quarta-feira, 25 de março de 2015

CRISE! QUE CRISE?!

A CRISE NA FILA DO BANCO, NOS BOTEQUINS, NOS JORNAIS, NO STF…

1
por Paulo Moreira Leite

Uma visita a raiva e ao pessimismo das últimas semanas, que não pode esconder o legado vitorioso dos doze anos de governo Lula-Dilma
Na fila do banco, uma senhora mais velha do que eu pergunta se está chovendo lá fora. Respondo que sim e apontado para umas vitrines próximas, pergunto: “A senhora vai fazer compras?”
— Não, ela diz, olhando a tela do celular. Vou me sentar e olhar minhas mensagens no Whatsap. Já chegaram mais de cem hoje de manhã.Todo mundo quer derrubar o governo, ela diz.
–Eu não quero, comento.
–Não quer?
–Eu não.
–Você quer que a corrupção continue? É a favor da roubalheira?, me diz, como se tivesse ouvido uma apologia ao crime.
— Me diga só uma coisa que esse governo fez de bom. Só uma, continua.
–Melhorou a vida dos pobres, respondo.
— Quem fez isso foi a mulher do presidente Fernando Henrique, argumenta a senhora. Ela começou tudo, até fez os estudos que permitiram tudo isso. O Lula só continuou.
Contesto. Falo do salário mínimo, das regiões mais pobres do país. Lembro que a história do Bolsa Família é muito diferente, demonstro algum conhecimento.
Sorrindo irônica, minha interlocutora pergunta com ar suspeito se trabalho no governo. Depois, onde estudei. Tem o olhar desconfiado, investigativo, quase policial.
Descubro através daquela senhora que a mentira não apenas triunfou. Tornou-se opressora, perigosa.
À noite, num jantar entre eleitores de Lula e Dilma, um dos presentes fala do governo e do PT no passado. Tenta explicar “por que deu errado. ”
Lembra dos primeiros escândalos e, com um certo jeito de professor que me incomoda, diz que o partido não poderia ter sido tão complacente com o dinheiro, não podia ter agido como os outros. “Eu participei da campanha de 2002, eu vi como era. O dinheiro jorrava.” E repete: “jorrava.”
A lado, concordando, uma senhora presente argumenta: “Eu não sei porque o PT precisava de tanto dinheiro. Devia confiar na sua mensagem. Se desse para ganhar eleição, ganhava. Se não tivesse representativade, perdia. Posso estar sendo idealista, utópica, mas pergunto: não é assim que deve ser a política?”
Interrompo para discordar:
— Eu não acho que estava dando errado. Apareceram muitos problemas mas a verdade é que estava dando certo, digo, me referindo a paralisia do governo, bastante clara no segundo mandato. Talvez ainda possa continuar dando certo.
Como a senhora na porta do banco, os olhares se voltam para mim numa combinação de surpresa e solidariedade. Continuo, lembrando da conversa na fila do banco:
— O governo fez aquilo que deveria ter feito, o que era o mais importante: a vida dos mais pobres melhorou muito.
— A dos ricos também, corta uma voz. Os muito ricos nunca ganharam tanto dinheiro.
— Os pobres ganharam. É matemática, é saber fazer contas, usar os índices. O salário nunca subiu tanto, o consumo nunca cresceu dessa maneira.
E há outro argumento, prossigo:
— Os pobres não só ganharam dinheiro, mas ganharam direitos. E passaram a exigir o que têm direito. Ocorreu uma pequena insurgência no país, ao longo de todos esses anos, quando os pobres passaram a exigir o que era deles. Fizeram isso no trabalho, em casa, na rua. Hoje você não pode maltratar uma pessoa porque ela é pobre. Não pode mexer com negros porque vai dar confusão, eles reagem. Está certo. Eles viram o que o Lula fazia no governo, o que enfrentava, e copiavam. Os ricos não gostaram disso. Perderam um pouquinho de dinheiro, um pouquinho só, mas também perderam prestígio, conforto, auto-imagem. Por isso a Danuza escreveu que encontrar o mordomo de férias em Paris tira a graça de Paris. Os ricos estavam perdendo poder, disse, esquecendo de mencionar as eleições presidenciais.
Uma pausa para a cerveja. A conversa é retomada. Falo:
— Vamos falar da realidade. O Lula estava certo em Paris, no tempo do mensalão, quando falou que o Partido dos Trabalhadores apenas fez aquilo que é feito, sistematicamente, pelos outros partidos. Foi uma afirmação histórica, dialética, e olha que eu não gosto muito dessas palavras. Alguém vai dizer que ele mentiu? Mas foi assim. Disseram que era um escândalo, que um presidente não podia falar aquilo. Mas Lula estava certíssimo.
No caminho de casa, lembro do Ricardo Semler. No final do ano passado, um mês depois da vitória de Dilma, o empresário-prodígio tentava virara mesa mais uma vez, agora contra a turma que pedia impeachment e denunciava a corrupção.
“Que fingimento é este?”, perguntou Semler. Ele mesmo, tucano assumido, respondeu: “Nunca se roubou tão pouco.”
“Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos ‘cochons des dix pour cent,’ os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.”
A Folha de hoje trata da Lava Jato, como sempre, mas contém uma informação rara na cobertura. Informa que, conforme vários advogados, “os tribunais estão amedrontados pelo clamor das ruas” como diz Alexandre Lopes, defensor do ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque, que foi solto pelo STF em dezembro, mas voltou para a cadeia dias atrás. Outros defensores dizem a mesma coisa ou até mais.
Eu penso na senhora da fila do banco.
Em agosto de 2007, a Folha registrou uma conversa do ministro Ricardo Lewandovski, ao telefone com o irmão. O ministro explicava como havia sido a votação em que o Supremo havia aceito a denúncia contra os acusados da AP 470. “A imprensa acuou o Supremo. Não ficou suficiente comprovada a acusação.” Concluindo, disse Levandowski: “Todo mundo votou com a faca no pescoço.”
Juízes com medo são a pior doença de uma democracia. Indicam uma situação que pode acabar perigosamente sem saída, como perceberam os habitantes daquele lugarejo fictício do velho Oeste norte-americano, onde se passa um filme inesquecível, “O Homem que Matou o Facínora.”
Mas a frase de Lewandovski não levou ninguém a se perguntar porque os juízes estavam com a “faca no pescoço.” Nem o que levou o magistrado, hoje presidente do STF, a acusar os jornais de terem feito isso.
A frase foi publicada, repetida, multiplicada, em tom de comemoração, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Necessária, até. Parecia que o ritual da Justiça brasileira deveria incluir o uso de uma lâmina afiada e cortante, nas proximidades da carótida de Suas Excelências, pois só assim seria possível garantir que os ministros fossem capazes de cumprir suas obrigações.
É sempre bom lembrar o que motivou a denúncia do uso da arma branca. Momentos antes, no plenário do STF, um fotógrafo do Globo capturou uma troca de emails entre Lewandovski e a ministra Carmen Lucia.
Lewandovski escreveu que o procurador-geral Antonio Carlos Fernando “está jogando para a plateia”. Carmen Lucia respondeu concordando e foi além. Disse que o PGR tentava “explicar o que a denúncia não explicou.” A faca foi empunhada quando dois ministros apontavam fraquezas na acusação contra os réus da AP 470. O nome de José Dirceu foi mencionado explicitamente.
Sete anos e oito meses se passaram depois da faca no pescoço. A AP 470 se encerrou com penas fortes para provas fracas. A maioria dos integrantes do núcleo dirigente do Partido dos Trabalhadores foi condenada, com penas agravadas artificialmente, para permitir que fossem conduzidos a regime fechado. De uma forma ou de outra, todos foram colocados fora de combate.
Em 2015 os advogados dizem que os juízes estão com medo na Lava Jato, com suas prisões preventivas, delações premiadas.
“Estamos vivendo um retrocesso e um obscurantismo. A delação é hoje o que foi a tortura na época da ditadura”, diz o advogado Nelio Machado, que foi assistente no escritório de seu pai durante o regime militar.
Nelio Machado lembra que, enquanto não tinham culpa formada, os réus da AP 470 respondiam às acusações em liberdade, como manda a lei, que só admite, em casos muito particulares, justificados de forma robusta, que uma pessoa fique presa ante de ser condenada.
Falecida na semana passada, a guerreira da luta contra a tortura Therezinha Zerbini chegou a ser condenada pela Justiça Militar durante a ditadura.
Com toda selvageria daquele tempo, os juízes da mesma Auditoria em que generais da Justiça Militar foram fotografados escondendo o rosto com as mãos julgamento de Vania, a guerrilheira Dilma Rousseff, Therezinha foi condenada a sete meses de prisão. Os acusados da Lava Jato já completaram quatro meses de cadeia. Nenhum foi julgado.
Impossível deixar de notar que o silêncio das togas contribui para o crescimento da mentira, para a confusão entre Justiça e Crime, e, especialmente, para aquilo que ninguém quer ver nem apontar — pois causa vergonha eterna na memória de um país.
A história elogia a atuação dos tribunais superiores, durante o ciclo militar, moderando e corrigindo decisões duras demais e até absurdas tomadas na primeira instância.
Mas infelizmente não há registro, entre 1964 e 1984, de uma única toga negra que tenha feito uso de suas prerrogativas constitucionais para entrar nos ambientes imundos do porão militar para interromper uma sessão de tortura, impedir talvez um assassinato, uma execução quem sabe um estupro. Milhares de denúncias de violência ficaram registradas nos arquivos da Justiça Militar. Isso permitiu que a memória fosse salva. Mas nenhuma acusação foi apurada em seu devido tempo, quando seria possível impedir crimes e salvar vidas.
Vivemos outro momento nas conversas de 2015. Mas cabe perguntar: desistir? Não.