Governo grego desafia o “sistema” da União Europeia e Rússia desafia o “sistema” global
23/3/2015, [*] Conflicts Forum, Comentário Semanal, 13-20/2/2015
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
Sir John Sawyers |
No início dessa semana (13-20/2/2015), o chefe recentemente aposentado do Serviço Secreto da Inteligência Britânica, Sir John Sawyers, disse:
(…) mas
a crise na Ucrânia já não é crise só sobre a Ucrânia. Agora é crise
muito maior, muito mais perigosa, entre Rússia e os países ocidentais,
sobre valores e ordem na Europa.
(...) uma vez que Mr. Putin vê a questão em termos da própria segurança da Rússia, ele estará preparado para ir mais longe que nós.
Não se pode adivinhar o que, exatamente, o Sir subentende
nesse confronto de valores: possivelmente, só quis destacar o meme já
conhecido, segundo o qual a secessão voluntária da Crimeia, que votou a
favor de separar-se da Ucrânia, equivaleria a pôr em risco toda a
“ordem” europeia (muitos interpretam assim, embora, para isso, seja
preciso fazer-se de cego e não ver o que aconteceu no que foi um dia a
Iugoslávia).
Ou, possivelmente, SirJohn
falava de algo mais profundo: que Moscou estaria realmente desafiando o
Ocidente, ao reclamar prerrogativas para a Rússia contra a ordem
financeira e comercial global e o respectivo modelo de governança
democrática-consumerista liberal/neoliberal apresentado como imperativo
universal; e a respectiva reengenharia da ordem internacional,
distanciada das normas sobre as quais ela foi fundada, com coerção
geofinanceira, isolamento e sanções. O sentimento de choque existencial
prevalente entre quase todos os russos, sim, sugere fortemente que
estejamos assistindo a algo bem profundo: um choque de valores civilizacionais à moda Fukayama (sic), que parece ser o que Sawyers está apontando.
Yves Smith |
Em
certo sentido, essa tensão russa de algum modo ecoa aquela outra crise
da Europa, crise – que também é de “valores e ordem” – que se vê no
desafio que a Grécia trouxe à elite da UE. Como Yves Smith observou:
Esse incidente [o rompimento das conversações do Eurogrupo com a Grécia]sugere
que está em curso uma luta muito mais básica, que não aparece
diretamente refletida nas conversações da Grécia com a Troika. O governo
grego e seus credores parecem ter visões fundamentalmente diferentes
sobre o que a Grécia realmente tem poder para fazer.
De fato, a
posição dos vários credores da dívida grega é que a Grécia já entregara
parte significativa da própria soberania, se não toda ela, em troca do
dinheiro do “resgate”. E os credores teriam fixado um sistema de
arrecadação pelo qual a Grécia jamais conseguiria livrar-se das dívidas e
obrigações.
Dito de outro
modo: a Grécia, na visão dos credores, teria sido reduzida, submetida em
vasta medida a autoridades da Eurozona, sobre as quais não há controle
algum; e teria perdido todos os direitos e benefícios de ser parte de
uma federação real – o principal dos quais é poder receber
transferências fiscais.
Por seu lado, a Grécia tem a visão de que ainda é Estado e ainda têm direitos que não lhe podem ser tirados.
Se é essa a
natureza subjacente do desentendimento, da qual as dificuldades na
negociação seria mero sintoma, não há motivo algum para manter alguma
esperança de acordo futuro, exceto se o governo do SYRIZA capitular. A
Grécia está efetivamente pedindo uma mudança na ordem constitucional
oculta: quer dizer, dos vários termos impostos nos acordos de resgate
que outros estados periféricos tratam como cláusulas cogentes e
irrevogáveis. Mudanças nas ordens constitucionais são difíceis, para
dizer o mínimo; e quase sempre só acontecem via golpes ou guerras.
De
fato, o SYRIZA está contestando as prerrogativas do microcosmo, assim
como a Rússia desafia o macrocosmo. A Grécia contesta a ordem financeira
(como se vê na priorização absoluta dos credores sobre quaisquer outros
interesses, inclusive a própria realidade ou o sofrimento humano); e
também desafia o modelo de governança – o neoliberalismo
institucionalizado – que determina que a Grécia seja sangrada até que
pague as dívidas que, avaliadas com realismo, são absolutamente
impagáveis, e cuja cobrança esvazia qualquer aspiração que a Grécia
tenha à soberania. E a Grécia também está desafiando a prerrogativa que
teria aquela ordem financeira de coagir financeiramente (ameaçando com
levar os bancos gregos à falência), para obter o que quer.
Syriza comemora vitória eleitoral |
Um
analista sugere, com boa percepção da realidade, que a verdadeira luta
da Grécia seria menos contra o Eurogrupo (o microcosmo), mas, de fato,
mais, com o que há por trás dele: o “estado profundo” financeiro,
desterritorializado, de Europa & EUA.
Para
muitos, seria “irracional” desafiar esse “estado profundo” de Europa
& EUA; e que a Grécia – para ser racional – teria de aceitar, no
último momento, o que lhe ordena “Mr. Market”. Mas o que se tem visto no
caso presente é que o partido SYRIZA não parece ser o velho partido
social-democrático centrista, que sempre cede. E o argumento dele não é a
velha dialética simplória do pró ou anti-mercado.
O
argumento agora é mais complexo, sobre o quanto políticas monetaristas
radicais, a manipulação pelo Banco Central Europeu e umas poucas formas
de negociar operadas por uns poucos grandes atores de mercado
distorceram o “mercado”, a ponto de o converterem numa autocracia global
predatória e impermeável a qualquer mecanismo ou controle democrático.
Não
surpreende portanto que essas duas crises (à primeira vista tão
separadas e diferentes) – Ucrânia e Grécia – estejam se politizando
muito rapidamente (cada dia mais gregos mostram-se mais abertos a Moscou
que a Bruxelas, como mostram pesquisas recentes). Há sem dúvida uma
correlação política entre todos os partidos políticos europeus que
compreendem o sofrimento dos gregos e que se mostram mais ‘abertos’ para
a Rússia.
Superpreocupados
talvez com a questão da dívida e com o destino do euro, parece que
perdemos de vista a questão política: o governo grego está desafiando o
“sistema” União Europeia de modo muito fundamental (e a Rússia está
desafiando o “sistema” global). Não surpreende que partidos políticos
por todo o sul da Europa, também desencantados com a violência e a
intolerância de Bruxelas, estejam prestando tanta atenção. Também eles,
com certeza, já perceberam que o SYRIZA fez uma aliança com um partido
da Direita, na construção de uma campanha comum anti-‘sistema’ (mesmo
que, no longo prazo, esses caminhos tenham de se separar).
Esse
quadro deve ter desencadeado arrepios de medo em muitos partidos
europeus de centro, comprometidos com o arrocho [“austeridade”] e com a
União Monetária Europeia.
Eurozona |
Muito provavelmente, é o medo – mais de contágio político,
que de contágio financeiro – que está provocando reações nas
euro-elites, que as fazem reagir com tanta fúria no caso grego. Mas a
própria fúria, a irascibilidade, da resposta daquelas elites e dos
líderes europeus, ameaça converter uma disputa econômica em disputa
nacionalista – incendiando as chamas do nacionalismo (e do sentimento
anti-alemão) por todo o sul da Europa e pelos Bálcãs.
Vê-se que os partidos euro-céticos no Reino Unido, França e Itália, inter alia,
estão de olhos postos, acompanhando o destino da rebelião dos gregos.
Nos Bálcãs, essas crises gêmeas também já convergiram na percepção
pública, e estão reabrindo as feridas do desmembramento da Iugoslávia.
Para os sérvios, especialmente, a crise ucraniana desperta emoções de déjà vu:
a Ucrânia está sendo instrumentalizada, ferramenta do desejo ocidental
de castigar a “impertinência” e a “ousadia” da Rússia, como Croácia e
Eslovênia foram instrumentalizadas, ferramentas do desejo do mesmo
ocidente, de também castigar uma Sérvia que se “atrevia” a tender,
também, a favor dos russos.
Yves
Smith (acima) ecoa o ponto de Sawyer, de que desafios a valores
coletivos ou à ordem estabelecida nunca são facilmente bem-sucedidos, e
praticamente sempre só se consumam mediante conflito, que é o que torna
tão intratáveis essas duas crises. O elemento comum a ambas é um desejo
de recobrar a soberania assaltada pela ordem financeira e política
global ou financeira: em outras palavras, o desejo de “ressoberanizar”
os dois estados “contestadores”.
É
bastante claro que os EUA não querem Rússia “ressoberanizada”, nem a
Alemanha quer alguma “ressoberanização” da Grécia (seja por medo de
criar um precedente para Espanha, Portugal e Itália, seja pelo custo
político, para a Alemanha, de ver desmoralizadas a sua autoridade e a
sua liderança na Europa).
E
é nessa profundidade que as crises gêmeas na Europa têm laços que as
conectam também ao Oriente Médio. Perguntado recentemente se via solução
política para a Síria, o embaixador russo em Beirute respondeu que a
crise ucraniana tornava improvável qualquer movimento nessa direção; o
Moscow Times também citou um conselheiro do Ministério da Defesa,
especulando que, no caso de os EUA armarem Kiev, a Rússia armaria o Irã.
Mapa da aliança de segurança da Rússia |
Mas, mais que esses links óbvios,
a crise ucraniana – e a guerra geofinanceira desencadeada contra a
Rússia – levou a Rússia a reagir no Oriente Médio, onde hoje trabalha
conscientemente para reformatar a região como área mais multipolar e não
denominada em dólares. Os três pilares atuais do Oriente Médio – Irã,
Turquia e Egito – começam a interessar-se por construir laços mais
firmes com China e Rússia e (em ritmos diferentes) afastam-se do
comércio dolarizado, pelo menos nas transações entre eles mesmos.
Em
outras palavras, qualquer escalada nessa dupla crise e em suas tensões
inerentes incidirão diretamente sobre a capacidade de Europa e EUA
mediarem conflitos no Oriente Médio, uma vez que Rússia, Irã, Egito e
Turquia são, total ou parcialmente, atores chaves para ajudar a
encaminhar solução nos atuais conflitos regionais.
Só
para repetir bem claramente: a crítica que o presidente Putin faz
contra a “ordem” global e contra os EUA estarem armando o sistema
financeiro global encontra muitos ouvidos simpáticos por todo o mundo
“não ocidental”.
E se a Grécia tiver de ser transformada em estado falido (para desencorajar os outros (pour décourager les autres [para
desencorajar os demais, fr. no orig.]), se acelerará a tendência no
Oriente Médio, de estados separarem-se do mundo unipolar, para caminhar
na direção de multipolarismo mais bivalente.
A
Grécia sempre foi membro do núcleo da União Europeia (é dos primeiros
países que se uniram à UE – antes de Espanha ou Portugal); e a Grécia é
membro da OTAN. Qualquer reorientação da Grécia na direção de Rússia e
China (em busca de ajuda para enfrentar a saída do euro), ou a decisão
dos gregos de se separarem da OTAN, dispararão ondas de choque por todos
os Bálcãs.
Rota da Seda Sul (vermelho) e Rota da Seda Marítima (azul) (clique na imagem para aumentar) |
A
China já especula sobre a possibilidade de estender sua Rota da Seda,
seu corredor econômico, pela Turquia, pela Sérvia, até a Hungria (que
desafiou “regras” da UE e recebeu o presidente Putin em Budapest). Há
conversas também sobre um gasoduto que ligaria o novo “Ramo” Turco (que
substitui o “Ramo Sul”) à Grécia, Sérvia e Hungria – e que correria
talvez ao longo da projetada estrada de trens de alta velocidade e o
corredor econômico chinês que ligará essa parte do sudeste da Europa.
Tudo
isso acontecendo como o previsto, parte significativa do leste europeu
estará já muito fisicamente orientada para, e conectada com, o Oriente
Médio e, dali para a frente, também para/com Rússia e China.
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[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum,
uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o
Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência
Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro
para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo
de High Representative for Common Foreign and Security Policy da
União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra
os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve
envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em
Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda
Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do
Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no
processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da
Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos
sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram
resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah.
Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no
Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias
de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam
estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
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[*] Conflicts Forum visa
mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda,
menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz
isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes:
observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são
projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores
discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que
se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações
ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar
com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento
sobre os potenciais políticos no mundo.