão, em breve, os seus erros de cálculo.

Mark Weisbrot é economista, codiretor do Center for Economic and Policy Research, em Washington, e presidente do Just Foreign Policy. Publicado no portal CounterPunchTradução de Clarisse Meireles para o portal Carta Maior.

quarta-feira, 25 de março de 2015

DESAFIO E DESAFIO

Governo grego desafia o “sistema” da União Europeia e Rússia desafia o “sistema” global

23/3/2015, [*] Conflicts Forum, Comentário Semanal, 13-20/2/2015
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
                     POSTADO POR CASTOR FILHO
Sir John Sawyers
No início dessa semana (13-20/2/2015), o chefe recentemente aposentado do Serviço Secreto da Inteligência Britânica, Sir John Sawyers, disse:
(…) mas a crise na Ucrânia já não é crise só sobre a Ucrânia. Agora é crise muito maior, muito mais perigosa, entre Rússia e os países ocidentais, sobre valores e ordem na Europa.
Alertou que os países ocidentais têm de “encarar” Moscou, mas
(...) uma vez que Mr. Putin vê a questão em termos da própria segurança da Rússia, ele estará preparado para ir mais longe que nós.
Não se pode adivinhar o que, exatamente, o Sir subentende nesse confronto de valores: possivelmente, só quis destacar o meme já conhecido, segundo o qual a secessão voluntária da Crimeia, que votou a favor de separar-se da Ucrânia, equivaleria a pôr em risco toda a “ordem” europeia (muitos interpretam assim, embora, para isso, seja preciso fazer-se de cego e não ver o que aconteceu no que foi um dia a Iugoslávia).
Ou, possivelmente, SirJohn falava de algo mais profundo: que Moscou estaria realmente desafiando o Ocidente, ao reclamar prerrogativas para a Rússia contra a ordem financeira e comercial global e o respectivo modelo de governança democrática-consumerista liberal/neoliberal apresentado como imperativo universal; e a respectiva reengenharia da ordem internacional, distanciada das normas sobre as quais ela foi fundada, com coerção geofinanceira, isolamento e sanções. O sentimento de choque existencial prevalente entre quase todos os russos, sim, sugere fortemente que estejamos assistindo a algo bem profundo: um choque de valores civilizacionais à moda Fukayama (sic), que parece ser o que Sawyers está apontando.
Yves Smith
Em certo sentido, essa tensão russa de algum modo ecoa aquela outra crise da Europa, crise – que também é de “valores e ordem” – que se vê no desafio que a Grécia trouxe à elite da UE. Como Yves Smith observou:
Esse incidente [o rompimento das conversações do Eurogrupo com a Grécia]sugere que está em curso uma luta muito mais básica, que não aparece diretamente refletida nas conversações da Grécia com a Troika. O governo grego e seus credores parecem ter visões fundamentalmente diferentes sobre o que a Grécia realmente tem poder para fazer.
De fato, a posição dos vários credores da dívida grega é que a Grécia já entregara parte significativa da própria soberania, se não toda ela, em troca do dinheiro do “resgate”. E os credores teriam fixado um sistema de arrecadação pelo qual a Grécia jamais conseguiria livrar-se das dívidas e obrigações.
Dito de outro modo: a Grécia, na visão dos credores, teria sido reduzida, submetida em vasta medida a autoridades da Eurozona, sobre as quais não há controle algum; e teria perdido todos os direitos e benefícios de ser parte de uma federação real – o principal dos quais é poder receber transferências fiscais.
Por seu lado, a Grécia tem a visão de que ainda é Estado e ainda têm direitos que não lhe podem ser tirados.
Se é essa a natureza subjacente do desentendimento, da qual as dificuldades na negociação seria mero sintoma, não há motivo algum para manter alguma esperança de acordo futuro, exceto se o governo do SYRIZA capitular. A Grécia está efetivamente pedindo uma mudança na ordem constitucional oculta: quer dizer, dos vários termos impostos nos acordos de resgate que outros estados periféricos tratam como cláusulas cogentes e irrevogáveis. Mudanças nas ordens constitucionais são difíceis, para dizer o mínimo; e quase sempre só acontecem via golpes ou guerras.
De fato, o SYRIZA está contestando as prerrogativas do microcosmo, assim como a Rússia desafia o macrocosmo. A Grécia contesta a ordem financeira (como se vê na priorização absoluta dos credores sobre quaisquer outros interesses, inclusive a própria realidade ou o sofrimento humano); e também desafia o modelo de governança – o neoliberalismo institucionalizado – que determina que a Grécia seja sangrada até que pague as dívidas que, avaliadas com realismo, são absolutamente impagáveis, e cuja cobrança esvazia qualquer aspiração que a Grécia tenha à soberania. E a Grécia também está desafiando a prerrogativa que teria aquela ordem financeira de coagir financeiramente (ameaçando com levar os bancos gregos à falência), para obter o que quer.
Syriza comemora vitória eleitoral
Um analista sugere, com boa percepção da realidade, que a verdadeira luta da Grécia seria menos contra o Eurogrupo (o microcosmo), mas, de fato, mais, com o que há por trás dele: o “estado profundo” financeiro, desterritorializado, de Europa & EUA.
Para muitos, seria “irracional” desafiar esse “estado profundo” de Europa & EUA; e que a Grécia – para ser racional – teria de aceitar, no último momento, o que lhe ordena “Mr. Market”. Mas o que se tem visto no caso presente é que o partido SYRIZA não parece ser o velho partido social-democrático centrista, que sempre cede. E o argumento dele não é a velha dialética simplória do pró ou anti-mercado.
O argumento agora é mais complexo, sobre o quanto políticas monetaristas radicais, a manipulação pelo Banco Central Europeu e umas poucas formas de negociar operadas por uns poucos grandes atores de mercado distorceram o “mercado”, a ponto de o converterem numa autocracia global predatória e impermeável a qualquer mecanismo ou controle democrático.
Não surpreende portanto que essas duas crises (à primeira vista tão separadas e diferentes) – Ucrânia e Grécia – estejam se politizando muito rapidamente (cada dia mais gregos mostram-se mais abertos a Moscou que a Bruxelas, como mostram pesquisas recentes). Há sem dúvida uma correlação política entre todos os partidos políticos europeus que compreendem o sofrimento dos gregos e que se mostram mais ‘abertos’ para a Rússia.
Superpreocupados talvez com a questão da dívida e com o destino do euro, parece que perdemos de vista a questão política: o governo grego está desafiando o “sistema” União Europeia de modo muito fundamental (e a Rússia está desafiando o “sistema” global). Não surpreende que partidos políticos por todo o sul da Europa, também desencantados com a violência e a intolerância de Bruxelas, estejam prestando tanta atenção. Também eles, com certeza, já perceberam que o SYRIZA fez uma aliança com um partido da Direita, na construção de uma campanha comum anti-‘sistema’ (mesmo que, no longo prazo, esses caminhos tenham de se separar).
Esse quadro deve ter desencadeado arrepios de medo em muitos partidos europeus de centro, comprometidos com o arrocho [“austeridade”] e com a União Monetária Europeia.
Eurozona
Muito provavelmente, é o medo – mais de contágio político, que de contágio financeiro – que está provocando reações nas euro-elites, que as fazem reagir com tanta fúria no caso grego. Mas a própria fúria, a irascibilidade, da resposta daquelas elites e dos líderes europeus, ameaça converter uma disputa econômica em disputa nacionalista – incendiando as chamas do nacionalismo (e do sentimento anti-alemão) por todo o sul da Europa e pelos Bálcãs.
Vê-se que os partidos euro-céticos no Reino Unido, França e Itália, inter alia, estão de olhos postos, acompanhando o destino da rebelião dos gregos. Nos Bálcãs, essas crises gêmeas também já convergiram na percepção pública, e estão reabrindo as feridas do desmembramento da Iugoslávia.
Para os sérvios, especialmente, a crise ucraniana desperta emoções de déjà vu: a Ucrânia está sendo instrumentalizada, ferramenta do desejo ocidental de castigar a “impertinência” e a “ousadia” da Rússia, como Croácia e Eslovênia foram instrumentalizadas, ferramentas do desejo do mesmo ocidente, de também castigar uma Sérvia que se “atrevia” a tender, também, a favor dos russos.
Yves Smith (acima) ecoa o ponto de Sawyer, de que desafios a valores coletivos ou à ordem estabelecida nunca são facilmente bem-sucedidos, e praticamente sempre só se consumam mediante conflito, que é o que torna tão intratáveis essas duas crises. O elemento comum a ambas é um desejo de recobrar a soberania assaltada pela ordem financeira e política global ou financeira: em outras palavras, o desejo de “ressoberanizar” os dois estados “contestadores”.
É bastante claro que os EUA não querem Rússia “ressoberanizada”, nem a Alemanha quer alguma “ressoberanização” da Grécia (seja por medo de criar um precedente para Espanha, Portugal e Itália, seja pelo custo político, para a Alemanha, de ver desmoralizadas a sua autoridade e a sua liderança na Europa).
E é nessa profundidade que as crises gêmeas na Europa têm laços que as conectam também ao Oriente Médio. Perguntado recentemente se via solução política para a Síria, o embaixador russo em Beirute respondeu que a crise ucraniana tornava improvável qualquer movimento nessa direção; o Moscow Times também citou um conselheiro do Ministério da Defesa, especulando que, no caso de os EUA armarem Kiev, a Rússia armaria o Irã.
Mapa da aliança de segurança da Rússia
Mas, mais que esses links óbvios, a crise ucraniana – e a guerra geofinanceira desencadeada contra a Rússia – levou a Rússia a reagir no Oriente Médio, onde hoje trabalha conscientemente para reformatar a região como área mais multipolar e não denominada em dólares. Os três pilares atuais do Oriente Médio – Irã, Turquia e Egito – começam a interessar-se por construir laços mais firmes com China e Rússia e (em ritmos diferentes) afastam-se do comércio dolarizado, pelo menos nas transações entre eles mesmos.
Em outras palavras, qualquer escalada nessa dupla crise e em suas tensões inerentes incidirão diretamente sobre a capacidade de Europa e EUA mediarem conflitos no Oriente Médio, uma vez que Rússia, Irã, Egito e Turquia são, total ou parcialmente, atores chaves para ajudar a encaminhar solução nos atuais conflitos regionais.
Só para repetir bem claramente: a crítica que o presidente Putin faz contra a “ordem” global e contra os EUA estarem armando o sistema financeiro global encontra muitos ouvidos simpáticos por todo o mundo “não ocidental”.
E se a Grécia tiver de ser transformada em estado falido (para desencorajar os outros (pour décourager les autres [para desencorajar os demais, fr. no orig.]), se acelerará a tendência no Oriente Médio, de estados separarem-se do mundo unipolar, para caminhar na direção de multipolarismo mais bivalente.
A Grécia sempre foi membro do núcleo da União Europeia (é dos primeiros países que se uniram à UE – antes de Espanha ou Portugal); e a Grécia é membro da OTAN. Qualquer reorientação da Grécia na direção de Rússia e China (em busca de ajuda para enfrentar a saída do euro), ou a decisão dos gregos de se separarem da OTAN, dispararão ondas de choque por todos os Bálcãs.
Rota da Seda Sul (vermelho) e Rota da Seda Marítima (azul)
(clique na imagem para aumentar)
A China já especula sobre a possibilidade de estender sua Rota da Seda, seu corredor econômico, pela Turquia, pela Sérvia, até a Hungria (que desafiou “regras” da UE e recebeu o presidente Putin em Budapest). Há conversas também sobre um gasoduto que ligaria o novo “Ramo” Turco (que substitui o “Ramo Sul”) à Grécia, Sérvia e Hungria – e que correria talvez ao longo da projetada estrada de trens de alta velocidade e o corredor econômico chinês que ligará essa parte do sudeste da Europa.
Tudo isso acontecendo como o previsto, parte significativa do leste europeu estará já muito fisicamente orientada para, e conectada com, o Oriente Médio e, dali para a frente, também para/com Rússia e China.
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[*] Alastair Crookeàs vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
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[*] Conflicts Forum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

Bra[z]il, país moderno

Isso é um país moderno: é legal abrir off-shore de apartamento funcional, não é, Joaquim?

Autor: Fernando Brito
caramujo
Uma das coisas que me encanta no Brasil é como todos são tratados da mesma maneira.
Imaginem o que seria descobrir que a Presidenta Dilma Rouseff abrira uma empresa off-shore em Miami dando como endereço “Palácio da Alvorada, Brasília”e com ela comprasse um apartamento num condomínio de luxo lá mesmo, no coração da pátria brasileira que habita a Flórida?

Ora, não aconteceria nada, segundo a Justiça  brasileira, que acha que isso “não comprova irregularidades”.
Pois foi exatamente isso o que aconteceu com o ex-ministro Joaquim Barbosa, que em pleno exercício  do cargo no Supremo Tribunal Federal, que presidiu, e gozando de uma moradia funcional, e usou como referência para abrir a sua Assas JB Corp, uma empresa fantasma só para escapar do pagamento de impostos na sua transação imobiliária.
Joaquim Barbosa teve recusada a ação popular que questionava a transação pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
O que quer dizer que, a partir de agora, já se pode abrir empresas nos EUA, nas Bahamas ou nas Ilhas Virgens usando como endereço um apartamento funcional.
E, como elas, adquirir patrimônio no exterior sem pagar impostos no Brasil.
Assim, com aval da Justiça.
Daqui a pouco vão dar endereço no HSBC da Suíça com endereço público.
Ainda bem que somos uma ditadura bolivariana, não é?

a maior montanha plana do mundo


Monte Roraima: a maior montanha plana do mundo


Na América do Sul, o monte Roraima, um dos mais altos planaltos da região, tem duas características pouco comuns: além de se estender por três países (Venezuela, Brasil e Guiana), é completamente plano. Alvo de lendas e superstições, é hoje tema de documentários sobre a Natureza, explorações científicas e escaladas para os mais aventureiros.


"Há várias lendas antigas e mitos desde os primeiros povos que habitavam nas redondezas. Descrito pela primeira vez apenas em 1596, por Sir Walter Raleigh, foi também fonte de inspiração ao criador do famoso detective Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, para a sua obra de 1912 O mundo perdido."
monte roraima: a maior montanha plana do mundo
roraima mountain montanha plana
Está entre as formações geológicas mais antigas da Terra, quando os continentes ainda nem estavam separados, há cerca de dois biliões de anos. O Monte Roraima foi ganhando este aspecto devido à acção do vento e da chuva, que foram “moldando” as suas rochas.
Situado num terreno montanhoso rodeado por outros imponentes montes, faz parte do chamado grupo Tepuis. Este grupo caracteriza-se pela sua forma natural: praticamente plana, como se os seus montes fossem mesas. Com uma extensão de 31Km2, está distribuído entre três países: no sul da Venezuela, no extremo norte do Brasil e no oeste do Guiana.
Desde sempre o Roraima despertou interesse e curiosidade. Há várias lendas antigas e mitos desde os primeiros povos que habitavam nas redondezas. Descrito pela primeira vez apenas em 1596, por Sir Walter Raleigh, foi também fonte de inspiração ao criador do famoso detective Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, para a sua obra de 1912 O mundo perdido.
roraima mountain montanha plana
Em 2006, uma equipa de cientistas partiu numa exploração às recentemente descobertas grutas de Roraima. Um ano depois, retornariam com alguns apoios por parte da NASA, para uma maior investigação sobre micróbios encontrados nas paredes das grutas que poderiam trazer pistas sobre a vida noutros planetas.
As escaladas, subidas e descidas pela montanha datam já de 1884. Sir Everard Im Thurn, após várias tentativas de chegar ao topo, encontra finalmente um caminho pelas encostas. Apesar do difícil e íngreme acesso, foi o primeiro tepui a ser escalado. Hoje em dia, é esse o percurso mais usado pelos aventureiros que procuram uma experiência diferente.
Alcançar e percorrer os 90 Km do cume não é tarefa fácil. Pode levar dois dias até lá e sete dias para uma “exploração” total de toda a área. A caminhada começa do lado venezuelano. Na aldeia indígena de Paraitepuy, próxima da zona, é possível encontrar um guia para acompanhar a viagem, já que as nuvens e o tempo chuvoso podem levar alguém a perder-se no caminho. Para além da maravilhosa vista, da diversa fauna e flora que Roraima oferece, o ponto alto é a “Pedra Maverick”, que se assemelha a um modelo de automóvel dos anos 70. Os milhões de litros de água que escorrem pelo monte formam riachos e quedas de água de 979 m - entre elas, “Santo Angel”. Esta é a única maneira de chegar, sem recorrer ao uso de equipamentos de alpinismo. Do lado de Guiana e do Brasil, devido às falésias que rodeiam o monte, é impossível contorná-lo sem esta ajuda.
Para protegê-lo, foi transformado em 1989 em Parque Natural.
roraima mountain montanha plana
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Fontes das imagens: 1, 2, 3, 4.


diana ribeiro

Gosta de cores, comer algodão doce, ouvir as ondas do mar, cheirar e tocar em livros novos. Não dispensa o uso de nenhum dos sentidos.
Saiba como escrever na obvious.

O familiar Homo Ignorans

Ladislau Dowbor: O familiar Homo Ignorans


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do Outras Palavras
Que será a racionalidade? Um caminho para o conhecimento? Ou a busca de suposta superioridade moral, para disfarçar preconceitos e busca e privilégios?
Por Ladislau Dowbor
homo sapiens todos conhecemos. Inclusive a maior parte da teoria econômica e das teorias das transformações sociais se baseia numa compreensão otimista de que o homem absorve conhecimentos, confronta-os com os seus objetivos racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando erra, analisa os erros e corrige a sua visão para não repeti-los.

Naturalmente, é agradável pensarmos que somos, conforme aprendi na escola, animais racionais, racionalidade que nos separaria confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam proporcionalmente à minha idade, o que significa que são elevadas. Pensar que somos mais do que somos é uma atitude muito difundida. A bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos criou à sua imagem e semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que somos semelhantes nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e o fato de passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não necessariamente ao que é verdadeiro.
Pensar na dimensão irracional da nossa inteligência, ou nas raízes interessadas e ideologicamente deformadas do que nos parece racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Existe um termo simpático para isto, que é a racionalização. Fazemos uma construção racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão de paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura antes do entendimento – maior parece ser a busca do sentimento de superioridade moral.
Devemos lembrar como foram denunciados e massacrados ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da escravidão, pelo fim da discriminação racial, pelos direitos de organização dos trabalhadores, pelo voto universal, pelos direitos das mulheres? Hoje é a mesma luta pela redução das desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela democratização de uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui precisamos de muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações sim, mas apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o interesse maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos privilégios.
Aqui realmente é preciso de muita ignorância, ou seja, desconhecimento (voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios reais. O aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar, como se o termômetro e a medida dos gazes de efeitos de estufa fossem de esquerda. O desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas de solo fértil em grande escala, quando iremos precisar de mais área de plantio. A vida nos mares está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40 anos, segundo o WWF, perdemos 52% da vida vertebrada no planeta. É um desastre planetário espantoso, mas não aparece na mídia comercial. Os dados sobre a inviabilização ambiental do planeta são hoje amplamente comprovados. Mas as opiniões se dividem: é questão de opinião ou de conhecimento dos dados?
No plano social é mais impressionante ainda: até Davos escuta e divulga as pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das Nações Unidas, dos inúmeros institutos de pesquisa estatística em todos os países sobre a desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os dados da desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da pirâmide social – gerando tensões insustentáveis, mas em Wall Street enchem a boca e declaram “greed is good”, é bom ser ganancioso. Sobre esta desigualdade de patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas razões para entender tudo de fortunas familiares. Vamos tampar os olhos e fazer de conta que acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso a fontes decentes de água, 850 milhões passam fome. Tem sentido acreditar no bom pobre¸ que se resigna e aceita, quando hoje até no último degrau da pobreza há uma consciência do direito a ter uma escola decente para o filho, saúde básica para a família? Aqui já não são apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados, e sim a própria inteligência.
E porque toda esta riqueza acumulada no topo não serve para as reconversões tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e para financiar as políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais, aplicada em sistemas de especulação financeira, sequer interessada em investimentos produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80% das atividades corporativas do planeta são essencialmente grupos financeiros. Fonte? O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica. São recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de investimento produtivo, como migram para paraísos fiscais onde não pagam impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.
O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, da ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações financeiras. No Brasil a direita identifica o culpado pelas dificuldades atuais: não o desvio de recursos através da máquina financeira, mas os excessos de gastos sociais do governo. Ainda bem que temos a corrupção para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo dos recursos não seria mais inteligente?
Não há nenhuma confusão sobre as dimensões propositivas: se estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria que pouco produz e muito especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para financiar as políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos básicos no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não são ideias que faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira dos seus interesses se dar conta dos desafios reais que enfrentamos.
Confesso que ando preocupado. Parece que quanto maior a bobagem declarada, maior o sentimento de superioridade moral. E o ódio, esta eterna ferramenta dos preconceituosos, é um sentimento agradável quando se consegue encobrir o interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra permanente entre o frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a olhar pelo mundo afora, e pelos gritinhos histéricos de extremistas por toda parte – sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os outros. Pobre Deus, nosso semelhante.