Ladislau Dowbor: O familiar Homo Ignorans
do Outras Palavras
Que será a racionalidade? Um
caminho para o conhecimento? Ou a busca de suposta superioridade moral,
para disfarçar preconceitos e busca e privilégios?
Por Ladislau Dowbor
O homo sapiens todos
conhecemos. Inclusive a maior parte da teoria econômica e das teorias
das transformações sociais se baseia numa compreensão otimista de que o
homem absorve conhecimentos, confronta-os com os seus objetivos
racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando erra, analisa os
erros e corrige a sua visão para não repeti-los.
Naturalmente, é agradável pensarmos que somos, conforme aprendi na
escola, animais racionais, racionalidade que nos separaria
confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam
proporcionalmente à minha idade, o que significa que são elevadas.
Pensar que somos mais do que somos é uma atitude muito difundida. A
bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos criou à sua imagem e
semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que somos semelhantes
nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e o fato de
passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa
racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não
necessariamente ao que é verdadeiro.
Pensar na dimensão irracional da nossa inteligência, ou nas raízes
interessadas e ideologicamente deformadas do que nos parece
racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Existe um termo
simpático para isto, que é a racionalização. Fazemos uma construção
racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão de
paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o
preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura
antes do entendimento – maior parece ser a busca do sentimento de
superioridade moral.
Devemos lembrar como foram denunciados e massacrados ou ridicularizados
os que lutaram pelo fim da escravidão, pelo fim da discriminação racial,
pelos direitos de organização dos trabalhadores, pelo voto universal,
pelos direitos das mulheres? Hoje é a mesma luta pela redução das
desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela democratização de
uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui precisamos de
muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações sim, mas
apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o interesse
maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos privilégios.
Aqui realmente é preciso de muita ignorância, ou seja, desconhecimento
(voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios reais. O
aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar, como
se o termômetro e a medida dos gazes de efeitos de estufa fossem de
esquerda. O desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas
de solo fértil em grande escala, quando iremos precisar de mais área de
plantio. A vida nos mares está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40
anos, segundo o WWF, perdemos 52% da vida vertebrada no planeta. É um
desastre planetário espantoso, mas não aparece na mídia comercial. Os
dados sobre a inviabilização ambiental do planeta são hoje amplamente
comprovados. Mas as opiniões se dividem: é questão de opinião ou de
conhecimento dos dados?
No plano social é mais impressionante ainda: até Davos escuta e divulga
as pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das Nações Unidas, dos
inúmeros institutos de pesquisa estatística em todos os países sobre a
desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os dados da
desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são
donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da
pirâmide social – gerando tensões insustentáveis, mas em Wall Street
enchem a boca e declaram “greed is good”,
é bom ser ganancioso. Sobre esta desigualdade de patrimônio uma das
principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas razões para entender
tudo de fortunas familiares. Vamos tampar os olhos e fazer de conta que
acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta
onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso
a fontes decentes de água, 850 milhões passam fome. Tem sentido
acreditar no bom pobre¸ que
se resigna e aceita, quando hoje até no último degrau da pobreza há uma
consciência do direito a ter uma escola decente para o filho, saúde
básica para a família? Aqui já não são apenas os olhos e os ouvidos que
estão tapados, e sim a própria inteligência.
E porque toda esta riqueza acumulada no topo não serve para as
reconversões tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e para
financiar as políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as
desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais,
aplicada em sistemas de especulação financeira, sequer interessada em
investimentos produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80%
das atividades corporativas do planeta são essencialmente grupos
financeiros. Fonte? O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica.
São recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de
investimento produtivo, como migram para paraísos fiscais onde não pagam
impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.
O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, da
ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é
a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações
financeiras. No Brasil a direita identifica o culpado pelas dificuldades
atuais: não o desvio de recursos através da máquina financeira, mas os
excessos de gastos sociais do governo. Ainda bem que temos a corrupção
para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo dos recursos não
seria mais inteligente?
Não há nenhuma confusão sobre as dimensões propositivas: se estamos
destruindo o planeta em proveito de uma minoria que pouco produz e muito
especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para financiar as
políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos
equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos
básicos no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não
são ideias que faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira
dos seus interesses se dar conta dos desafios reais que enfrentamos.
Confesso que ando preocupado. Parece que quanto maior a bobagem
declarada, maior o sentimento de superioridade moral. E o ódio, esta
eterna ferramenta dos preconceituosos, é um sentimento agradável quando
se consegue encobrir o interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra
permanente entre o frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a
olhar pelo mundo afora, e pelos gritinhos histéricos de extremistas por
toda parte – sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas
justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os
outros. Pobre Deus, nosso semelhante.